Conversa de reflexão apresentada no Ateneu Anarquista de Constituição, Buenos Aires, em 26 de agosto.
Eu acredito que sob o termo “anarquismo” entendemos, pelo menos, três coisas diferenciáveis, mas compatíveis entre si.
Em primeiro lugar, “anarquismo” pode significar um conjunto de teses acerca da ordem sociopolítica, um conjunto de teses caracterizadas, principalmente, pelo objetivo de alcançar uma ordem social livre de qualquer autoridade política, de toda a exploração econômica e de toda a metafísica religiosa. Este é o anarquismo entendido como doutrina social e como uma prática política revolucionária. Vou chamar “acratismo” este primeiro aspecto do anarquismo, um aspecto que é resumido no famoso apotegma Nem Deus, nem patrão, nem Estado.
Em segundo lugar, “anarquismo” também pode significar uma ética de igualdade e liberdade. Neste sentido, faz referência a uma moralidade prática, a um critério de comportamento para com os outros, aqui e agora, que bem resume o apotegma: nem vítimas, nem verdugos. Este segundo aspecto do anarquismo, vou chamá-lo de “ética anarquista”.
Finalmente, em terceiro lugar, “anarquismo” também pode se referir a uma filosofia da existência centrada na realização plena e singular da individualidade, livre de todos os dogmas teóricos, morais, religiosos, científicos, etc. Esta filosofia da existência pode ser resumida no também famoso apotegma de Max Stirner: “Fundei a minha causa em nada”. Tradicionalmente, tem sido chamado de “anarquismo individualista” a isso, mas isso levou a muitos erros e mal-entendidos. Por isso, prefiro referir-me a este terceiro aspecto como “anarquismo existencial”.
Embora estes três aspectos podem (mas não necessariamente) ser conjugados na mesma pessoa, creio que analiticamente, e sob o risco de ser simplório, a distinção é útil, porque se pode ser anarquista sem ser existencialmente anarquista e vice-versa; e pode-se ostentar uma ética anarquista sem acreditar na possibilidade de concretização do ideal anarquista; enfim, se pode ser cada uma dessas três coisas separadamente ou se pode reunir dois ou todos os três aspectos. Mas estimo que o sentido existencial do anarquismo é o mais profundo, porque, embora seja empiricamente possível (e mesmo muitas vezes) ser anarquista ou ostentar uma ética anarquista sem assumir o anarquismo existencial, o anarquismo existencial é a base mais forte para levar tanto ao anarquismo político (acratismo) como à ética anarquista.
Mas o anarquismo é uma doutrina, ou é a negação de todas as doutrinas?
Isso depende do que queremos dizer com “doutrina”. Sem dúvida, os anarquistas têm algumas ideias comuns (essenciais, digamos) que os define como tal, pois como qualquer definição inclui uma nota específica que exclui os seus contrários; se não, ele não se define, ele não se distingue. E se há um exemplo em que esta condição de exclusão definicional é claramente visto é na noção de anarquismo (an-arquismo, sem governo, sem autoridade, sem comando). Quero dizer, não é coincidência que a noção de an-arquismo é apresentado de forma negativa, ou seja, não para o que é, mas para o que não é. O que o anarquismo exclui é o autoritarismo, e assim, qualquer dogmatismo, forma intelectual de autoritarismo (fechamento aos argumentos). Se quiser chamá-lo de “doutrina” ao acratismo, tudo bem, o chame assim; incluso, muitos o assumem como se fosse um dogma religioso (!). Mas em qualquer caso, o anarquismo é um pouco mais profundo do que o simples acratismo (ou seja: o anarquismo é mais do que o ideal bonito de uma sociedade sem Estado ou explorados). O anarquismo é uma forma de ser, de existir, e nunca é um dogma. Já Proudhon escreveu a Marx nos seguintes termos: “Busquemos juntos, se você quiser, as leis da sociedade, como essas leis são feitas, o progresso de acordo com o qual nós viemos a descobri-las; mas, pelo amor de Deus! depois de ter demolido todos os dogmatismos a priori, não caiamos na contradição de seu compatriota Martin Lutero, que, depois de ter derrubado a teologia católica, imediatamente fez, com grandes esforços de excomunhões e de anátemas, fundar uma teologia protestante”.
Então, acredito que o principal papel da educação anarquista é formar pessoas não dogmáticos, livre-pensadores, críticos, desconfiados da autoridade, perguntonas, questionadoras, mesmo humoristas, não militantes repetidores de slogans. Ou seja: a educação anarquista, no sentido existencial do termo, não equivale a disseminar dogmaticamente o ideário ácrata. Talvez os anarquistas que se preocupam mais com o aspecto ácrata do anarquismo que, por seu aspecto existencial, sintam que isso que digo é pouco em relação aos seus ideais de transformação radical e rápida da sociedade. Para eles eu respondo que formar anarquistas, neste sentido existencial, é uma condição fundamental para o ideário ácrata de ser capaz, então, eventualmente, de inflamar sensatamente e não como um dogma fanático ou como uma forma esnobe.
Anibal D´Auria
Vídeo (43:10): https://www.youtube.com/watch?v=-JRNWjX0TwM
Fonte: http://acracia.org/anarquismo-lo-Entiendo/
Tradução > Liberto
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Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!