De ideias ousadas, Mário Domingues já defendia a independência das colônias em 1920, mas pouco se conhece dele. O sociólogo português José Luís Garcia quer tirar este nome do esquecimento.
Nascido na ilha do Príncipe no final do século XIX, Mário Domingues foi um dos primeiros a defender abertamente, em Lisboa, a independência das colônias portuguesas na África na década de 1920. Os vários artigos que escreveu naquela época, ainda distante dos acontecimentos que levaram à revolução de 25 de abril de 1974, são verdadeiros manifestos de defesa dos direitos humanos.
Mário Domingues não era uma figura simpática para a ditadura. Pouco se conhece e pouco se fala da obra de Mário Domingues, anarquista de origem africana que denunciou as brutalidades cometidas pelo Império colonial português na África. Quem tem tentado recuperar a sua história e o que então representava é José Luís Garcia. O sociólogo português anda há mais de 20 anos a estudar a obra do escritor e jornalista, marginalizado depois pelo Estado Novo.
“Apesar de ter sido um jornalista muito notável nos anos 20, 30 do século passado, em Portugal, e apesar de ser também um escritor a partir também nos anos 30, 40, 50, razoavelmente conhecido, ele ficou um pouco no esquecimento, sobretudo a partir dos anos 70, o que é uma injustiça”, conta José Luís Garcia.
Trazido com 18 anos para Lisboa, Mário Domingues (1899-1977) era filho de um colono branco, empregado de classe média, e de uma angolana, que fazia trabalhos forçados numa roça de cacau na ilha do Príncipe. Em Portugal, teve uma educação bastante esmerada por parte da família do pai na capital portuguesa, onde frequentou o liceu francês. A partir dos 19 anos, começou a escrever intensamente novelas, notícias e reportagens para vários jornais.
Humanista à frente do seu tempo
Segundo o sociólogo, o mérito de Mário Domingues deve-se ao seu humanismo e ao facto de ter tido a coragem de assumir posições políticas antecipatórias, ainda durante a primeira República, em prol da defesa dos trabalhadores negros, não só nas antigas colônias portuguesas na África, como na então chamada Metrópole.
“Tanto quanto descobri e tanto quanto sei, antes dele não se conhecem posições públicas com tanta notoriedade em órgãos de comunicação de massas, para mais vindas de alguém da condição negra, proclamadas aqui em Portugal”, explica José Luís Garcia. “Ele é virtualmente o primeiro autor de uma visão favorável à independência das antigas colônias nos anos 20”.
O especialista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa diz que isso deve-se à ligação e conhecimento que Mário Domingues tinha, como intelectual, da luta dos negros nos Estados Unidos da América (EUA) e das várias fações favoráveis à condição negra na Europa do Norte.
“Ele conhecia bem, por exemplo, o pensamento de William Edward Burghardt “W. E. B.” Du Bois – que é uma das figuras mais importantes da defesa dos negros nos EUA e que esteve ligado também à fundação da própria Libéria.”
Nessa altura, ainda não se conhecia qualquer ação ou manifestação pró-independência que viria a ser assumida mais tarde pelos movimentos nacionalistas que encabeçaram a luta de libertação na África.
Viveiro de mentes revolucionárias
Naquela época, estes eram temas tabu numa “ditadura extremamente repressiva”. E, segundo o acadêmico português, Mário Domingues não teve ligação com a geração seguinte, que frequentou a Casa dos Estudantes do Império (CEI), criada em 1944 durante o regime salazarista.
“Entre a geração de Mário Domingues, dos anos 20 e 30, e a geração dos finais dos anos 50 e 60 há um hiato, uma distância, que não permitiu que essa relação fosse direta. Quem tem essa ligação com a geração seguinte é o filho, Alfredo Pimentel Domingues, um importante pintor português ligado à fundação do grupo surrealista de Lisboa. Aquele movimento que se deu em Lisboa, onde estavam personalidades como Amílcar Cabral, Agostinho Neto e outros, na Casa dos Estudantes das colônias, provavelmente não terá tido contacto, porque não se nota nos seus escritos que tenha acontecido”, explica.
Ao contrário do que pretendia o Estado Novo, que era congregar a Mocidade Portuguesa, a CEI, encerrada por Salazar, em 1965, funcionou como uma espécie de viveiro de dirigentes africanos, que mais tarde constituíram os movimentos de libertação pela independência de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.
“O que acontece é que todo esse processo vai ser extremamente reprimido e praticamente vai desaparecer durante o período do Estado Novo, até que surgem então esses estudantes que vinham das antigas colônias e que se começam a organizar. Alguns deles já trazem uma certa consciência favorável à independência. Outros forjaram-na também aqui”, descreve José Luís Garcia.
Recordar Mário Domingues
Falecido em 1977, Mário Domingues enfrentou a prolongada ditadura do Estado Novo de Salazar e Marcelo Caetano, mas ainda sobreviveu o suficiente para ver a revolução de 25 de abril de 1974 e o processo de descolonização e independência dos países africanos de língua portuguesa.
“O derrube da ditadura por parte dos militares está diretamente ligado ao declínio e fim do Império [colonial] português, depois do desgaste de uma guerra muito prolongada fora do palco continental de Portugal, com destacamentos numerosos de jovens a combater por uma causa que não era justa”, afirma o sociólogo.
Depois da investigação que fez, José Luís Garcia está a finalizar um livro, que inclui um ensaio biográfico de Mário Domingues. Além disso, quer realizar uma exposição, em 2019, na Biblioteca Nacional, para permitir um melhor conhecimento deste visionário que considera ser uma personalidade da literatura e do jornalismo português. Trata-se de “uma tentativa”, refere, para “colocar o seu nome no plano dos grandes lutadores negros pela independência dos antigos impérios” coloniais.
> Foto: Mário Domingues discursa em um evento em Lisboa
Fonte: http://www.dw.com/pt-002/o-anarquista-que-denunciou-a-brutalidade-colonial-portuguesa/a-43514237
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