Na terça-feira (5), quatro homens e uma mulher foram levadas à 2ª Delegacia de Polícia Civil de Blumenau para prestar esclarecimentos sobre cartazes com inscrições nazistas que apareceram na cidade nos últimos meses. A suspeita é de que os cinco sejam ligados a uma organização maior, que estaria atraindo membros locais para intensificar a presença no Vale do Itajaí. Conforme o delegado Lucas Gomes de Almeida, o plano era recrutar seguidores de Hitler na região para se fortalecer e começar a atuar com mais vigor.
– É difícil se chegar à autoria. Mas se deixarmos essa situação impune, vai se propagando, vai crescendo, e daqui a pouco estarão batendo em pessoas nas ruas. Não podemos aceitar – afirma, sem se aprofundar em detalhes sobre os depoimentos “para não atrapalhar o andamento das investigações”.
Nesse caso, pelo menos, houve uma confissão: um jovem de 20 anos assumiu a responsabilidade pelos cartazes no Centro blumenauense. O outro rapaz da mesma idade guardava um revólver, uma pistola, uma espingarda, mira holográfica e munição em casa, em Itajaí, que declarou serem do avô. A única moça tem 18, vive em Indaial e namorava o líder de um grupo neonazista de São Paulo com histórico de atentado a bomba contra homossexuais e agressões a moradores de rua, punks e negros. Trocas de mensagens entre o casal no celular dela indicam relação com os cartazes.
Os dois mais velhos já são conhecidos da Justiça – também por vínculos com o nazismo. Kaleb Frutuoso, 31 anos, e Fabiano Schmitz, 28, haviam sido presos em 2014, acusados de estarem por trás das colagens que celebravam o aniversário do Führer em postes em Itajaí. Eles seriam filiados a um grupo extremista chamado White Front (frente branca, em inglês) e foram denunciados pela promotora Cristina Balceiro da Mota. O processo continua correndo e está em fase final, aguardando decisão do juiz.
Alegações do Ministério Público do Estado (MPSC) apresentadas em julho passado descrevem as circunstâncias das prisões, as evidências encontradas com os réus – incluindo peças gráficas iguais às grudadas nos postes – e a tentativa da dupla de provar inocência. “Na audiência de instrução e julgamento, os denunciados trouxeram várias testemunhas para serem ouvidas, porém, nenhuma delas contribuiu para a absolvição, pelo contrário; em alguns momentos, ao serem questionadas, acabaram confirmando a conduta criminosa”, relata a promotoria.
– Falaram que distribuíram os cartazes por brincadeira. Só que ninguém faz isso por algo em que não acredita – diz Cristina.
O advogado Evandro Maçaneiro, que representou Schmitz, disse que o material apreendido não pertencia ao cliente. A defensora pública Carla Gerhardt, a serviço de Frutuoso, não foi localizada para comentar o caso. Desde então, ele cursou Educação Física, fez parte do conselho fiscal do movimento separatista O Sul é Meu País (do qual foi expulso) e sumiu das redes sociais. O comparsa se mudou para Blumenau, onde há dois anos trabalha como garçom em uma churrascaria.
O anonimato de ambos era interrompido apenas esporadicamente, por menções em reportagens a respeito do neonazismo no Brasil. Até seus nomes entrarem no raio de ação do delegado Almeida. De Frutuoso, que ostenta o distintivo da Division Wiking (divisão militar criada pela Alemanha na Segunda Guerra) tatuado na panturrilha direita, a polícia recolheu o computador, celular e revistas sobre o tema. De Schmitz, um CD com “ataque nazista” manuscrito e uma camiseta com motivos afins. Os PCs, notebooks e celulares dos demais também ficaram sob a guarda legal. Com exceção do rapaz de 20 anos flagrado com armas em Itajaí, todos foram liberados após os depoimentos.
Os mandados de busca e apreensão e de condução coercitiva dos cinco suspeitos são consequência da Operação Hateless (sem ódio, em inglês), deflagrada em setembro. Na manhã do dia 26 daquele mês, a pouco mais de uma semana do início da Oktoberfest, o advogado Marco Antônio André se deparou com cartazes colados em frente à casa onde mora, no bairro Ponta Aguda. A ameaça do membro da Ku Klux Klan (tradicional organização segregacionista dos Estados Unidos) desenhado nas folhas era direta: “Negro, comunista, antifa, macumbeiro. Estamos de olho em você.”
– Saí pela redondeza procurando outros cartazes. Não achei nenhum, aí que percebi que o alvo era eu. A sensação foi de impotência, frustração, mas ao mesmo tempo um choque de realidade – conta.
Antifa é uma corruptela de antifascista. Macumbeiro, termo pejorativo para designar fiéis de religiões de origem africana. Além da cor da pele, André é praticante de umbanda e candomblé e milita no Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade Regional de Blumenau (Neab-Furb). E, “se hoje ser de esquerda é ser comunista”, ele aceita a pecha sem problemas. No entanto, atribui os ataques que sofreu, principalmente, ao preconceito racial.
– Sou de classe média, me chamam de doutor. Na Oktoberfest, desfilo com meu traje típico de Fritz. Quando o negro ascende em uma profissão ou ocupa um espaço que socialmente não seria dele, incomoda. Não sou eu, é o que eu significo.
Por volta do meio-dia, o advogado publicou um desabafo nas redes sociais. À tarde, o post já estava com milhares de compartilhamentos e a mídia nacional corria atrás dele. Diante da repercussão, a subseção catarinense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) emitiu nota de repúdio, na qual alertava que ignorar grupos intolerantes e tratar o assunto como fato isolado poderia ser visto como descaso ou consentimento. A secretaria estadual de Segurança entrou no circuito, determinando rigor na apuração e identificação dos culpados.
– A gente foi coletando elementos: locais, testemunhas, rastreamento na internet. Hoje o ambiente virtual é o grande reduto dos crimes de ódio, porque a pessoa acha que vai sair impune, que não tem regulamentação, que basta montar um perfil fake que nunca será descoberta – explica o delegado Lucas de Almeida.
Em 24 de outubro, novos cartazes brotaram no Centro da cidade. Diferentemente dos anteriores, eram assinados – com endereço de site e de blog – pelo grupo paramilitar ucraniano que em 2016 fora investigado no Rio Grande do Sul por pregar “pureza de raça” e “oxigenação social”. As suásticas e cruzes celtas retratadas deixavam explícito o ódio, embora seja confuso entender exatamente de quê. Em um deles, por exemplo, havia sinais de proibido com a Estrela de Davi dos judeus, o símbolo da maçonaria, a bandeira do Brasil, a foice e o martelo comunistas e, talvez representando o capital, um cifrão.
O delegado não descarta a hipótese, ainda, de os autores serem ligados aos radicais que atacaram músicos de uma banda punk em São Bento do Sul, no ano passado. Ou que sejam os mesmos que ofenderam André. Segundo Almeida, eles vêem as ignomínias que cometem não como crime, mas como um direito assegurado pela liberdade de expressão. Não é o que prevê a legislação. Os envolvidos podem ser indiciados por racismo, apologia ao nazismo e associação criminosa, com penas de até 10 anos de cadeia.
No Tribunal de Justiça (TJSC), a jurisprudência de crime de racismo relacionado a ideias nazistas que chegou à segunda instância limita-se a um único caso. O réu era Volnei Della Giustina, professor em Lages, apontado como criador de um site com conteúdo antissemita e “orientações sobre uma guerra racial”, de acordo com o processo. Descoberto por meio de uma investigação da Polícia Civil de São Paulo, ele foi denunciado pelo MPSC e condenado a dois anos de prisão em regime aberto. Em 2007, teve um recurso negado pelo TJSC.
Apesar do número ínfimo de ocorrências que vão a julgamento, Santa Catarina seria o Estado com mais simpatizantes do nazismo no Brasil: 45 mil, quase um terço do total verificado no país inteiro. É o que aponta um mapeamento feito em 2009 pela antropóloga Adriana Dias, pesquisadora da Universidade de Campinas (Unicamp) e uma das maiores especialistas brasileiras na questão. O levantamento levou em conta páginas com conteúdo nazista na internet. De lá para cá, a estimativa é de que tenham pulado de 20 mil para quase 35 mil, um crescimento de 75%.
Um recuo no tempo mostra que o eufemismo “supremacista” nem existia para rotular os adeptos da saudação “sieg heil” (“salve a vitória”, em alemão, muito popular durante o 3º Reich) e a doutrina de Hitler já prosperava por aqui. Em 1928, cinco anos antes do ditador genocida tomar o poder, a primeira célula do partido nazista no Brasil foi fundada em Timbó. A unidade na cidade do Vale do Itajaí não foi apenas pioneira no país, mas também do movimento fora da Alemanha. Com 528 filiados, o diretório estadual só era inferior ao paulista (785), superando o carioca (447), gaúcho (439), paranaense (185) e mineiro (66).
Poderia ser mais, não fosse o governo local. No livro Nazismo Tropical, que esmiúça a trajetória do partido no Brasil, a historiadora Ana Maria Dietrich escreve que, enquanto os interventores do Rio Grande do Sul, Flores da Cunha, e do Paraná, Manuel Ribas, apoiaram a difusão do germanismo sem se importar com eventuais excessos, os mandatários catarinenses Aristiliano Ramos (1933-1935) e o primo Nereu Ramos (1935-1945) se opuseram com veemência – o segundo encampou uma série de nacionalizações em escolas e associações alemãs.
O braço político-partidário do nazismo caiu na clandestinidade em 1939, pelo presidente (e ex-simpatizante) Getúlio Vargas, não sem deixar sementes no Vale do Itajaí. O fruto mais famoso germinou em 2014, quando a foto de uma piscina com uma suástica ao fundo ganhou o noticiário. A obra fica na zona rural de Pomerode, município vizinho de Timbó, e é criação de Wandercy Antonio Pugliese. O professor Wander, como é conhecido pelos alunos para os quais ensina História, nunca foi incomodado pela Justiça por isso. O titular da delegacia da cidade na ocasião, Luiz Carlos Gros, não viu nada de ilegal, nem o MP o denunciou.
Na direção oposta, a Operação Hateless se estende para não pecar pela omissão quanto ao combate ao nazismo. O delegado Almeida lembra que, no começo das diligências, muita gente – dentro da própria polícia, ressalta – menosprezou o teor dos cartazes que mancharam a paisagem e a reputação de Blumenau. O pai de um dos investigados teve a pachorra de ir à delegacia se queixar de terem pegado o notebook do filho, “em vez de prender os corruptos de Brasília”.
Vítima das mensagens, o advogado Marco Antônio André acompanha os desdobramentos na expectativa de que, comprovado o crime, os culpados sejam punidos. Paulistano, 40 anos, há 11 veio morar na cidade da mulher com quem acabou casando, uma gaúcha (branca) que conheceu pela internet. A intimidação impressa e pendurada na frente da sua casa engrossaram a lista de discriminações que encarou como blumenauense honorário – como o juiz que, em pleno tribunal, perguntou se ele era irmão do réu. Mesmo assim, evita generalizações sobre o caráter da população local.
– Blumenau não é mais nem menos racista do que qualquer outra cidade. Minha única mágoa é com a prefeitura, que não soltou nenhuma nota em solidariedade ao que aconteceu comigo.
Manifestações nazistas – relevadas ou não como besteira, coisa de moleque – não são novidade para a historiadora Marlene de Fáveri, que leciona na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Três anos atrás, ela se escandalizou com cartazes com a suástica em murais na academia. Pois os responsáveis jamais foram encontrados.
– Essa juventude que se agrega a esses grupos violentos não tem perspectiva. Falta estudo, leitura sobre História – diz.
Para a professora, a tendência de parcela dos catarinenses a ter uma visão de mundo mais conservadora, aliada à ligação que muitos dos colonizadores tiveram com o nazismo, faz com que essas ideias reverberem novamente. Em muitos casos, observa, a pessoa que alimenta pensamentos alinhados com o ideário hitlerista não se reconhece como tal. É o defensor de posições escoradas na repulsa ao diferente, na incapacidade de dialogar com opiniões contrárias e na exclusão que quer partir para briga ao ser tachado de nazista.
Marlene alerta para o risco proveniente do enfraquecimento de conteúdos humanistas das grades curriculares, preconizado na reforma do Ensino Médio. Minimizar conteúdos de História, Filosofia, Sociologia e artes em geral, diz, é negar aos jovens o debate e a reflexão. Em parte, ideias mal compreendidas sobre os regimes autoritários seriam resultado do período de ditadura militar, quando o ensino de História perdeu espaço para a Educação Moral e Cívica, que perdurou por quase duas décadas.
– Retirar esse direito é retirar possibilidade de que esses jovens tenham a formação de análise, de constatar que determinados movimentos históricos promoveram a ignorância. O neonazismo é a absoluta intolerância, o preconceito exacerbado, a exclusão, dentro disso tudo o racismo, a homofobia, a misoginia, a transfobia, o sexismo. Essas violências estão expostas, e em um momento político no qual existem parlamentares que as acentuam, isso também é um fator que leva a naturalizá-las.
Professor de História Contemporânea na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Márcio Voigt chama a atenção para o impacto do que ele define como “crise de valores” nas relações interpessoais: o ódio aos imigrantes, os ressentimentos ancestrais, as soluções baseadas na força. Ele associa essas características, verificadas em todo o mundo, com a turbulência atual no país.
– O Brasil tem uma tradição autoritária que causa muitos problemas. As pessoas não reconhecem essa ligação (da postura) com regimes extremistas, acham que não é bem por aí, que é exagero. Em parte, isso está ligado a uma falta de memória que sempre foi muito presente entre nós.
Ou seja, é melhor já ir se acostumando.
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agência de notícias anarquistas-ana
Com o vento frio percebo:
Semanas e semanas
Sem ouvir insetos.
Paulo Franchetti
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!