Familiares, amigos, companheiros que o conheceram e outros que o conhecemos depois do 1º de agosto, nos aproximamos a “25 de Mayo” [cidade na Província de Buenos Aires] para nos despedir de Santiago Maldonado [enterrado no dia 26/11, no cemitério Parque Paraíso.
A chegada ao povoado foi imprevistamente antecedida por uma retenção policial, bastante inusual na zona. Certo é que, em caminho pela rota 5, uma caravana de uns vinte veículos policiais, – entre caminhões, camionetes, ônibus e celulares – de procedência e destinos ignorados por quem os descreve – modificou substancialmente a paisagem campestre, de trânsito invariavelmente sossegado, de verde e ocre, e um intenso calor, que acompanhou a viagem de ida.
Logo, as ruas desertas, dormindo a sesta. Crianças trinando junto aos pássaros em uma praça, montando suas bicicletas. Os murais de Santiago. Os amigos de Santiago. As caras de Santiago, por todas as partes, em cartazes artesanais, em stencils, no ar.
Santiago sorri eterno desde um porta retratos, acompanhando as lágrimas de sua mãe. A avó, acompanhada especialmente, detêm o pranto com um lenço apertado, aninhado sobre seu rosto. Santiago olha, desde o porta retratos. Nessa foto, o Brujo tem um riso impossível, de par em par, aberto, luminoso.
Passam os familiares, os moradores de “Veinticinco”, os companheiros, os amigos, os comovidos. Um velório de povoado, uma esquina, à hora da sesta. Os cachorros se jogam à sombra, porque o sol é impiedoso. Se chora porque – talvez – chorar é o único que resta a alguns. Para outros, ademais do pranto, há risos, porque isso inspirava Santiago. Risos de força, de luta, de entrega.
Uma mulher, de uns 70 anos, atravessa lentamente a casa de velório. Enxuga lágrimas. Detêm seu passo na metade do caminho, e quer dizer, quer contar. Necessita. Primeiro em silêncio, empapando o lenço, por baixo, saúda. Sussurra condolências, e conclui em sua tristeza: “Isto não devia acontecer, mas fizeram que acontecesse”. Enquanto, se abria passagem para a rua, da mão de uma menina pequena, que perguntava “por que tinha que fazer fila para ver a Santi”.
Os abraços são apertados, fortes, tratam de curar um pouco, de reparar o irreparável. Mãe e avó se sustentam em muitos desses raptos de amor. Santiago observa, atrás de seu sorriso, desde o porta retratos. Seus companheiros de luta rompem em soluços, enxugam, e seguem a seu lado, alternando-se contra as paredes.
Chegam sozinhos ou de dois, as vezes de dez, em grupos de pessoas, que saúdam, e abraçam, aos parentes, aos amigos, tocam o ataúde que contêm a Santiago; se abraçam mais, e seguem. Seguem como podem, a conta gotas.
A mãe as vezes se senta e apoia sua mão direita sobre a madeira. As luzes da sala são tênues e cálidas. O sol forte da tarde se coa pelas janelas âmbar da cabeceira da sala. Essa parede da rua. Mãe e avó choram por momentos, e confirmam – ante cada abraço fraterno – que a tristeza não tem fim, e que se multiplica, reaviva, ante cada espaço de sossego. Elas abraçam a Santiago, que sorri, e olha, e abraça também, desde um porta retratos.
Alguns amigos, que querem estar ali, as vezes não podem. Resistem a entrar na capela. Santiago já não está ali, se dizem. Se foi a posar em cada uma das coisas, a fundir-se com a essência e a seiva. A falar da liberdade, como diz o hino de “La Renga”. Se bebe água, se fala muito, também há muitos silêncios impressionantes. Se sai a fumar em alguma sombra reparadora. Se segue falando, rindo e chorando, apertando a alma.
Mãe e avó custodiam, acompanham cada uma, a ambos lados do ataúde. Detrás, uma coroa floral de seus familiares. Mais além, outro arranjo, enviado por Charly García e Mercedes Iñigo, com uma frase que reza: “Los dinosaurios van a desaparecer“. E no meio, Santiago sorri para sempre, desde um porta retratos.
A passagem pela capela é incessante. Os companheiros e amigos contam, relatam, revivem, e Santiago está em cada uma dessas palavras, desses verbos. Santiago volta em cada aventura, em cada lembrança, em cada anedota. Santiago está naquela viagem, naquela comida, nessa tatuagem, em cada mural, nas ruas de “Veinticinco”, nas árvores e bancos das praças, em faixas e cartazes, em corações.
Ninguém que se tenha convertido em camiseta poderá morrer. “E nunca deixarão de nascer, porque a morte é mentira” disse Galeano. O menino, o nenê, o Lechu, o Bruxo, está por todas as partes, em cada boca, como um eco, e em cada lágrima que rega faces e campos. Em cada rosto compungido e em cada sorriso, como o dele, aí, entre os resplandores âmbar do vitral, sobre o ataúde, desde o porta retratos entre a avó e a mãe.
Fonte: http://www.revistacitrica.com/cronica-de-un-velorio-y-miles-de-muertes.html
Tradução > Sol de Abril
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