
por Afonso de Melo | 14/11/2018
O homem acordou com a sensação de que estava frio a seu lado. Ela tinha partido pela madrugada, deixando-lhe lágrimas nos olhos. Foi com um vazio por dentro que o homem se levantou e saiu para o ruído do passeio e para o seu silêncio interior. Foi vagueando por uma rua sem nome e entrou num bar chamado The Loser com o passo de um cão coxo. Apanhou o elevador até um andar com vista sobre a cidade. Subiu ao parapeito e viu a multidão afastar-se. Ouviu uma voz que gritava. “Por amor de Deus, não salte. Deixe-me tirar daqui o carro!”. Sentiu uma mão no ombro e alguém dizer: “Mesmo a tempo!” Um empurrão rápido, o ar cortante e o passeio.
Esta é a história de uma música dos Barclay James Harvest:Suicide. A última vez que vi os Barclay, na Aula Magna, eles estavam na realidade um bocado suicidários. Isto é, decrépitos. Mas para o caso pouco importa. A letra da canção está na primeira pessoa e é sempre curiosa a ideia de colocar alguém a descrever o seu próprio suicídio. O morto vivo. E o tipo que se preocupa mais com a integridade do seu automóvel do que com a vida de um homem pendurado num parapeito também tem algo que se lhe diga.
Lembrei-me dessa canção quando lia um poema do argentino Juan Gelman: “Aqui pasa, señores/Que me juego la muerte“. Gelman nasceu em Buenos Aires, em Villa Crespo. Lugar onde surgiu o clube de futebol Mártires de Chicago. Entre a morte e o anarquismo. “Sentado al borde de una silla desfondada/mareado, enfermo, casi vivo/escribo versos previamente llorados“.
Não é comum que um grupo de gente resolva fundar um clube em homenagem aos mártires de uma cidade distante. Mesmo que a causa lhes seja próxima. A verdade é que o Mártires de Chicago foi um fruto do anarquismo. Tal como o Sol de la Victória, do bairro vizinho de La Paternal, teve na sua origem a defesa dos ideais comunistas. De onde se prova que há clubes que são bem mais do que clubes. São filosofias de vida.
Chicago, Illinois, 4 de maio de 1886. Por todos os Estados Unidos, os protestos a favor do estabelecimento das oito horas diárias de trabalho ferviam como enxames de vespas. Em Haymarket, um homem erguia a sua voz metálica acima de uma multidão de cerca de 3000 pessoas. Samuel Fielden, socialista, anarquista, era um orador de robustíssimo talento. Incendiário. Suicidário, mesmo.
À medida que falava, a turbamulta ia ficando inquieta. A sua intervenção durou 20 minutos. No final, John Bonfield, chefe de polícia, ordenou-lhe que pusesse um ponto final na manifestação. Uma pequenina chama chegara ao rastilho. Eram dez e meia da manhã. Uma bomba caseira, feita de lata e carregada de dinamite, deu início à sua função assassina. No dia seguinte, o New York Times trazia em manchete: Rioting and Bloodshed in the Streets of Chicago… Twelve Policemen Dead or Dying. Oito anarquistas foram condenados, cinco deles à morte – Spies, Fischer, Engel, Lingg and Schwab, todos alemães. Algumas penas seriam comutadas.
Entretanto, em Villa Crespos, Buenos Aires, havia jovens que cantavam: “¡Arriba, parias de la Tierra!/¡En pie, famélica legión!/Atruena la razón en marcha:/es el fin de la opresión“. Mal sabiam quanta opressão iria o país sofrer nas décadas seguintes. Cantavam e jogavam futebol e tinham uma admiração irremediável pelos oito Mártires de Chicago. Em 1904, participaram numa prova chamada Fútbol de Competencia e foram triturados na estreia pelo Club La Prensa: 1-12. Não faço ideia se era uma imprensa livre.
Os responsáveis pela sublevação de Haymarket foram mais triturados pela imprensa norte-americana do que os Mártires de Chicago pelo La Prensa. “Bloody brutes; red ruffians; dynamarchists; bloody monsters; cowards; cutthroats, thieves, assassins“: não faltaram adjetivos.
Um deles, Louis Ling, nascido em Mannheim, Alemanha, sofrera na infância a incapacidade do pai, vítima de um acidente de trabalho que o tornou inútil.
Confessou na sua autobiografia: “Tinha 13 anos. O mundo mudou por completo para mim e para a minha irmã de 7. Senti o que era a exploração do homem pelo homem”. Mas não ficou de bem com a sua consciência, pelos vistos. Na véspera de ser enforcado, levantou-se com um vazio por dentro mas não havia uma rua sem nome para lá da sua cela acanhada. Meteu na boca um explosivo que lhe arrancou o maxilar e desfez metade da cara. Era cedo e estava um dia bonito. Não lhe serviu de nada. Ficou horas a esvair-se em sangue e ainda teve a pachorra de o usar como tinta para escrever na parede: ‘Hoch die anarchie!‘.
Filhos de um mesmo deus menor, o Mártires de Chicago fundiu-se com o Sol de la Victória. Transformaram-se na Associación Atlética Argentinos Juniors. No dia 20 de outubro de 1976, apresentou um jogador ao universo: Diego Armando Maradona. Tinha 15 anos e pouco feitio para mártir.
Fonte: https://sol.sapo.pt/artigo/634188/no-fim-da-rua-sem-nome
agência de notícias anarquistas-ana
ipê florido
as abelhas zunem
folhas caídas
Rubens Jardim
Anônimo, não só isso. Acredito que serve também para aqueles que usam os movimentos sociais no ES para capturar almas…
Esse texto é uma paulada nos ongueiros de plantão!
não...
Força aos compas da UAF! Com certeza vou apoiar. e convido aos demais compa tbm a fortalecer!
Não entendi uma coisa: hoje ele tá preso?