Com o destacamento de 2500 agentes policiais, com helicópteros, blindados, metralhadoras e toda uma panóplia de dispositivos militares e com uma retaguarda de mais umas centenas de polícias de intervenção em Nantes e Rennes, dir-se-ia que o Estado francês se preparava, em 9 de Abril, para uma guerra na zona de Notre-Dame-des-Landes [perto de Nantes].
O exército inimigo, afinal, são cerca de duas centenas de pessoas que se atreveram a opor-se (vitoriosamente, aliás) à construção dum aeroporto numa zona rural e ao mundo que esse aeroporto representava. Um mundo em que a sede de lucro se sobrepõe à proteção da natureza, ao direito ao lugar e à forma de vida que se escolhe. Onde os seres humanos são usados e descartados à medida da necessidade do dinheiro e do poder. Onde as decisões sobre os nossos sítios e as nossas vidas são tomadas longe de nós, por gente que não conhecemos.
O seu grande delito foi, durante o processo de luta, terem construído, naquele bocado da França, um outro mundo, cujo objetivo era aprender a ser o oposto do que o aeroporto representava. Um mundo a que chamaram ZAD (Zona A Defender). Aprender praticando, fazendo cerveja ou pão, cultivando campos, construindo estruturas, discutindo, lendo, partilhando saberes e oferecendo valências, lendo, vivendo. O seu delito ampliou-se com a abrangência da solidariedade que provocou e provoca e, crime dos crimes, com a capacidade de inspiração que provocou a multiplicação das ZADs, sobretudo em território francês. O grito Zad Partout! não caiu em orelhas moucas.
A capacidade de luta de quem vive, tem ou cultiva terras, ocupa terrenos ou simplesmente se desloca para a ZAD em momentos em que a solidariedade é urgente toca-nos há muito de forma especial. Nem o dinheiro, nem as ameaças, nem a polícia, os seus cães, o seu gás lacrimogêneo e as suas balas de borracha foram suficientes para que Notre-Dame-des-Landes fosse abandonada às mãos da ganância.
Toca-nos ainda mais que, ao mesmo tempo, tenham experimentado dar um salto em direção ao futuro, a formas mais humanas de relacionamento, de propriedade, de decisão, de resolução de conflitos. Alternativas concretas a acontecerem, baseadas em princípios opostos aos deste mundo de merda. Situação que quem garante os princípios deste mundo de merda não poderá nunca permitir. Porque essas alternativas deveriam ser impossíveis, contrariam os alicerces do lucro, fogem das lógicas que se pretendem universais; e pur si muove são válidas, funcionam, as pessoas sentem realmente que aquilo é melhor e mais livre do que este mundo de merda.
E toca-nos porque, também aqui, são estas experiências que os poderes pretendem derrubar. Quando querem despejar a C.O.S.A, ou quando conseguem mesmo despejar o Es.Col.A da Fontinha, a Biblioteca do Marquês, S. Lázaro, a Travêssa, a Assembleia de Ocupação de Lisboa ou, há dias, a Anomalia. Tantas outras okupas despejadas. Tantos outros projetos de vida já transformada. ZADs num certo sentido. Também elas destruídas pela força. Batalhas com um impacto, uma abrangência e uma repressão incomparavelmente menores mas que fazem parte da mesma guerra.
Aqui, na França, onde quer que seja, toda a gente que se levante por transformações profundas no funcionamento e na organização da humanidade tem e terá a nossa solidariedade. Que, apesar de poder ser pontuada com uma ou outra ação em situações que nos toquem especialmente, será sobretudo baseada na vontade de criação, apoio, manutenção e implementação permanentes dos nossos próprios espaços de alternativa, resistência e liberdade. Cultivando e criando, aqui, batalhas que sejam a continuação das que, temos a certeza, ainda se seguirão por aí.
Abraço solidário!
Porto, quarta-feira, 11 de abril de 2018
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