A primeira vez que vi esta fotografia me impressionou a desenvoltura com que caminhavam estas três mulheres (da esquerda à direita): Lucía Sánchez Saornil, Emma Goldman e Christine Kon-Rabe [1]. Lucía e Christine tem o gesto dirigido à mulher de mais idade, Emma Goldman, que muito bem podia estar falando a suas companheiras no momento em que se fez a foto.
por Laura Vicente | 20/05/2018
Não só é o andar decidido destas três mulheres o que me chamou a atenção, sua gestualidade, influenciada pelo penteado e o vestuário, transmite autonomia e determinação [2].
O penteado mais transgressor corresponde a Lucía que tem o cabelo à la garçom, um corte de cabelo que apareceu nos anos vinte após a Primeira Guerra Mundial. Após haver ocupado todo tipo de postos de trabalho na retaguarda, muitas mulheres não estavam dispostas a voltar para casa como se nada tivesse acontecido e, na França, algumas das que reclamavam a igualdade cortaram o cabelo e adotaram um estilo andrógino que lhes valeu o nome de garçones. Nos Estados Unidos foram as flappers as que com seu cabelo curto e suas maneiras masculinas se rebelaram contra a moralidade imperante. Essa mesma realidade, uma guerra na qual os papéis de gênero ficaram também pulverizados, pode impulsionar Lucía, cuja orientação sexual lésbica parece clara, ao adotar este modelo andrógino completado por seu vestuário: calça, americana, camisa branca e gravata.
Nem Emma nem Christine cortaram o cabelo à la garçom, ambas conservaram o cabelo longo recolhido em um coque (com tranças no caso de Christine). A diferença geracional entre ambas se percebia na roupa posto que enquanto Emma levava de forma descuidada um sobretudo por cima dos ombros e a roupa escura, Christine levava roupa mais ajustada, saia mais curta e destacava o detalhe do lenço e a carteira na mão.
A de mais idade, Emma, estava muito próxima de completar os setenta anos, Lucía acabava de entrar nos quarenta, enquanto que Christine se aproximava dos trinta. Mulheres de três gerações diferentes se utilizamos o critério de que a geração vem marcada pelo pertencimento a uma mesma década. Outro critério muito diferente estabelece que deve haver trinta anos de diferença entre uma geração e a outra, desta forma Goldman seria de uma geração diferente a Sánchez – havia 26 anos de diferença entre ambas – e a Kon-Rabe – 42 anos entre ambas -. No entanto, Sánchez e Kon-Rabe seriam da mesma geração posto que a diferença de idade entre ambas era de 16 anos.
Sabemos com exatidão quando e onde foi feita esta fotografia posto que o original está depositado no arquivo da Fundação Anselmo Lorenzo (FAL) [3]. A fotografia foi feita em Barcelona em 20 de outubro de 1938 na terceira viagem de Emma Goldman a Espanha [4], durante a guerra civil, único acontecimento que conseguiu reunir a estas três mulheres. Emma Goldman visitou a Espanha em três ocasiões, entre sua primeira estadia (setembro a dezembro de 1936) e a terceira (setembro a novembro de 1938) [5], transcorreu um lapso de tempo de pouco mais de dois anos.
Lucía Sánchez e Christine Kon-Rabe é muito provável que se conheceram na cidade de Valência [6]. Sánchez Saornil saiu de Madri em meados de 1937, se transladou a Valência e se integrou na redação do semanário gráfico Umbral que apareceu em 10 de julho de 37. Ali conheceu a América Barroso (Mery) que entrou na redação por meio de Mateo Baruta, companheiro de Christine Kon-Rabe. Baruta havia sido secretário de Federica Montseny quando ocupou o cargo de Ministra de Saúde e Assistência Social, portanto vivia em Valência. Lucía e Christine se conheceram em Valência no entorno da redação de Umbral.
Não se pode descartar que Emma Goldman conhecera a Lucía e Christine em sua segunda viagem. Goldman aterrizou em Barcelona em setembro de 1937 e esteve em Valência em duas ocasiões (antes e depois de visitar Madri). Foi nesta cidade na qual pode coincidir com Lucía e Christine em torno das atividades da recentemente fundada SIA (Solidariedade Internacional Antifascista). Esta organização fundada pela CNT-FAI e as Juventudes Libertárias dispunha de uns Estatutos elaborados em finais de maio de 1937 [7]. Se tratava de um organismo humanitário e político que pretendia criar uma organização de solidariedade internacional em defesa da revolução social na Espanha. A estrutura organizativa, contida nos Estatutos, estava formada pela Comissão Executiva que se compunha de um Secretário Geral, o primeiro foi Pedro Herrera, o Tesoureiro, o Contador e os Vogais que se distribuíam as funções a realizar: Propaganda, Estatística, Relações e outras. Ademais existia um Conselho Geral para a organização das agrupações internacionais.
Tanto Umbral como a Comissão Executiva da SIA se transladaram a Barcelona nos últimos dias de 1937 ou os primeiros de 1938. SIA renovou sua Comissão Executiva sendo nomeado Secretário Mateo Baruta, Lucía Sánchez em Imprensa e Propaganda, Christine Kon-Rabe em Relações Estrangeiras, José Carrasquer em Contabilidade e Aurea Cuadrado em Assistência Social (Lucía e Aurea eram de Mujeres Libres). Tanto Umbral como SIA se instalaram no mesmo edifício, c/ Pi e Margall, 20.
Em setembro de 1938 Emma Goldman viajou pela última vez a Espanha, em 1º de outubro participou da sessão plenária ordinária do Conselho Geral de SIA [8] em Barcelona acompanhada de Lucía Sánchez na Secretaria, Mateo Baruta como Vice-Secretário, Fidel Miró em Propaganda e Lucas em Contabilidade. Abriu a reunião Lucía Sánchez que, “visto que a língua espanhola causa dificuldades à camarada Emma, se designa à camarada Cristina Kon, agregada de Propaganda e Secretaria de atas das reuniões, como intérprete” [9] pelo domínio que tinha de vários idiomas. Nesta reunião temos a constatação de que as três mulheres se conheciam, estavam vinculadas à SIA e é possível que a foto foi feita esses dias da reunião do Conselho Geral.
A implicação da organização Mujeres Libres na SIA foi muito importante posto que a ação humanitária deste organismo se desenvolveu na retaguarda onde as mulheres tinham um papel protagonista. Não podemos esquecer que estas três mulheres que caminham com desenvoltura são feministas (ao menos Lucía e Emma com segurança), Lucía teve um grande protagonismo em Mujeres Libres e foi uma das três redatoras da revista Mujeres Libres, Emma Goldman apoiou a revista desde o princípio como uma iniciativa fundamental para capacitar às anarquistas. De fato, Mercedes Comaposada enviou a Emma dois créditos em julho de 1937 em que a nomeavam “correspondente e representante das Publicações Mujeres Libres na Europa e nos Estados Unidos da América”, assim como representante e “delegada da nova Federação Nacional de Mujeres Libres” que se iria adotar em agosto [10]. Não temos evidência de que Christine colaborara de alguma maneira com Mujeres Libres ou com a revista mas não o podemos descartar posto que a maioria dos artigos eram anônimos.
A guerra civil e a revolução haviam convertido algumas cidades como Madri, Barcelona ou Valência em uma autêntica Babel onde se falavam diversas línguas [11], era o caso de Emma e Christine que ademais eram de origem judia. Só a conjuntura europeia, com a extensão do totalitarismo e do fascismo, e a própria guerra civil espanhola como antecipação da guerra civil europeia, pode explicar que duas dessas três mulheres que caminhavam unidas foram judias.
Emma Goldman nasceu em uma família de judeus ortodoxos e emigrou aos Estados Unidos com 16 anos, ali conheceu Aleksander Berkman, um judeu russo, que foi seu principal companheiro de vida. No entanto, Goldman, e possivelmente Kon-Rabe, faziam parte do internacionalismo de resistência no qual primava a classe por cima da questão judaica. O internacionalismo era o horizonte da aspiração socialista a uma justiça universal, a luta pela emancipação da Humanidade converteram a identidade judia em um dado sem importância. Neste sentido, a Revolução espanhola de caráter anarquista foi um polo de atração para qualquer revolucionário/a e também daquelas pessoas de ascendência judia como as duas mulheres desta fotografia. É muito possível que Emma e Christine se comunicaram em yiddish por sua origem europeia oriental, desde logo Emma o falava, coisa que lhe havia permitido informar-se de temas muito diversos tanto nos Estados Unidos como na Rússia revolucionária [12].
Esta fotografia nos oferece, portanto, a vida de três mulheres que se entrecruzaram em Barcelona nos últimos dias do verão (com segurança em princípios do outono) de 1938, mulheres que se empoderaram para ganhar em autonomia pessoal. Nada tinham que ver entre elas mas a Guerra Civil, e a Revolução conseguinte, provocaram que suas vidas se entrecruzassem de maneira inevitável faz oitenta anos. Três mulheres anarquistas e feministas foram captadas por uma câmera enquanto caminhavam decididas e convencidas de que um mundo novo era possível para elas.
[1] A primeira pessoa que me indicou o nome de Christine e, posteriormente, me deu outra referência sobre a fotografia foi Thiago Lemos.
[2] Sou da opinião que a maneira de vestir ou o corte de cabelo revela muito das pessoas, sejam homens ou mulheres. Sou consciente que às mulheres se julgam mais que aos homens por sua roupa ou penteado, mas este artigo nasce por uma fotografia e a gestualidade, a roupa e o penteado são importantes para explicar minha decisão de escrever este artigo e, talvez, no futuro um trabalho mais extenso.
[3] A fotografia (tamanho 9 x 12 cm), se pode consultar em: http://fal.cnt.é/fondos/?q=node%2F29690)
[4] José Peirats (2011): Emma Goldman. Anarquista de ambos mundos. La Linterna Sorda, Madrid. Na edição deste livro a fotografia se situa na segunda viagem de Emma Goldman (setembro-novembro de 1937).
[5] Houve uma segunda estadia entre setembro e novembro de 1937.
[6] Goldman e Sánchez Saornil puderam coincidir em Madri na primeira viagem da primeira em novembro de 1936, mas dificilmente Kon-Rabe que se deslocou a Barcelona quando soube que havia se produzido a revolução espanhola.
[7] Os Estatutos da SIA foram aprovados pelo Governo da República em 8 de junho de 1937. International Institute of Social History. Emma Goldman Papers. Inv. nr. 297
[8] As sessões plenárias se celebravam trimestralmente e com uma ordem do dia fixa registrada nos Estatutos. International Institute of Social History. Emma Goldman Papers. Inv. nr. 297.
[9] Assim fica registrado na ata da SIA de 1º de outubro de 1938. International Institute of Social History. Emma Goldman Papers. Inv. nr. 298
[10] Assim fica registrado em dois documentos assinados (em 1º e 30 de julho de 1937) por Mercedes Comaposada como redatora da revista. International Institute of Social History. Emma Goldman Papers. Inv. nr. 300.
[11] Esta referência de uma Babel se aplicava a Barcelona em José Peirats, 2011: p. 250.
[12] As referências ao tema do anarquismo e o judaísmo no capítulo 2 “Vectores del Internacionalismo” no livro de Yago Mellado López (2017): El anarquismo no espejo judío. FAL, Madrid.
Fonte: https://www.elsaltodiario.com/alkimia/una-foto-un-mundo-nuevo
Tradução > Sol de Abril
agência de notícias anarquistas-ana
Primeira chuva de inverno —
O macaco também quer
Uma capinha de palha.
Bashô
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!