por Mirna Wabi-Sabi
Domingo à tarde, 6 pessoas, algumas das quais tinham acabado de se conhecer, estão na praia bebendo cerveja, jogando Frescobol e conversando. Uma das mulheres começa a falar sobre como é irritante quando seus vizinhos tocam música alto demais, e como a Lei que proíbe esse comportamento deve ser o suficiente para que essas pessoas se comportassem respeitosamente. Uma mulher mais branca e tatuada discorda, dizendo que a Lei não é necessária nessas situações e faz mais mal do que bem. Ela recita confortavelmente slogans anarquistas: “A Lei não protege as pessoas, oprime a grande maioria e é imposta de forma seletiva. A Lei só existe para proteger os interesses da Elite!”. Então um jovem operário, com filiações comunistas e um cigarro, responde dizendo que certas leis são importantes para proteger os direitos de trabalhadores como ele.
É então que Nina fala. Quanto mais palavras saem de sua boca, mais intenso seu tremor se torna, e maiores tornam-se as lágrimas rolando de seus olhos.
Não leia o parágrafo a seguir se grave abuso físico, emocional e sexual forem gatilhos severos para você.
Nina é mãe de três, mas sua idade e estatura não mostram isso. Ela estava grávida de 2 meses quando foi presa e estuprada por policiais. Ela deu à luz na prisão e testemunhou o abuso de muitas outras mulheres. Toda noite elas se preocupavam sobre quem seria a próxima. Alguns casos foram ainda piores que os dela, como a mulher que foi violada com um cabo de vassoura e voltou sangrando. Mesmo após denunciar a juíza e ser levada ao médico para testes, os agressores permanecem impunes.
“Eu me senti suja, como se eu fosse lixo” ela fala enquanto se abraçando. Não há cobertores, abraços e palavras como “Não, eles são lixo. Eles são o lixo imundo, não você” para fazer esse tremor passar. Ela sabe os nomes de cada um e não tem medo de denunciá-los, mesmo que isso signifique colocar sua vida em risco.
Ela teve tuberculose e comia horrivelmente: carne congelada, comida estragada e falta de água. Os policiais falavam que o orçamento era de 2 mil reais por presas, e Nina afirma que não há absolutamente nenhuma possibilidade desse dinheiro estar chegando até elas. Desmascarar desvio é importante, mas também é importante ressaltar que focar na melhoria do sistema é inútil. Não adianta pedir para ser protegida por um sistema que é criado e sustentado por pessoas cujos interesses dependem de manter mulheres como ela desumanizadas e com o menor nível de auto-estima.
Quando sua filha foi molestada, ela tomou a Lei em suas próprias mãos, porque ela sabia que o Sistema Judicial não estava lá para proteger seus direitos. Está ali para criminalizar dissidência capaz de prejudicar a capacidade do governo de funcionar. Operar fora da lei é o caminho para combater as injustiças perpetradas pelo Estado, para inviabilizar o governo de funcionar, e para retomar o controle de nossas próprias vidas.
Não há melhor maneira de sustentar o Estado, e a capacidade do governo de funcionar, do que convencer pobres de que não merecem Direitos, de que não merecem proteção. Isso porque, se os Direitos fossem assegurados a todos e todas, o governo teria que se tornar algo totalmente diferente. Teria que deixar de existir.
Por exemplo, o fundador de direita da ONG Turning Point USA disse: “Você realmente acha que Rosa Parks era uma heroína? Eu acho que você esqueceu que ela é famosa por quebrar a lei.” Você poderia pensar que este orgulhoso estadunidense branco venera a constituição de tal forma que ele acredita que não há desculpa para violar a lei, mesmo por uma causa justa. Esse não é o caso, porque até ele quebrou a lei quando sua ONG endossou políticos republicanos e compartilhou informações pessoais de seus membros para campanhas conservadoras.
Qual é a diferença entre Rosa Parks infringindo a lei e esse conservador genérico infringindo a lei? Uma violou a lei em uma tentativa de minar a capacidade do governo de funcionar, e o outro infringiu a lei para proteger a capacidade do governo de funcionar. O racismo institucional é uma ferramenta indispensável para viabilizar o funcionamento do governo. Como? Fronteiras, exploração econômica de países não-brancos “em desenvolvimento”, o sistema prisional gerando lucros, assassinato impune do contingente marginalizado da população, e assim por diante. Esta é a distinção entre crimes que você pode e não pode cometer.
O crime pelo qual as mulheres são mais presas no mundo é o de tráfico de drogas. Em primeiro lugar, no Brasil, a linha entre um usuário e um traficante é definida por juízes, não por quantidade. Alguns alegam que é porque os traficantes podem usar esse “teto” para escapar da punição. Na prática, isso é usado para criminalizar pessoas que juízes não acreditam poder usar sem vender; uma criminalização da pobreza. O nosso anterior Ministro da Justiça chegou até a admitir que a distinção entre um criminoso e um cidadão inocente é feita ao “olhar nos olhos”, o que significa basicamente um vasto leque de potencial para discriminação baseada em raça, classe e gênero.
Em segundo lugar, vamos nos perguntar por que o tráfico de drogas é ilegal. O tráfico de drogas é considerado uma ameaça à saúde pública, como produtos químicos tóxicos em alimentos, cosméticos, ou poluição do ar e da água. Enquanto as indústrias destroem o planeta e os nossos corpos, os usuários de drogas e os distribuidores de baixo nível são os que servem a sentença (em um sistema judicial que nem por um momento questiona o que realmente leva ao vício).
A Volkswagen pode manipular seus testes de emissões e se safar com um tapa na mão. Por quê? Porque o crime deles foi uma tentativa de sustentar a frágil economia capitalista, o que é crucial para manter o motor do governo funcionando sem problemas. Um executivo da Volkswagen passou menos tempo atrás das grades do que um manifestante preso por carregar Pinho Sol (Schmidt passou 40 meses de liberdade supervisionada, enquanto Rafael Braga, bom, nós sabemos…). O tráfico de drogas, assim como protestos, não está lá para beneficiar o governo. É uma indústria que sustenta a soberania da comunidade que o governo trata como excesso de contingente.
A soberania do gueto é uma enorme ameaça ao status quo; ao Estado. O crime organizado pode ser poderoso o suficiente para negociar com o Estado, mas o grande número de pessoas que servem sentenças são as que menos se beneficiam de estar em qualquer dos lados da mesa de negociações.
A auto-estima danificada de Nina é no melhor interesse do Governo, porque se ela tivesse a ambição e os recursos para cultivar soberania pessoal e política, ela a usaria para tornar obsoleto o sistema que procura destruí-la e destruir sua família. Alguém realmente pensa que se ela sugerisse maneiras para o sistema melhorar e pedisse “por favor” que alguém iria cumprir? Esperar que ela implore é apenas uma perpetuação do abuso. Devemos torcer por sua coragem de se levantar e resistir, e nunca mais exigir obediência.
>> O texto em inglês: https://godsandradicals.org/2018/07/07/outlaw-women/
agência de notícias anarquistas-ana
Tamborins batucando
na janela.
Chuva de pedra.
Ademir Antônio Bacca
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!