> Memória. Há 15 anos, a “ANA” divulgava…
A televisão aliena, manipula, desinforma, conduz à passividade. É uma droga psíquica. Pesquisas recentes demonstram que ela faz mal à saúde. Além de ser uma atividade sedentária, à qual crianças e adolescentes dedicam até mais de cinco horas por dia, induzindo à ingestão de alimentos gordurosos, que provocam a obesidade.
Enfim, criticar a TV é chover no molhado. Mas, no panorama televisivo mundial, existem experiências libertárias, alternativas, menos totalitárias, que encorajam as pessoas a não ficarem coladas ao televisor, mas serem participantes ativas.
Um exemplo dos mais recentes é a TV Utopia, de Buenos Aires, na Argentina. Uma experiência de TV autogestionária, criativa, alegre, reflexiva, rebelde… que apesar de findado, vale a pena registrar e divulgar. E a ANA conversou com um dos “ex” utopistas, Osmar Salas Fernández, um argentino pra lá de simpático, que conta a seguir um pouco da história dessa Utopia televisiva. Estamos torcendo pra que ela volte ao ar, hermanito Osmar. Por que é preciso… Sim… É preciso… Por que é tempo de revolta! É tempo de não morrer! É tempo de Utopia!!! Força!
Nascimento
Utopia nasce em 1989 e vai ao ar pela primeira vez desde um bairro muito humilde aqui de Buenos Aires, que é conhecido como “Forte Apache”. O “papai” do projeto foi Fabian Moyano, junto a outros descontrolados que se chama Walter (“capo” em eletrônica), outro compa uruguaio chamado Nelson e o irmão de Fabian chamado Adrian. Tanto Fabian como Adrian estão mortos.
Por razões de segurança o canal andou “girando” por outros bairros até que se instalou no populoso bairro da Capital Federal que se chama Caballito.
Para que se entenda melhor o nascimento de Utopia é necessário contar-te que o primeiro transmissor (coração de qualquer meio de comunicação) que tivemos foi expropriado de um ex-governador da província de “Catamara” de nome Ramón Saadi, hoje por sorte falecido.
Esta pessoa usava-o em sua província para beneficio próprio, mas um dia o transmissor quebrou, aí teve que ser trazido para a capital, para ser recuperado. Caiu nas mãos de Walter e Fabian Moyano, que eram professores de música, e foram quem viram o uso revolucionário que podia dar esse monte de cabos. Se fosse falar de Fabian daria para escrever um livro aparte.
Custos
O custo de uma TV desse tipo é sumamente reduzido. Para o pagamento dos nossos gastos contávamos, no seu melhor momento, com uns sessenta anunciantes de bairros, que pagavam quando podiam os anúncios filmados que nós mesmos produzíamos. Era mais um pagamento simbólico que outra coisa, uma troca. Anúncio de gente do comércio, frigoríficos, fretes, artigos de limpeza, lojas de brinquedos, quitandas, classes de dança etc.
Hoje, a única coisa que necessitamos para ir ao ar, é um lugar num edifício com certa altura (20 andares para cima), e aí num espaço de 2×2 metros podemos fazer “destroços”.
É certo que funcionam milhares de rádios alternativas de curto alcance, e são, pelo menos, muito valiosas, mas o que uma TV pode gerar é incalculável.
Alcance
O alcance de Utopia cobria mais ou menos 50 quilômetros em linha reta. Para ambos os lados dessa linha imaginária. A quantidade de telespectadores jamais soube, mas fizemos muitíssimo ruído em toda zona noroeste da Capital Federal e Província de Buenos Aires.
Invasão
Desde o seu começo, até o dia que deixamos de transmitir (30 de outubro, vai fazer dois anos) o canal foi invadido por autoridades policiais e despejados em 14 oportunidades. Mas Fabian colocava outras tantas vezes no ar com a ajuda imprescindível dos vizinhos.
Quem fechava a TV era o governo, não importa se chamava Carlos Menem, ia ser fechado por qualquer representante do sistema que estivesse de turno.
24 horas no ar
Desde o bairro de “Caballito” emitíamos às 24 horas do dia. A programação era sumamente variada, as 6 da manhã arrancávamos com uma bolsa de trabalho que consistia em passar aos telespectadores os pedidos de trabalho que eles mesmos nos solicitavam (reparação de eletricidade, pedreiros, cuidar de crianças, apoio escolar, serviços vários…). E mais a difusão dos avisos que colavam os comerciantes em suas vidraçarias solicitando gente para trabalhar. Nada de outro mundo, mas essas “changas” (trabalho de pouca importância), às vezes salvava o dia de algum vizinho.
Às sete começava o informativo, onde se liam os diários e os comentávamos, mais nossas notas filmadas sobre conflitos trabalhistas, marchas de aposentados, marchas sindicais, fatos de atualidade do bairro ou não, e tudo o que fosse de interesse para as pessoas. Quase sempre o que nós transmitíamos não passava na TV comercial. Os estudantes eram notícias todos os dias, e eles mesmos vinham denunciar seus problemas e gerar noticias. A participação telefônica para nós era imprescindível, e nossas linhas estavam abarrotadas de chamadas que sem limite de tempo eram “sacadas ao ar” sem nenhum tipo de corte.
Anarquia infantil
Às 8:30 aproximadamente, se as ligações permitiam, aparecia na tela uma criancinha de 10 anos, telespectador que passava desenhos animados e atendia as chamadas de outras crianças. As conversas que se davam entre elas eram um programa aparte. Os desenhos que eram transmitidos não eram os convencionais já que roubávamos os melhores (ao nosso entender) que se passavam na TV a cabo. E em muitas ocasiões (a maioria) os meninos traziam filmes que queriam dividir com seus pares. Eram duas horas de total anarquia infantil, às vezes não podíamos tirá-los do ar!
Mais filmes e noticiários
Ao meio dia passávamos dois filmes de longa metragem, ou vídeos musicais onde Silvio Rodriguez, Pablo Milanês, Caetano, Milton, Zitarroza eram como convidados de pedra, sempre estavam na programação. Concertos de música clássica, tango (pouco, mas bons) e assim…
O noticiário central era um clássico: começava às 21 horas, mas nunca saíamos do ar quando terminava. As notas se sucediam e as discussões telefônicas eram intermináveis. A favor ou contra elas sempre iam ao ar. Ninguém colocava limite de tempo e nos comíamos a cada insulto, que jamais respondíamos no noticiário, outro telespectador se encarregava disso. A opinião era respeitada ainda que, às vezes, nos prendíamos em cada uma que nem te conto. Dá-lhe que dá-lhe aos conflitos, as marchas, as repressões, as reportagens aos sindicalistas de base e a outros, aos aposentados, aos sem voz, aos estudantes, aos políticos tradicionais e aos que nunca saíram em outra TV.
Nada de gel
O noticiário das 21 horas era impagável. Houve dias, a maioria, que o descontrole se impunha, por mais que tratássemos de estabelecer um dialogo respeitoso. A realidade passava por cima de nós, e isso nos encantava.
Nada de maquiagem, nada de gel no cabelo, nada de cortes nem posturas, liberdade absoluta! Ao ponto que muitas vezes os que integrávamos o canal nos “acotovelava” por nossas diferenças de opinião.
A partir das 00:00 horas voltava à calma aparente. Três filmes eram a opção que dávamos aos telespectadores. Eles votavam por telefone qual seria o primeiro a entrar, e assim passávamos os três. Os filmes conseguíamos nas locadoras (gratuitos) ou os telespectadores cediam.
Presos
As quintas eram dias de festa. A noite estava dedicada aos presos de uma unidade carcerária que nos assistiam. Eles pediam os filmes e mandavam suas mensagens. Os filmes, por suposto, eram eróticos. E os meninos e nós, fazíamos a festa. Ninguém podia acreditar nisto, mas a comunicação que conseguíamos era impagável!
As partidas de futebol que havíamos perdido quando nos convidavam a ir jogar na penitenciária, eram desafios tão especiais que saíamos feito bolsa, já que eles ficavam dentro e nós seguíamos fora. Cada vez que havia uma “batucada” no cárcere de Devoto (unidade Carcerária N2) os primeiros, a saber, éramos nós, e para lá íamos com eles.
Por que não está no ar
A TV convencional ou comercial tem tanta, mas tanta influencia em nossas vidas, que para a grande maioria das pessoas parece impossível que outro tipo de TV seja possível. Que uma pessoa comum possa aparecer numa tela dizendo sua verdade, é como algo inacreditável. Que um operário, uma prostituta, um vizinho do bairro ou um catador de papelão diga o que vem na cabeça, sem que ninguém o corte uma só palavra é impossível de muitos acreditarem, e, sobretudo, que se respeite.
Então, Moésio, é um acúmulo de coisas que faz com que Utopia não esteja no ar. O medo, as pressões interiores, as economias e também nossa incapacidade de convencimento para demonstrar que um produto que esteve saindo durante nove anos possa estar ativo outra vez.
O desconhecimento da maioria das pessoas que não sabem da experiência do canal é tremenda, e desmoralizante. Enquanto te escrevo me vem à imagem da passagem de Quixote quando enfrenta os moinhos de vento.
É verdade que levamos nossa proposta as Assembleias de Vizinhos, também aos grupos políticos de esquerda, aos Centros de Estudantes, as Organizações de Direitos Humanos, as Mães da Praça de Maio, aos Centros de Aposentados combativos, as comunidades aborígines, as comunidades excluídas do sistema, como bolivianos, peruanos, paraguaios etc. Todos tiveram em seu momento um espaço ilimitado e livre na nossa programação, mas…
TV e passividade
Você me pergunta se essa é uma TV que não leva à passividade do telespectador. Evidentemente não é a resposta. O telespectador é a televisão. Sem a sua participação ativa não é televisão alternativa, é outra coisa, é a TV comercial. Seriamos estúpidos em acreditar em tudo que a TV nos diz, a aceitá-la sem questioná-la, a ser um fenômeno de massas que só serve para vender espelhinhos ou vidros coloridos; beba coca-cola e será loiro e feliz!
Nada de prêmios
Recebemos diversos prêmios por nossa transmissão, é verdade, dados por organismos semi-oficiais, e nunca fomos receber para não parecer que pertencíamos a um meio de comunicação do sistema. Nos mantivemos virgens a esse respeito, e nos felicitamos por isso. Talvez por isso, dormíamos todas as noites felizes de haver cumprido minimamente o nosso trabalho.
Este não é o fim, mas palavras finais…
Moésio, esta é, numa grandíssima visão geral, um canal de televisão que é parte de nossas vidas. A utopia que pretendemos reinstalar. Há muito mais para contar, mas como você sabe, o “tempo é tirano”. Pessoalmente seria um gozo impagável vê-lo novamente no ar, mas não sei expressar isso com palavras escritas, só se sente por dentro e muito intimamente.
Se andares por estas latitudes entre em contato com a gente, ademais de tomarmos uns mates (amargo), terás a oportunidade de levar algum material filmado do canal que tanto nos faz perder a razão.
Aqui estamos, quando vir, talvez nos abraçamos. Nos encantaria conhecer-te pessoalmente. De futebol, não falaremos nada, certo? Um abraço fraterno.
www.geocities.com/utopiatv.geo
agência de notícias anarquistas-ana
C í r c u l o V i c i o s o
Andei, parei e sentei.
Sentei pois cansei e deitei.
Dormi e sonhei que andei…
Alberto
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!