Briga no centro de Curitiba reflete tendência nacional de crescimento de um movimento que coloca em risco a defesa dos direitos fundamentais
Por Carlos Coelho
O Largo da Ordem acaba de ser palco de mais uma cena de ódio em Curitiba. Uma confusão entre punks e skinheads acabou com três homens esfaqueados na noite deste sábado (02/09). O confronto entre esses dois grupos é comum e, infelizmente, faz parte de uma série de atos de violência com fundo racista e supremacista cada vez mais comuns na capital paranaense e no Brasil.
Como outro que veio à tona em 14 de agosto. Estudantes do setor de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná (UFPR) se depararam com uma mensagem pouco amistosa pichada em um dos banheiros: “Fora Cotistas, Poder Branco”. Um ato anônimo imediatamente condenado pela instituição. “Todos os alunos que ingressaram nesta universidade advindos de escolas públicas ou particulares merecem respeito, independentemente de cor, gênero, orientação sexual, crença religiosa ou ideologia política”, escreveu em sua página no Facebook a coordenadora do curso de Medicina, professora Marta Rehme. É curioso, mas talvez não surpreendente. Apenas dois dias antes, uma manifestação de supremacistas brancos em Charlottesville, nos Estados Unidos, terminou com a morte de uma pessoa e escancarou para o mundo uma escalada do ódio não tão distante de nossa realidade.
“Há uma tendência mundial ao radicalismo com diversas motivações. A crise humanitária na Europa [o continente tem recebido um grande fluxo de imigrantes sírios desde 2015] fez crescer o número de grupos xenofóbicos, por exemplo. A falta de emprego nos Estados Unidos também impulsionou o ódio a imigrantes. A crise econômica no Brasil também cai no discurso simplista de Sul rico contra Nordeste pobre”, exemplifica Maria Inês Barcellos, mestre em Sociologia pela Unifesp. É uma linha de pensamento que reforça posições de outros estudiosos, como Nelson Rosário de Souza, sociólogo da UFPR que sustenta que momentos de crise levam ao aumento da intolerância.
No Brasil, o discurso de ódio, ao contrário dos Estados Unidos, é velado – manifestações de cunho racista e portar publicamente símbolos nazistas são crimes por aqui. E isso explica, em parte, a sensação de distanciamento dessa realidade. Além disso, existem poucos dados estatísticos sobre a atuação de grupos racistas, homofóbicos, antissemitas (ou intolerantes a qualquer outra religião) ou contrários à migração. No Paraná, por exemplo, a Secretaria de Segurança Pública não consegue filtrar os boletins de ocorrência por motivos discriminatórios. Para saber quais registros foram por ofensa racial, para citar um exemplo, é preciso ir de um em um. Só recentemente essa preocupação em detalhar os dados passou a ser discutida.
Mas, não estar escancarado não significa que algo não exista. É uma preocupação que, embora a polícia não trate como urgente, tem olhado de perto. No fim do ano passado, por exemplo, a Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil paranaense ganhou um setor somente para este tipo de caso. “Nós investigamos crimes de intolerância, preconceito racial e racismo contra a população vulnerável. Surgiu de um entendimento entre Ministério Público, Secretaria de Segurança e Policia Civil. A necessidade veio também de se ter estatística quantitativa de crimes desse tipo que ocorrem em Curitiba para posterior adoção de políticas publicas”, aponta o delegado Fábio Amaro, à frente deste grupo de atuação.
Perseguida
Talvez a pesquisa mais completa sobre os grupos de ódio atuantes no país seja a publicada em 2013 pela antropóloga e doutora pela Unicamp Adriana Dias. Ela monitorou por mais de uma década a movimentação de grupos neonazistas – que pregam o ódio a negros, judeus e homossexuais – em um trabalho que lhe custou parte da liberdade (Adriana não mostra o rosto em entrevistas e nem posta fotos em redes sociais por causa das ameaças recebidas). Segundo seu estudo, existem 150 mil adeptos desta doutrina radical no Brasil. A pesquisadora estima que, deste total, 10% têm posições de liderança e uma parte menor, os 10% destes 10%, já cometeram crimes graves e são procurados ou investigados pela polícia.
Os números levantados por Adriana expõem a seriedade do assunto no Sul do país. É aqui o lar da maioria absoluta dos adeptos: 105 mil. E mais: calcula-se que 18 mil deles estejam no Paraná – o estado fica atrás de Santa Catarina (45 mil), Rio Grande do Sul (42 mil) e São Paulo (29 mil). À “BBC”, Adriana apontou que estes são estados em que mais pesam fatores como racismo, concentração de renda na mão de poucos – para ela, uma “elite segregacionista”.
A classificação da pesquisadora leva em conta a forma mais fácil de monitorar estes grupos. Sua análise é baseada em pessoas que baixaram mais de 100 arquivos pesados (entre 10 e 100 megabytes) de material neonazista – ou seja, que estavam se familiarizando com esse pensamento ultradireitista. É o mundo online revelando a intolerância offline.
“Aceitável”
O discurso de ódio tem crescido sistematicamente na internet brasileira, aponta a SaferNet, uma organização que monitora esse movimento e oferece suporte psicológico às vítimas. Em 2016, a ONG recebeu 42 mil denúncias feitas por brasileiros de páginas com conteúdo neonazista, homofóbico, xenofóbico, intolerante religioso ou racista. No total, eram mais de 15 mil páginas de ódio. Racismo lidera disparado em termos de ofensas virtuais.
Se comparar os números totais de 2016 com os de 2015, houve uma queda de 9% no total de denúncias. Mas, longe de ser motivo de comemoração. À revista “Época”, o diretor-presidente da ONG, Tiago Tavares, apontou que o conteúdo pode estar sendo menos denunciado justamente por ter se tornado “aceitável”. “As pessoas olham e não denunciam, não há mais revolta”, afirmou. O ponto de vista de Tavares se sustenta, por exemplo, no tom adotado em comentários nas respostas em redes sociais e nas caixas de comentários de portais de notícias, que se tornaram mais raivosos. Essa observação mais prática mostra esse descompasso. A SaferNet diz que o maior fórum neonazista e nacionalista branco da internet teve aumento considerável no número de usuários brasileiros nos últimos anos.
Capital “limpa”
“Qual é a porcentagem de brancos em Curitiba?”, pergunta um dos usuários deste fórum neonazista. “É uma das capitais mais limpas”, responde outro, se referindo pejorativamente à suposta não miscigenação dos curitibanos. Ambos usam pseudônimos. O tópico apenas intitulado “Curitiba” foi publicado inicialmente em 2012, mas recebe respostas até hoje, mostrando a penetração da cidade no submundo do ódio.
Obviamente, há um abismo entre o discurso na internet e atos reais de discriminação e violência. Mas elas ocorrem. Registro de confusões envolvendo neonazistas e skinheads intolerantes contra grupos que consideram rivais ou pessoas que encaram como desajustadas são frequentes. Às vezes, com consequências bem mais sérias. “Não podemos negar a existência desses grupos extremistas, seguidores de doutrinas que apregoam a diferenciação e supremacia de raças no Paraná, não raras vezes nos deparamos com incidentes envolvendo tais pessoas”, diz o delegado Fábio Amaro, da DHPP.
“A partir da criação do Setor de Atendimento a Vulneráveis na DHPP, em dezembro do ano passado, instauramos um inquérito de agressão proveniente desses grupos no qual o autor era seguidor da doutrina neonazista. Ele esfaqueou duas pessoas em frente a um bar localizado no Largo da Ordem. Esse indivíduo foi identificado, foi solicitada a prisão e busca domiciliar”, exemplifica com um caso fechado. Desde a criação do setor, foram instaurados 15 inquéritos, mais de 200 pessoas ouvidas e 35 boletins de ocorrência realizados, aponta Amaro.
Com a criação do setor de atendimento a vulneráveis, ele espera ter mais dados consolidados para entender a real situação paranaense. Talvez a realidade de um estado vizinho ajude a dar pistas do cenário daqui. Em São Paulo, onde é obrigatório incluir no boletim de ocorrência se houve ato discriminatório, foram registrados entre novembro de 2015 e novembro do ano passado 7.587 crimes de ódio – quase um crime de intolerância por hora. Destes, os com motivação racista lideram (42,4%), seguidos de homofóbicos (15,5%), intolerância de origem (12,7%) e religiosa (6,3%). Os dados são da Secretaria de Segurança do estado.
São números alarmantes, e que podem esconder uma realidade muito pior. “Estes são os crimes notificados. Mas ainda há uma série de subnotificados. A vítima pode se esconder pelo medo do agressor ou por vergonha. E se o ofensor é seu empregador?”, aponta a socióloga Maria Inês Bacellar. Ter dados disponíveis e preparar a polícia para atuar sobre eles são a fórmula ideal para cessar a intolerância.
Crises pioram o cenário
Ao longo de 2015, no auge da crise da humanitária europeia, a Alemanha assistiu ao crescimento de um partido político ultranacionalista: o Alternativa para a Alemanha (AfD, na sigla em Alemão), que bate na tecla dos “islâmicos contra o povo alemão”. Também viu uma organização chamada Pegida (sigla de Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente) ganhar adeptos e montar diversas manifestações públicas. Da mesma forma, os Estados Unidos pós-11 de Setembro tiveram uma evolução gritante no número de grupos de ódio – de 50% nos últimos 15 anos, segundo uma ONG que acompanha esta movimentação, a Southern Poverty Law Center.
O estopim para a intolerância está apontado: crises, sejam elas humanitárias ou econômicas, propiciam as posições radicais. “Um norte-americano do Cinturão Industrial que perdeu seu emprego com a migração das fábricas de automóveis para o México se sente tentado a olhar o imigrante mexicano como o causador de sua desgraça, ainda que isso seja um absurdo. Ou aquele alemão que sente intimidado com a presença síria em sua terra tende a comprar a imagem de que muçulmanos são inferiores”, destaca a socióloga Maria Inês Bacellar.
É um movimento mundial, do qual o Brasil não está livre – muitos veem a crise econômica e a ascensão de políticos que dão soluções simplistas a elas como causadoras de um movimento de radicalização mais intenso no país. Thiago Oliveira, da SaferNet, apontou à “BBC”, em fevereiro, que simpatizantes de doutrinas radicais se “sentem legitimados quando veem um parlamentar com esse tipo de discurso”.
Há outro fator, este psicológico, apontado por Adriana Dias, que desenha o perfil de quem se encanta pelo discurso do ódio. “O jovem brasileiro que é atraído por esse grupo é aquele que tem algum problema familiar e de relacionamento. Tanto é que a grande maioria das famílias, quando descobre que tem um filho neonazista, diz: ‘Nossa, eu jamais imaginei’. Muitas vezes as famílias mal sabem que o adolescente tinha a tatuagem de uma suástica nas costas, por exemplo. São jovens que têm graves problemas familiares e de sociabilização, e eles procuram nesses grupos a resposta a por que eles não dão certo na vida. Nos grupos, é dito que eles não dão certo porque alguém já ocupou o lugar que seria deles. Isso é uma grande preocupação da antropologia. O neonazista acredita que existe um lugar natural para a raça branca que é a liderança sobre as outras raças. A mídia, segundo o neonazista, é toda judaica, pois construiu um perfil de um negro quase herói no Brasil – porque ele vence no esporte, na música. Então é preciso destruir o judeu e o negro — é preciso eliminar a ameaça nordestina para que o natural, que seria o lugar do jovem ariano, se recupere. É uma paranoia construída atrás da outra”, disse a pesquisadora à “Vice”.
Estopim
O episódio na pequena cidade norte-americana de apenas 47 mil habitantes, menos populosa que o Boqueirão, teve como estopim a retirada de uma estátua de uma personalidade segregacionista que lutou na Guerra Civil dos Estados Unidos, Robert E. Lee. Três grupos marcharam contra o ato municipal: a Ku Klux Klan, os alt-right e neonazistas – todos defensores de bandeiras racista, homofóbica e anti-imigração. A tensão levou a confrontos com grupos antifascistas, resultando em uma morte e duas dezenas de feridos.
O episódio trouxe à tona novamente discussões nos Estados Unidos sobre a liberdade de expressão e de como estes legados da Guerra Civil, espalhados em vários estados além da Virgínia, devem ser tratados.
“Em vez de enxergar a obviedade do fato de os monumentos confederados ocuparem um espaço central no imaginário supremacista branco, muita gente está mascarando a questão. Ingenuamente, alguns colegas historiadores sugerem que deveríamos mantê-los como lembrete das lições sombrias aprendidas na história do Sul. Mas a que custo? O que os eventos desta última semana deixaram claro foi que, durante várias gerações, a estátua de Lee e outras como ela fomentaram a causa da supremacia branca e a violência insana que a acompanha. É por isso que as comunidades da região têm a obrigação moral de assumir a causa de removê-las. Os artefatos de ódio se perderão, mas não sua história ou significado”, opinou Karen L. Cox, escritora e professora de História da Universidade da Carolina do Norte, em artigo publicado no “New York Times”.
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