Por Sarah Rainsford
Considerada inimiga do povo, Vera Golubeva foi enviada em 1951 para a Sibéria, onde passaria seis anos em um campo de trabalho forçado stalinista. O crime que cometeu: contar uma piada.
“Soa ridículo”, diz hoje a professora de história aposentada, sorrindo. “Mas era a única ‘prova’ que eles tinham contra mim.”
No campo de trabalho, ela foi obrigada a construir trilhos de trem em locais onde as temperaturas chegam a -56°C.
“Todo mundo ficava exausto, e acabava doente”, ela se lembra, enquanto se senta em um banco no jardim do seu condomínio.
“A parte mais difícil para mim era cortar madeira. Eu era uma garota da cidade e não era muito boa na tarefa. Então minha ração foi diminuída para 300 gramas. É quase nada”, diz ela.
“Mas eu era durona, pelo menos psicologicamente. Muitas pessoas perderam a cabeça. Não conseguiam lidar.”
Agora, a Rússia está se preparando para prestar uma homenagem a pessoas como Vera.
Ao longo do principal rodoanel de Moscou, pedaços de uma escultura gigante de bronze estão sendo montados. É o primeiro memorial nacional para as milhões de pessoas que foram deportadas, presas e executadas durante o regime soviético.
A maioria foi vítima da administração de Josef Stálin.
Milhões de mortos
Dezenas de milhões morreram durante o governo do ditador, que comandou a União Soviética entre 1929 e 1953 – seja por causa da fome, de trabalhos forçados, de execuções ou em campos de concentração.
Estima-se que 750 mil pessoas foram sumariamente executadas apenas durante o Grande Terror, período compreendido entre os anos de 1937 e 1938.
Milhões foram enviados aos Gulags, os campos de trabalho forçado.
“Foi uma das grandes atrocidades humanas. É impossível para mim não ser afetado por aquilo”, diz o artista Georgy Frangulyan, enquanto observa sua escultura tomando forma ao lado da avenida movimentada.
Feito de formas humanas irregulares e sem rosto, o monumento será curvado, como se fosse uma foice gigante.
O artista diz que a obra é uma lembrança física de uma máquina repressiva que massacrava vítimas inocentes.
Há espaços vazios no muro nos quais Frangulyan espera que as pessoas pisem, sentindo o peso da história em suas costas.
“A arte representativa não é normal. É uma expressão de sentimentos, de medo e alarme”, diz Frangulyan. “É uma representação de todas as vidas que foram violadas sem piedade.”
O Muro do Pesar é financiado em parte pela Prefeitura de Moscou e em parte por doações, apesar do artista apontar que existe ainda uma quantia significativa a ser financiada.
A obra é parte de um programa governamental mais amplo, assinado pelo primeiro ministro há dois anos, no qual é determinado que a Rússia não pode adotar um papel de liderança na comunidade internacional sem “imortalizar a memória dos muitos milhões de cidadãos que foram vítimas da repressão política”.
Ainda assim, há muitas mensagens desencontradas vindo de cima.
Em junho, o presidente Vladimir Putin afirmou que os inimigos da Rússia estavam “demonizando” Stálin excessivamente como uma forma de ataque.
Sob seu mandato, a vitória soviética sobre os nazistas se tornou central para uma nova ideologia que exalta a força da Rússia.
Nesse contexto, está crescendo a visão de que Stálin foi um herói de guerra. Ele regularmente aparece em pesquisas de opinião como uma figura histórica de destaque.
‘Os Gulags estão sendo ignorados’
Mas não é preciso ir para a Sibéria para ver o sofrimento que ele causou.
O canal de Moscou percorre cerca de 120 km ao redor da cidade, incorporando comportas e reservatórios. Planejado de forma a permitir que o rio Volga abastecesse a capital russa, o projeto gigante foi construído com trabalho forçado no auge do poder de Stálin. Isso incluía presos políticos.
“A maior parte das pessoas não sabe nada sobre o canal”, diz o pesquisador Dmitry Kotilevich. “Elas sabem ainda menos sobre o campo de trabalho Dmitrovsky.”
Na grande cerimônia de inauguração, em 1937, dezenas de funcionários que supervisionaram a construção do canal foram presos e depois mortos, diz.
“É muito difícil para muitas pessoas pensar sobre a vitória na guerra e sobre os Gulags ao mesmo tempo”, explica o jovem historiador. “Eu frequentemente escuto que, de alguma forma, se viola a memória da vitória (soviética) ao falar sobre o que Stálin fez antes dela. Então, os Gulags estão sendo ignorados.”
Em breve, isso será mais difícil.
O Muro do Pesar tem 30 metros de extensão, e seu criador acredita que aqueles que passarem por ele, incluindo crianças, ficarão curiosos e farão perguntas.
“Sempre haverá aqueles que não querem admitir o que aconteceu. Mas espero que eles sejam poucos, graças a este memorial. A brutalidade, a aniquilação de pessoas inocentes nunca não podem ser justificadas”, diz Frangulyan.
‘O que aconteceu precisa ser exposto’
Vera Golubeva sobreviveu à brutalidade, mas por um alto custo.
Ela diz que sua juventude foi roubada no Gulag. Seu marido foi enviado para os campos também, além de seus pais. Vera tinha oito meses de gravidez quando foi capturada. Ela perdeu seu bebê e disse que, depois disso, a vida perdeu sentido.
Para ela, o novo memorial é um reconhecimento tardio do horror.
“O que aconteceu precisa ser exposto, para que não se repita”, diz Vera, com a voz forte e firme, apesar da idade.
“Dizemos que há coisas que acontecem em espirais. Mas isso foi uma espiral sombria. Era um tempo amedrontador”, ela acrescenta. “Infelizmente ainda existem apoiadores daquele sistema.”
Eles não são difíceis de serem encontrados. Conforme eu me despeço de Vera, uma outra mulher que se sentava perto me chama.
Ela sabia que eu era estrangeira, e nos observou enquanto conversávamos.
“Ela estava criticando a Rússia?”, pergunta a mulher, apontando para Vera. “Ela estava dizendo coisas ruins?”
“Espero que não. Ou vamos dar a ela motivos para isso.”
Fonte: http://www.bbc.com/portuguese/internacional-40982426
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