Massimo Serini, também conhecido como Alfredo, é um anarquista romano, e concedeu entrevista por e-mail à ANA. Ele viveu desde 1996 até 2016 na República Dominicana, onde fez parte do Centro Social Cibao Libertario em Santiago de los Caballeros e de outras iniciativas libertárias. Atualmente mora em Roma, capital da Itália. Nesta entrevista ele falou um pouco sobre o panorama anarquista atual em Roma. Confira a seguir.
Agência de Notícias Anarquistas > Como começou seu envolvimento com a anarquia, ou anarquismo?
Massimo Serini (Alfredo) < Desde que tenho memória sempre fui atraído pelas ideias e práticas anarquistas; mesmo antes de conhecer a palavra anarquia. Percebendo minha sensibilidade contra as desigualdades sociais e minha rebelião contra o comando institucional e as regras da “tradição” do meu entorno, foi um pensador bedel, socialista e livre pensador de minha escola primária na pequena cidade do Sul da Itália, onde morava, que me revelou: “… olha, você é um ‘anarquista’. Há pessoas muito próximas a você que se dizem assim. Existe até um semanário, “Umanitá Nova“, que expressa essas atitudes há anos”. Eu acho que não tinha mais que 11 anos. Desde então me senti menos sozinho e menos “louco”…
ANA > Roma é uma cidade com forte tradição anarquista?
Massimo < Muito recentemente houve investigações notáveis de históricos libertários sobre o anarquismo em Roma. Referem-se principalmente a três períodos: antes da ditadura fascista (final de 1800-1922), durante a ditadura (1922-1945) e o imediato pós-guerra (1946-1968). Nestes estudos tornam à luz a figura de lutadores, perseguidos, pensadores, e se recuperam a memória de lutas, obras, grupos e coletivos do passado, o que pode, sim, permitir falar de uma tradição anarquista na cidade.
Mas foi a partir de 1969 que também o movimento romano teve um grande florescimento, empurrado não apenas, como aconteceu em todo o mundo, pela consequência de uma tomada geral de consciência libertária capitaneada pelo movimento de “1968”, mas também porque o evento mais grave, conhecido como “La Strage di Stato” (“Estrago do Estado”), um atentado sangrento ocorrido em Milão, que foi falsamente atribuído aos anarquistas, e sacudiu toda a península italiana, levando muitos a mostrar solidariedade e simpatizar com os anarquistas até aderindo aos seus ideais.
O vínculo entre o movimento anarquista romano, residual, do “pós-guerra” e o improvisado e florescente, do “pós-68” foi, sem dúvida, encarnado por um casal: “Aldo e Anna” (Eraldo Rossi e Maria Anna Pietroni). Os dois, que vieram da experiência da luta de resistência ao fascismo, também marcaram a geração sucessiva de anarquistas, os “pós-sessantottinos” e tornaram-se figuras míticas de referência para todos os militantes anarquistas em Roma, por sua capacidade organizacional, sua disponibilidade, seu compromisso incansável e abnegado e também como responsáveis pro tempore de escrever semanalmente o Umanità Nova, que estava atravessando nestes períodos tão turbulentos, um momento de grande difusão.
Infelizmente, Aldo e Anna, com pouco mais de 50 anos, morreram em um acidente de trânsito em abril de 1975, deixando uma lacuna enorme, especialmente entre os jovens que haviam se aproximado do movimento nos últimos anos.
ANA > Você participa da Biblioteca L’Idea de Roma, poderia falar um pouco sobre ela?
Massimo < Embora eu não seja diretamente um membro deste projeto, eu o conheço muito bem e participo frequentemente das iniciativas e atividades promovidas pela mesma Biblioteca.
L’Idea, no bairro de Pigneto, é uma biblioteca autogerida e autofinanciada com mais de 20 anos de vida. Também mantém um notável arquivo de documentos e textos dos movimentos (não apenas anarquistas) de luta e revolucionários de 1800 até hoje. Em seu projeto estão incluídos, a “distro” de edições anarquistas e a publicação de textos.
ANA > Há outros espaços anarquistas em Roma?
Massimo < Há muitos outros espaços anarquistas em Roma e eu não conheço todos eles (não faz muito tempo que voltei a viver nesta cidade após 20 anos de ausência), entre eles:
Uma livraria, “Anomalia“, no bairro de San Lorenzo, que também é um importante centro de documentação anarquista.
Dois espaços que acomodam grupos politicamente próximos da FAI (Federazione Anarchica Italiana), incluindo o “Cafiero“, que é o espaço anarquista mais antigo da Capital, na Via Vettor Fausto, no bairro de Garbatella, ativo, naquelas instalações, sem interrupção desde 1946.
Um espaço no bairro Quarticciolo, compartilhado por duas realidades diferentes: a Biblioteca Sabot, com sua biblioteca e “distro”, ativa na luta anticarcerária, e Anarkivio Errico Malatesta, onde são guardados textos e materiais históricos produzidos pelo Grupo Malatesta em seu meio século de atividade (1974-2014), além de sua biblioteca.
Um espaço no bairro de La Marranella do coletivo NED, um grupo muito ativo territorialmente e nas lutas sociais e anticarcerárias.
Uma meia dúzia de squats (Torre Maura, Bencivenga, Laurentino 38, Ateneo, ZK, Bilancione, os três últimos na área da “Costa Romana”) com aberta, ou pelo menos substancial caracterização ácrata, onde, além da experimentação de um convívio entre indivíduos baseado em acordos voluntários e livres, se realizam atividades, iniciativas e lutas sobre os vários temas (animalismo, antissexismo, antirracismo, anticarcerário, ambientalismo…).
A Biblioteca BAM (Biblioteca Abusiva Metropolitana), bem enraizada territorialmente, no bairro de Centocelle, que é uma realidade “mista”, não exclusivamente anarquista, mas com conotações anarquistas fortes.
Há muitos outros espaços, não estritamente e declaradamente anarquista, que melhor são genericamente libertários (okupas, centros sociais, bar/livrarias, bares, pub…), onde ocorrem e se reúnem muitos compas e também se organizam apresentações de livros, performances artísticas e peças de teatro, projeções de filmes, eventos e atividades, muitas vezes com nuanças anarquistas óbvias, que seria muito difícil tentar listar aqui nesta breve entrevista.
ANA > Em Carrara, conhecida como berço do anarquismo italiano, há alguns monumentos em homenagem aos militantes anarquistas. Em Roma acontece o mesmo?
Massimo < Posso estar equivocado, mas não me recordo de monumentos em Roma em homenagem de militantes anarquistas, como, ao contrário, sim, há, lembro, em outras cidades italianas, como Carrara, Livorno, Pisa, Milão, Ancona…
Em Roma o que se encontra, que eu tenha conhecimento, são placas comemorativas raras, como a que recorda Errico Malatesta, na fachada da casa onde viveu, ou algumas lápides como uma homenagem a Pietro Gori em Civitavecchia.
Algumas placas e lápides comemorativas, durante os anos, foram removidas.
Há uma interessante pesquisa da Biblioteca Franco Serantini di Pisa (BFS) sobre o tema dos monumentos em homenagem aos anarquistas na Itália¹.
ANA > No geral, como está o “movimento anarquista” em Roma? Goza de “boa saúde”? Hoje, quais principais lutas estão sendo levadas a cabo?
Massimo < Com essa pergunta, entramos diretamente em avaliações e julgamentos ultra-pessoais e subjetivos. Para mim, a situação é derivada da descrição dos espaços e realidades feitas acima. Em Roma há muitas realidades que fazem referência, mais ou menos abertas e explícitas, ao movimento ácrata, mas quase sempre, cada um movendo-se em vários terrenos, expressando na prática, tendenciosamente, suas prioridades.
Hoje, alguns estão presentes e ativos, especialmente nas lutas sociais, outros mais especificamente no mundo do trabalho, outros estão envolvidos em pesquisa histórica do anarquismo, outros nas reflexões e consequente difusão do ideal e das práticas anarquistas, outros estão em uma perspectiva insurrecional, outros experimentando uma convivência baseada em acordos e pactos livres, outros na luta contra a prisão (há também ácratas de Roma, ou em Roma, detidos). Sem mencionar todos os outros campos de intervenção, ou temas, que cada um escolhe como privilegiados, de acordo com suas análises e sensibilidades.
E as trocas e colaborações entre todos não são constantes.
Portanto, parece-me, é um movimento não homogêneo, que enfatiza o que é uma característica atual do movimento ácrata em todo o mundo, diversificado e fragmentário. Se isso é evidência de boa ou má saúde depende do ponto de vista.
ANA > Há algum projeto anarquista que você destacaria na sua cidade?
Massimo < Pessoalmente, eu não destacaria um projeto particular do anarquismo em Roma, mas essa característica apenas mencionada.
ANA > O movimento anarquista romano tem muitas mulheres, é equilibrado, ou é um universo predominado por homens?
Massimo < Pelo que pude ver durante os últimos dois anos, desde a minha volta, não há, no presente movimento romano, uma diferença óbvia em relação ao sexo, nem como presença numérica nem como relevância das contribuições, Quando saí, faz mais de 20 anos, na verdade, ainda existia, de fato, uma predominância infeliz, contraditória e “suspeita” de figuras masculinas, mas tem, ao longo do tempo, se equilibrado.
ANA > E há rádios livres?
Massimo < Em Roma, existe há 40 anos a Rádio Onda Rossa. É uma emissora do “movimento antagonista”, no qual, no passado, alguns grupos anarquistas empreenderam programas autogestionados.
ANA > E o panorama das publicações anarquistas em papel? Em alguns países, infelizmente, percebemos que o meio digital já superou o impresso. E aí?
Massimo < Nesse quesito, o ponto de vista me parece, infelizmente, unívoco: não acho que haja atualmente uma publicação (jornal, revista) impressa em Roma.
Por incrível que pareça, não havia percebido isso, até essa pergunta direta da ANA.
O paradoxo é que na Itália e em língua italiana se publicam hoje muitas publicações impressas, como diários, revistas, jornais (para não mencionar os “a-periódicos” incontáveis), alguns de muitos anos (Umanità Nova, A-Rivista, Seme Anarchico, Sicilia Libertaria, Germinal…) e outras mais recente (Il Giorno e le Notti, Vetriolo, Negazine…) e talvez isso do anarquismo em língua italiana seja um fenômeno em contratendência mundial. É verdade que em outros lugares as publicações estão se tornando quase todas digitais…
ANA > A extrema direita também cresce em Roma? Se cresce, quais as razões?
Massimo < Há sinais fortes de crescimento da extrema direita também em Roma; uma cidade que, em todo caso, sempre sofreu sua presença e raízes, especialmente em determinados bairros.
As razões para esse crescimento são várias e, acredito, comuns na maioria, para aqueles que determinam o mesmo fenômeno em outros lugares. Uma crescente percepção de insegurança, real e/ou inculcada, não meramente econômica, que gera e fomenta mitos supremacistas e comportamentos atropeladores.
ANA > E como o movimento anarquista se insere nesse contexto?
Massimo < A extrema direita nesta fase, neste momento, não parece ser muito diferente a respeito da mesma direita no Poder (o Ministro do Interior [Matteo Salvini] é atualmente um cripto-fascista, nem sequer tão crítico). Seu lema é tranquilizar as “pessoas comuns” contra o “inimigo”, que agora foi individualizado em “invasores”: aqueles que fogem de suas terras em busca de sobrevivência, desesperados por conflitos, perseguições, miséria, fome…
Os anarquistas, aqui em Roma, refletem sua situação diversificada: alguns grupos e indivíduos participam do “movimento antifa”, que reúne muitas realidades diferentes, identificados essencialmente com consignas e práticas antifascistas, como um denominador comum; outros tentam diretamente com atividades em defesa dos imigrantes e lutando com eles contra, por exemplo, o mal afamado CIE (Centro de Identificação e Expulsão) e da discriminação das pessoas que são vítimas diárias, outros fazem atividades de contrainformação, muito necessária, portanto, considerado o “volume de fogo” que os mistificadores institucionais gastam no assunto para consolidar “o medo do inimigo” que ganha consenso entre pessoas amedrontadas e os mantém no Poder…
Ultimamente, têm sido apontados alguns “raid” noturnos de tipo fascista contra locais do movimento (por exemplo, contra o BAM no bairro de Centocelle), que ainda que não tenham passado, até agora, de um nível de bolha, ou espancamentos a portas fechadas, podem representar um alarme para futuras atividades mais perigosas por aqueles que se sentem publicamente apoiados em seus (des)valores pelos representantes oficiais das instituições.
ANA > Você acredita que uma revolução social nos moldes tradicionais defendida pelos anarquistas é ainda possível hoje?
Massimo < Eu não sei se meu ponto de vista particular pode ser interessante. Me defino um ‘anarco-cético’: Eu tento seguir o fio de ideias e práticas antiautoritárias e busco compas afins que procuram construir um caminho comum através de pactos e acordos livres, para ver onde leva o “fio de Ariadna”. Se este é o caminho certo, se levará, difundindo-se, a uma revolução “estilo antigo”, a um momento insurrecional, ou a uma implosão do sistema opressivo aparentemente tão sólido, ou para outro tipo de mudança radical, diretamente para um mundo mais justo e libertário, não hierárquico, é uma expectativa, uma esperança, mais que uma certeza. Busco, cheio de curiosidade, a hipótese que mais me encanta, sem dogmatismos, procurando por “cúmplices” que não tenham muito medo às dúvidas…
ANA > Você viveu muito tempo na República Dominicana. Que memória anarquista você tem deste território?
Massimo < Essa é uma pergunta muito complexa. Creio que praticamente vi nascer ali (ou re-nascer) um movimento anarquista, e minha memória está cheia de recordações, figuras de compas, eventos, anedotas, até “escândalos” positivos dos primeiros textos “punk” que chegaram à ilha no começo dos anos 90 e começaram a sacudir as consciências juvenis, até o Primeiro Congresso da FACC (Federação Anarquista da América Central) em 2015, em Santiago de Los Caballeros, promovida por compas dominicanos e cubanos.
Um dia terei de contar essa “história”, ainda que esperarei que, com o tempo, se sedimente em mim uma maneira mais racional, menos emotiva e sentimental. Durante todo o tempo estive, de todo modo, conectado com a lista anarco-latina e um pouco com os compas do El Libertario da Venezuela (fizemos também uma versão dominicana do “Bitácora de la Utopía: Anarquismo para el Siglo XXI“, de Nelson Méndez e Alfredo Vallota) e por essas vias algo saiu sobre o que estava passando sobre o (re?)nascente anarquismo dominicano.
Desculpe, Moésio, a extrema síntese acerca de minha experiência libertária de meus 20 anos “quisqueyanos” (os últimos vividos em uma espécie de “comuna urbana” em Santiago de Los Caballero), mas isso é o máximo que nesse momento me sinto capaz de expressar.
ANA> Alguma mensagem final? Grazie, compa!
Massimo < Saudações a Moésio e a cada compa da ANA. Muitas vezes me acontece saber até o que acontece no movimento na Itália através das postagens da ANA, que leio na preciosa e insubstituível Anarqlist!
Tradução > Liberto
[1] http://www.arivista.org/riviste/Arivista/400/Documenti%20di%20pietra.pdf
agência de notícias anarquistas-ana
Densa floresta
onde a força das ideias
desabrocha em florescente
António Barroso Cruz
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!