por Mirna Wabi-Sabi
Quando ouvi falar da Maria Lacerda de Moura pela primeira vez, só consegui achar pequenos trechos de textos dela na Internet, e nada traduzido pro inglês. Quando finalmente voltei pro Brasil, procurei a Biblioteca Maloca com a esperança de poder pegar e ler algo dela em mãos. E foi exatamente isso que aconteceu. A edição de Serviço militar obrigatório para mulheres? Recuso-me! Denuncio! é épica; frágil e imortal ao mesmo tempo. A capa dura, áspera, vermelha, sem dúvida era mais clara e vibrante 80 anos atrás. As páginas duras, quebradiças e longe de ser brancas, nem sempre abrigam palavras, provavelmente por causa do método de impressão da época. E o cheiro de vida e história é o mais perto que chegamos, sem nos mexer, do que sentimos quando achamos a maior e mais velha árvore da floresta.
É necessário se acostumar com o português antigo. E pra mim foi desconfortável ler uma ideia de feminidade pouco queer (da época e infelizmente ainda existente hoje). Mesmo assim, o binarismo de gênero é abordado criticamente. O mais fascinante do livro é o feminismo interseccional tão a frente de seu tempo. Maria Lacerda reconhece o que hoje chamamos de feminismo branco; a mulher burguesa que não se preocupa com a justiça social, e a mulher que visa inserir-se no mundo machista da guerra e do Estado, ao invés de combatê-lo. Para ela, reconhecer o classismo e ser contra o Estado já eram coisas inseparáveis da ideia de ser contra o sexismo, isso mais que 50 anos antes de Crenshaw nos ter apresentado ao termo “interseccionalidade”.
É importante reconhecer que nós no Brasil consumimos ideias do “exterior” e invisibilizamos conhecimento e pensadoras daqui. O eurocentrismo é uma força multi-centenária que todos e todas nós internalizamos, independentemente de atuais afiliações politicas. Livros de Maria Lacerda de Moura não foram traduzidos, ou até mesmo republicados, enquanto textos de pensadores (predominantemente homens, brancos, ocidentais) são reproduzidos e traduzidos incessantemente por décadas. Não acredito em momento algum que isso seja associado à relevância histórica e política do trabalho dela, mas sim um resultado da inegável força de invisibilização histórica exercida pelo Patriarcado neo-colonial.
Lucy Parsons, assim como Maria Lacerda, é uma mulher que deve ser urgentemente removida da obscuridade. Esse ano, 2018, o New York Times admitiu que seu obituário, desde 1851, tem sido dominado por homens brancos, e criou um tipo de coluna dedicada a mulheres que foram negligenciadas e omitidas.
“[Q]uem é lembrado[(a)] – e como – inerentemente envolve julgamento. Olhar para trás nos arquivos obituários, portanto, pode ser uma dura lição de como a sociedade valorizava várias conquistas e conquistadores”.
A desconstrução desse processo misógino e racista de julgamento de valor é muito recente. Está acontecendo tarde, e devagar. Portanto, é nossa responsabilidade interromper a invisibilização de mulheres, e negros e negras, da conjuntura política anarquista. Por que quando homens, predominantemente brancos, fazem afirmações políticas com as quais não concordamos, ainda os citamos como pensadores importantes? Enquanto mulheres, especialmente negras, não só não são citadas, não são vistas, e têm suas existências apagadas ou escritas na história da perspectiva de um homem.
A Inimiga da Rainha é a nossa iniciativa de combate à subjugação de mulheres revolucionárias; combate à invisibilização e silenciamento de nossas vozes, e das vozes de nossas ancestrais.
Pequena Biografia: Lucy Parsons
Lucy Parsons nasceu em 1853, provavelmente escravizada, no Texas (EUA). Mais tarde entrou no movimento operário e se mudou para Chicago, a cidade onde morreu aos 89 anos de idade (em 1942). Ela escrevia para o jornal que seu marido Albert editava chamado The Alarm (“O Alarme”). Não só escrevia, mas organizava trabalhadores e era uma grande oradora.
Em 1886, ela foi uma figura primordial na luta épica anarcossindicalista que resultou na morte de 4 pessoas, 7 policiais, e onde vários foram feridos e presos: a Revolta de Haymarket. A jornada de oito horas de trabalho em Maio de 1886 foi um confronto fatal entre trabalhadores (as) e policiais- mãos do Estado capitalista. No fim de 1887, depois de um longo e doloroso processo legal de investigação, seu marido foi brutalmente executado, ao lado de 3 outras lideranças anarquistas e sindicais, por seu envolvimento na revolta- um fenômeno que até hoje é imortalizado no feriado de 1º de Maio, mas infelizmente não é propriamente lembrado.
Mesmo depois de tantas tentativas do Estado de interromper o trabalho dessa mulher, sua atuação política não se abalou. Em 1905 ela foi uma das fundadoras de um sindicato de extrema importância, o Industrial Workers of the World (“Trabalhadores Industriais do Mundo”), que até hoje deve nos servir como inspiração de organização revolucionária trabalhista, capaz até de unir forças socialistas e anarquistas.
Emma Goldman e Lucy Parsons tinham conflitos ideológicos que alguns acreditam ser geracionais. O feminismo de Lucy era fundado em princípios da classe trabalhadora, enquanto Emma abstraia o conceito e o aplicava a tudo e em qualquer lugar. Hoje podemos facilmente interpretar isso como uma disputa entre o feminismo interseccional e o feminismo branco. Para Lucy, a opressão do negro, do trabalhador e da mulher vem igualmente da conjuntura capitalista. Enquanto Emma acreditava na libertação da mulher em si, como algo isolado da teoria de classe. Alguns chamariam Emma de burguesa, enquanto outros chamariam Lucy de comunista que prioriza a luta classe sobre a da mulher.
Olhar pra história nos ajuda a evitar a constante reinvenção da roda como se fosse novidade. O que podemos reconhecer agora é que o Anarquismo tem sido um campo político hostil pra segmentos racialmente marginalizados da população, como praticamente todos os campos eram, e de alguma forma ainda são. Analisar o porque disso é essencial para podermos desconstruir e desaprender esse comportamento prejudicial. A incapacidade de reconhecer uma outra realidade é o que causou tanta animosidade entre essas duas grandes pensadoras anarquistas. Ser feminista sem ser anticapitalista e antirracista não significa nada, e se não esperamos de nossos e nossas pensadores e pensadoras um claro posicionamento em relação a isso, nós temos um problema. Um problema que manterá o campo ideológico anarquista ruidosamente burguês e branco.
A Inimiga da Rainha #2 sai dia 22 de Outubro, 2018, com uma inédita tradução do texto de Lucy Parsons chamado The Negro (“O Negro, a Negra”), ao lado de outros artigos, contemporâneos, que abordam temas anarquistas, feministas, anticapitalistas, antirracistas e antifascistas.
Para mais informações acesse: ainimiga.noblogs.org
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Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!