“Sugestões de leitura para as férias de 2019”

Com as férias chegando, a Agência de Notícias Anarquistas (ANA) pediu que oito anarquistas indicassem para leitura em 2019 dois livros, um marcadamente anarquista e outro não, antigo ou novo. Eis abaixo as sugestões. Boa leitura!

[um]

por Luiz Alberto Barreto Leite

Florbela Espanca versus Adonias Filho. Em 26 de agosto de 1930, em pleno Estado Novo salazarista, a ditadura fascista que governou Portugal durante décadas, Florbela Espanca escreve a seu amigo Guido Battelli, pesquisador e editor, uma carta significativa, em que se destaca um parágrafo inicial afiado como um bisturi:

Não, não falaremos de política nem de religião; não nos entenderíamos. Sou pagã e anarquista, como não poderia deixar de ser uma pantera que se preza…”

Uma tomada de posição que sintetiza a vida que levou, sendo pioneira no ingresso feminino à Universidade, na frequência a círculos literários, enfrentando o pensamento predominante na sociedade lusitana de retorno às trevas da Inquisição, mas também os preconceitos que ainda traziam aqueles que lutavam pela Liberdade. Seus poemas muito nos ensinam sobre amor, sexualidade e morte e sobre os direitos que todos temos de dispor dos nossos corpos e de decidir quando a própria vida deve terminar. Quem lê o Portal Anarquista e o blog da Agência de Notícias Anarquistas (ANA) já deve ter alguma intimidade com Florbela. Mas o convite que recebi foi para indicar um livro marcadamente anarquista. Vejam bem, não estou indicando um livro de Anarquismo explícito, mas um livro de poesia de uma autora que fez um longo caminho libertário até explicitar-se como anarquista a pouco mais de três meses do seu suicídio final.

O livro que indico é o da maturidade. Só viria a ser publicado em 1931, um ano após a sua morte, aos 36 anos: Charneca em Flor, título também do soneto que abre o livro.

Das derrotas, das queimaduras, despe a mortalha, reergue-se como charneca rude, não o pântano brasileiro, mas o luso terreno arenoso, inculto e árido, com vegetação rasteira (Aulete digital) que se abre em flor. É vida!

Não há como não se apaixonar por Florbela Espanca, nascida Flor Bela Lobo e que se nomeou Florbela d’Alma da Conceição Espanca.

Charneca em flor

Enche o meu peito, num encanto mago,

O frémito das coisas dolorosas…

Sob as urzes queimadas nascem rosas…

Nos meus olhos as lágrimas apago…

Anseio! Asas abertas! O que trago

Em mim? Eu oiço bocas silenciosas

Murmurar-me as palavras misteriosas

Que perturbam meu ser como um afago!

E, nesta febre ansiosa que me invade,

Dispo a minha mortalha, o meu burel,

E, já não sou, Amor, Soror Saudade…

Olhos a arder em êxtases de amor,

Boca a saber a sol, a fruto, a mel:

Sou a charneca rude a abrir em flor!

Para quem quiser saber mais sobre o tema, recomendo o ensaio de Enrique Marques Samyn, “Sou pagã e anarquista: Florbela Espanca diante da Política publicado no portal Academia.edu (https://www.academia.edu/33385840/_Sou_pag%C3%A3_e_anarquista_Florbela_Espanca_diante_da_pol%C3%ADtica)

O convite também contempla a indicação de um autor e um livro que não sejam marcadamente anarquistas. Ora, vou para o outro extremo: um autor assumidamente integralista, figura destacada nos primeiros Governos militares pós 64. Dirigiu a Biblioteca Nacional de 1961 a 1971, foi membro e depois Presidente do Conselho Federal de Cultura, até sua morte em 1990. Além disso, dirigiu a Agência Nacional (órgão informativo do Governo) e presidiu, em 1972, a Associação Brasileira de Imprensa. Embora politicamente fascista, foi um defensor, nos meios golpistas, da liberdade de expressão. Não tenho notícias de que haja perseguido um único intelectual ou qualquer dos funcionários que trabalharam sob suas ordens. Pelo contrário, ajudou o cineasta comunista, baiano como ele, Olney São Paulo, quando saiu da cadeia em 1974, a realizar “O Forte”, baseado em um dos seus romances. Olney estava na lista negra depois que seu média metragem de 1969, Manhã Cinzenta (uma obra-prima), fora exibido em Cuba, levado por um cineclubista em um avião sequestrado.

O livro que indico é de 1975: “As velhas”. Adonias já tinha vivido dois terços de sua vida e aperfeiçoado sua escrita. Raquel de Queiroz, em texto introdutório no próprio livro, diz, bem dito: “o lugar de Adonias Filho na ficção brasileira, todos sabemos que é singular e pessoalíssimo. A prosa nobre e enxuta, a economia concisa do estilo, ao mesmo tempo tão sóbrio e de tão intensa conotação poética; e essa força de poesia atinge por vezes momentos tão altos que o romance chega a ser então mais um canto do que uma simples narrativa”. Nele está a rudeza “civilizatória” da região cacaueira do Sul da Bahia, contada a partir do enfrentamento de clãs encabeçados por quatro velhas, que a viuvez possibilitou chegarem ao comando em uma cultura na qual as mulheres existiam para servir.

A poesia de Florbela Espanca, a anarquista, e a prosa de Adonias Filho, tão diferentes, mas tão próximas da perfeição, nos trazem mulheres fortes, donas de seus corpos, traçando rumos tão diferentes, Florbela despindo-se de qualquer pretensão ao poder, Adonias e suas velhas apoderando-se do que era dos homens e exercendo o poder sem complacência.

[dois]

por Ingrid Ladeira

Livro anarquista: Minha desilusão na Rússia – Emma Goldman. Trata-se da primeira compilação de artigos escritos por Emma Goldman para o jornal New York Word publicada no ano de 1923. Goldman relata nos artigos sua decepção frente a experiência que viveu na Rússia revolucionária dominada pelos bolcheviques. Emma Goldman entendia que a revolução bolchevique seria um passo importante para o movimento anarquista mundial, chegando a elogiar a revolução em seu periódico Mother Earth. Goldman e seu companheiro Alexander Berkman foram deportados para Rússia juntamente com mais duzentos anarquistas que viviam nos Estados Unidos, as batidas policiais foram conduzidas por Edgar Hoover.

Emma demonstrava preocupações sobre os rumos que a Guerra Civil Russa poderia tomar, aliando essas preocupações com a possibilidade de ser pega pelas forças anti-bolcheviques. Em sua viagem pelo país, encontrou repressão, administrações falhas, corrupção ao invés de justiça social, como havia imaginado. Diante desse cenário sem liberdade, Emma Goldman decidiu que não havia futuro naquele país para ela e seus companheiros anarquistas, posteriormente os anarquistas foram perseguidos impiedosamente pelo governo bolchevique.

Por quê indicar esse livro? Precisamos valorizar os escritos femininos no que diz respeito aos acontecimentos da humanidade. Emma Goldman foi uma das maiores anarquistas que já existiu, sua fibra e coragem inspira a todos que conhecem sua trajetória e seu ativismo. Além disso, teve um papel fundamental no desenvolvimento do anarquismo nos Estados Unidos e no mundo, seus escritos políticos sobre as questões femininas e sobre os problemas da sociedade ultrapassaram as fronteiras marítimas chegando na Europa e na América Latina. Inspirou mulheres no Brasil, na Argentina, Uruguai, Chile. Precisamos ler Emma Goldman! Precisamos ler as mulheres anarquistas!

Outra indicação (livro não anarquista): O Segundo Sexo – Simone de Beauvoir. Publicado originalmente em 1940 é uma das obras mais importantes para o movimento feminista mundial. Neste livro Simone de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade. A autora procura abordar os diversos aspectos psicológicos, biológicos e históricos da condição feminina na sociedade patriarcal. Este livro inspirou os movimentos feministas das décadas de 60 e 70. No Brasil foi publicado em dois volumes, o primeiro faz uma reflexão sobre os fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade e o segundo volume analisa a condição feminina a partir de esferas diferentes.

Por quê indicar esse livro? Reafirmo que precisamos ler os escritos de mulheres! Este livro revolucionou o entendimento da situação feminina em sua sociedade que reprimi os comportamentos fora do padrão. O livro é conscientizador e inspirador, necessário para entender as conquistas femininas nos dias atuais.

[três]

por Zion

A Estratégia do Especifismo”. Na presente entrevista realizada em 2009 por Felipe Corrêa, Juan Carlos Mechoso, militante histórico da Federação Anarquista Uruguaia (FAU), responde questões sobre a estratégia do Anarquismo Especifista. Essa concepção político – organizativa do organismo. Produzida no seio da FAU a partir da leitura de alguns clássicos anarquistas e contribuições próprias, além de ter sido bastante relevante no Uruguai nos anos 1960 e 1970, constitui um referencial de suma importância para várias organizações anarquistas, que hoje compõem a Coordenação Anarquista Brasileira (CAB).

Motivo da indicação: Por décadas o vetor social do anarquismo foi colocado de lado, parte disso ocorreu de forma premeditada e articulada através da propaganda do sistema pra impedir o crescimento de uma ideologia que estava mobilizando a população nos anos 1910 e 1920 e conseguiu diversas conquistas nos direitos trabalhistas. O anarquismo aos poucos foi se tornando uma ideologia individualista e sem inserção nas massas e com isso pouco perigoso para o Estado e o Capitalismo. O Especifismo é uma proposta latino americana de organização que coloca o anarquismo na sua origem, lutando ombro a ombro com o povo que a partir do Uruguai se expande pro Brasil em diversos estados formando a CAB, Argentina e África do Sul.

A Revolução Ignorada – Liberação da mulher, democracia direta e pluralismo radical no Oriente Médio”. Inspirado em parte pela visão do ecologista social e anarquista de Murray Bookchin, adotou a perspectiva do “municipalismo libertário”, pregando entre os curdos a criação de comunidades livres e autônomas, baseadas nos princípios da democracia direta, que iriam juntas além das fronteiras nacionais – as quais, com o tempo, se espera que percam seu significado. Neste sentido, como propuseram, a luta curda poderia se tornar um modelo para um movimento mundial rumo a uma democracia genuína, uma economia cooperativa e a dissolução gradual do Estado-nação burocrático.

Motivo da Indicação: Rojava é uma revolução abafada tanto, obviamente, pela direita quanto pela esquerda, por ser hegemonicamente eleitoral ou autoritária. Rojava é a prova que a revolução não precisa da transição de um estado socialista. Nos pilares da libertação da mulher (não seria exagero que nenhuma outra revolução o protagonismo feminino foi tão grande), na democracia direta e no pluralismo radical, entender e divulgar Rojava se torna uma prática revolucionária em quem acredita numa transformação social sem a força opressora do Estado.

[quatro]

por Sol de Abril

Minha sugestão de leitura anárquica é o livro “Federica Montseny – Primera ministra electa en Europa” (Colección Base Hispánica Editorial Base – Barcelona – 2014). O livro trata da biografia de Federica Montseny, grande personagem do movimento libertário do século XX, atuou como líder sindical durante a guerra civil espanhola, foi ministra da saúde entre 1936 e 1937. Em 1939 se exilou na França, e dedicou sua vida no exílio à luta antifranquista. Durante a Segunda Guerra seu nome figurava na lista negra enviada por Franco ao governo alemão e ao governo colaboracionista de Vichy pedindo sua extradição. Chegou a ser presa mas não extraditada. Retornou à Espanha em 1977 por um breve período e logo regressa ao exílio em Toulouse onde escreve suas memórias e retoma a luta com seus companheiros de exílio. É nessa cidade que falece em janeiro de 1994. A autora Antonina Rodrigo é uma prestigiada escritora espanhola que se destaca pelo gênero biográfico, contribuindo para divulgar o papel das mulheres revolucionárias na história da Espanha.

A outra sugestão é “Ensaio sobre a Lucidez” (Companhia da Letras), escrito em 2004 por José Saramago. É uma genial crítica às instituições políticas e à democracia representativa com seus partidos de direita, centro e esquerda. Embora inspirado pela vida política portuguesa a história que acontece em uma cidade fictícia de um país qualquer, é muito significativa e instigante, inclusive para nós no Brasil de hoje.

[cinco]

por Maikon Jean Duarte

A estratégia do especifismo – Juan Carlos Mechoso. As narrativas históricas sobre o anarquismo é marcada por uma perspectiva eurocêntrica. As agitações, lutas e organizações das e dos de baixo dos países do sul-global são ignoradas, quando muito são mencionadas em notas de rodapé. Por este território que enraizamos o nosso anarquismo também ocorre uma interpretação colonialista sobre as lutas dos povos oprimidos. Os livros pouco abordam a presença anarquista na América Latina, especialmente das regiões colonizadas pela Espanha. O livro A estratégia do especifismo, elaborado e editado pela Editora Faísca, acaba por trazer uma pequena contribuição, mas necessária. A obra é uma entrevista com Juan Carlos Mechoso, que desde a década de 1950 é um quadro militante da FAU, Federação Anarquista Uruguaia. A companheirada da banda oriental foi responsável por construir um anarquismo com cara e jeito dos sofrimentos, resistências e organização dos povos oprimidos da América Latina. A conjuntura local foi fundamental nas interpretações das obras e histórias de militância de Bakunin, Malatesta e da larga história do sindicalismo de intenção revolucionária. A trajetória anarquista apresentada pelas palavras de Mechoso oferecem a alternativa de organização da militância anarquista com projeto de sociedade futura, onde este trabalho político interfere nas lutas contra todas as formas de opressões.

A história em quadrinhos Asa Quebrada, de Antonio Altarriba (roteiro) e Kim (desenho), é de uma potência sem tamanho. O livro conta a história de gente humilde e entregue as amarras do cotidiano do período antes, durante e depois do governo fascista de Franco. A obra conta a história de Petra, a mãe de Altarriba. É uma espécie de segunda parte da memória do roteirista sobre os seus pais – em A arte de voar falou de seu pai. Petra foi uma criança rejeitada por quem deveria se importar, faz de sua vida uma constante entrega aos outros. Como o povo viveu sobre regimes autoritários? Quais as estratégias foram criadas por estes para sobreviver os dias difíceis da repressão? A obra não tem por objetivo responder estas perguntas, mas são pontos que ficaram no meu imaginário ao concluir a leitura. Afinal, como será a vida cotidiana no período que se inaugurará no 01 de janeiro de 2019? O livro é maior do que as perguntas expostas aqui, mas é o que fica comigo frente ao próximo ano.

[seis]

por Jully Vasconcelos

Recebi o convite para indicar duas obras para leitura em 2019. Poderia listar alguns aqui que valem muito a pena serem lidos como: “Facismo: Filho Dileto da Igreja e do Capital” e “A Mulher é uma Degenerada” de Maria Lacerda de Moura, “Vivendo Minha Vida” e “Minha Desilusão na Rússia” de Emma Goldmam, “Preferi Roubar a Ser Roubado” lançado pela Barricada de Livros, entre outros…

Mas darei destaque para duas obras em especial, como pedido. A primeira é “O Triunfo da Anarquia e outros escritos” de Isabel Cerruti, lançado pela Biblioteca Terra Livre. Eu estava bem ansiosa em ter esse livro em mãos e quando ganhei de presente do meu companheiro a obra superou minhas expectativas em todos os sentidos. Desde a belíssima capa, seleção e divisão dos textos, as gravuras, tudo cuidadosamente selecionado e organizado nesse livro que nos enche os olhos e o coração.

Já havia lido algumas coisas da Isabel Cerruti, mas esta publicação traz ao conhecimento geral vários textos que poucas pessoas tiveram acesso ou oportunidade de ler. Por isso é um trabalho muito importante, ainda mais se tratando de uma militante anarquista brasileira que não tem seus escritos tão difundidos quanto outras mais famosas. O fato é que temos uma história muito rica de mulheres que atuaram fortemente no movimento anarquista brasileiro e, muitas vezes, desconhecemos tal história. Seja pelo obscurecimento e apagamento histórico, ou por falta de acesso, falta de tempo para pesquisar, etc, sendo estes trabalhos de pesquisa, seleção, transcrição e publicação desse material de suma importância para esse resgate e para o fortalecimento do anarquismo em si e do anarcofeminismo.

Isabel Cerruti (1886-1970) nasceu em São Paulo, passando parte de sua infância no Brás (bairro operário) e interessada desde cedo pelas idéias anarquistas, participou intensamente do movimento operário entre 1910 e 1960. Isabel escreveu ativamente em jornais anarquistas, como A Plebe e A Lanterna, além de colaborar com publicações em outros estados, com seu próprio nome e com os pseudônimos Isa, Ruti e Isabel Silva.

Como oradora proferiu conferências e comícios públicos, em prol do anarquismo, da educação da classe trabalhadora. Fez parte, ao lado das irmãs Soares, do Centro Feminino de Educação. Não rejeitava convites para defender a mulher trabalhadora, e via no homem não seu rival, mas um companheiro de lutas. Isabel Cerruti combatia o feminismo burguês, a exploração capitalista, o oportunismo político e, acima de tudo, denunciava a miséria humana através de sua verve ácida e seu espírito delicado e livre. Defensora intransigente da dignidade humana e do ideal anarquista, morreu em casa, em São Paulo no ano de 1970.

“O Triunfo da Anarquia e outros escritos” de Isabel Cerruti está dividido em oito partes: Ideal Anarquista e Revolução Social, Questão Feminina, Questão Operária e Sindicalismo, Religião e Anticlericalismo, Amor Livre, Desigualdade Econômica e Social, Pingos D’Água e Outros Escritos. Após uma introdução biográfica destacam-se, os textos em que a autora declara abertamente sua vinculação ao anarquismo. Seguem os artigos sobre a questão feminina, reflexões sobre o papel e atuação da mulher nos espaços políticos. Trazendo algumas das discussões do movimento anarquista e operário, vem os escritos sobre sindicalismo e, em seguida, os textos anticlericais. Na seção Amor Livre, o debate desenvolvido por Cerruti com outros camaradas anarquistas nas páginas do jornal A Plebe. A questão das desigualdades econômicas e sociais, também objetos de reflexão de Isabel. Finalizando na compilação Pingos D’Água e outros escritos anteriores. De acordo com a Biblioteca Terra Livre: “Uma vida plena de “gotas” dedicadas ao anarquismo, que agora agrupadas formam um enorme oceano de ideias”. Vale a pena cada linha…

A segunda dica vai para o livro, também recém lançado, de Rodrigo Ktarse “Inflamando Pensamentos Insurgentes no Gueto – Literatura Incendiária Combativa”. Essa obra é um soco no estômago da sociedade capitalista e racista!!! Sendo um livro simples, com linguagem acessível, não acadêmica e de fácil entendimento Rodrigo Ktarse traz uma necessária reflexão acerca da sociedade ontem e hoje, acerca das estruturas sociais, de luta de classes e sobre a questão racial de forma direta e didática, com referências à Malcolm X e os movimentos de luta contra o encarceramento em massa, movimentos contra o genocídio do povo preto pobre periférico, emancipação da mulher, direito dos povos indígenas em luta contra o sistema capitalista. Usando A PALAVRA (os livros e as letras de Rap) como uma ferramenta de luta a obra nos tira das zonas de conforto espaciais e da alienação compulsória estática, te faz refletir, pensar e querer se mover.

O livro está dividido em seis partes: 1- Gueto Subversivo; 2- Pelo Pão, Pela Terra, Pela Liberdade; 3- Reflexão; 4- A Arma do Opressor; 5- A Guerra Interminável Contra a Vida do Povo do Gueto e 6- Sabedoria. A belíssima capa, projeto gráfico e diagramação feitas por Sergio Rossi, prefácio de José Poeta e Palhaço.

Como cita Katarse, de acordo com Malcolm X: “Normalmente, quando as pessoas estão tristes, não fazem nada. Limitam-se a chorar. Mas quando sua tristeza se converte em indignação, elas são capazes de fazer as coisas mudarem”. Leiam, pois vale muito a pena. É realmente um livro incrível!!!

[sete]

por breu

TAZ: Zona Autônoma Temporária” – Hakim Bey. Datado de 1985 e publicado no Brasil pela Conrad, TAZ tem seu valor e sua necessidade preservados, ainda mais considerando o atual contexto político, principalmente no Brasil. Isso porque o conceito da zona autônoma temporária – doravante TAZ – se encaixa perfeitamente numa lacuna aqui vigente – aqui no Brasil, aqui na política, aqui no macro e no micro, aqui em nós. Partindo da formulação de uma análise sobre as organizações piratas do século XVIII, Bey propõe que se criem e destruam, construam e extingam, recriem e refaçam zonas autônomas temporárias – em vez de esperarmos eternamente pela concretização de uma revolução –, que podem ser físicas, temporais, imaginárias, e que começam com um simples ato de percepção. O livro conta com capítulos intitulados “Utopias Piratas”, “A Psicopatologia da Vida Cotidiana”, “A Ânsia de Poder como Desaparecimento” e “Caos Linguístico”, dentre outros. E já que Hakim Bey deliberadamente não define o conceito da TAZ, explicando que “(…) se o termo entrasse em uso seria compreendido sem dificuldades… compreendido em ação”, dá pra entender que o texto trata de prática, de vivência, de experimentação, e não de teorias conceituadas em abstração; em suma, não se trata de anarquismo, mas de anarquia.

A Política Sexual da Carne: uma teoria feminista-vegetariana” – Carol J. Adams. Publicado originalmente em 1990, A Política Sexual da Carne procura traçar uma intersecção entre a matança de animais e a violência contra a mulher, entre a exploração de ambos. O livro revela estruturas sutis que operam na lógica da dominação, e que se manifestam nas relações de poder inerentes à sociedade capitalista patriarcal (uma das muitas expressões de uma sociedade cuja principal característica é sua natureza hierárquica). A autora une temas como o militarismo, o fordismo, o Frankenstein de Mary Shelley, a linguagem como forma de legitimação (ou de invalidação) da máquina opressora. “O texto cultural que determina as atitudes positivas predominantes sobre o consumo de animais raramente é examinado com rigor. A principal razão disso é a natureza patriarcal do nosso discurso cultural de defesa da carne. A mensagem reconhecível da carne inclui a associação com o papel masculino; seu significado é reafirmado dentro de um sistema fixo de gênero; a coerência que a carne atinge como um item significativo da alimentação surge das atitudes patriarcais, incluindo a ideia de que os fins justificam os meios, de que a objetualização de outros seres é uma necessidade da vida e de que a violência pode e deve ser mascarada. Tudo isso faz parte da política sexual da carne”.

[oito]

por Thiago Lemos Silva

Em um texto célebre consagrado à discussão do campo de estudos envolvendo a história das mulheres, Joan Scott sustenta que a inclusão das mulheres na história não constituiria um mero suplemento, mas, sim, uma reescrita da própria narrativa historiográfica. Guiado por esta constatação como ponto de partida, gostaria de dar duas dicas de leitura para o ano de 2019 às leitoras e aos leitores do blog da Agência de Notícias Anarquistas (ANA). Trata-se de Mujeres Libres de España – El Anarquismo y la lucha por la emancipacipación de las mujeres, de Martha Ackelsberg (Vírus Editorial, 2017) e Calibã e a Bruxa – Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva, de Silvia Federici ( Editora Elefante, 2017).

O primeiro livro é dedicado à história de Mujeres Libres, organização surgida no entremeio da Guerra Civil e da Revolução Social na Espanha (1936-1939). A partir de um rigoroso estudo, em grande parte baseado em fontes orais, Martha Ackelsberg joga luz sobre as condições sociais criadas pelo movimento anarquista e anarcossindicalista espanhol que permitiram a emergência e consolidação de uma organização voltada especificamente para a emancipação das mulheres; as inúmeras atividades colocadas em marcha para alterar a situação das trabalhadoras, tais como a criação da revista homônima (da qual existem 12 números), programas de alfabetização, cursos técnico-profissionais, campos de treinamento militar, divulgação de métodos contraceptivos, prática do aborto, cursos de maternidade consciente e, não menos importante, os liberatórios da prostituição; e também suas tensas relações com outras organizações anarquistas (CNT, FAI, FIJL), majoritariamente masculinas, que nunca as reconheceram como organização formal do amplo movimento libertário. De acordo com a autora, apesar da sua efêmera existência, o legado de Mujeres Libres para libertar as mulheres da dominação de classe e gênero constitui-se em um aporte importantíssimo aos movimentos feministas contemporâneos que é extremamente atual.

O segundo livro volta-se para um tempo e espaço mais amplo, abarcando em maior medida o continente europeu e em menor medida o continente americano a partir das múltiplas transformações que ocorrem na transição do medievo feudal para a modernidade capitalista. Tendo como mote central a questão da caça às bruxas, o livro (re)visita o processo de acumulação primitiva do capital desde o ponto de vista feminino, mostrando que a execução de centenas de milhares de mulheres no início da era moderna e a emergência do novo modo de produção econômico não se tratava de uma mera coincidência. Para Silvia Fedrici, a caça as bruxas constitui-se num ardil ideológico arquitetado pelo patriarcado através do Capital, Estado, Igreja para destruir a autonomia que as mulheres tinham sobre sua própria força de trabalho, tanto no âmbito produtivo, quanto no âmbito reprodutivo. Frente à nova divisão sexual do trabalho que se desenhava sob a ordem capitalista era necessário fixar as mulheres no espaço privado, feminizar o trabalho reprodutivo e, sobretudo, desconectar seu vínculo com o trabalho produtivo, apresentando-o como algo destituído de valor. Para a autora, a caça as bruxas não é apenas um processo distante no tempo e no espaço, mas, sim, uma dinâmica que (re)aparece continuamente na ordem capitalista diante de suas crises estruturais, tal como se pode evidenciar na perda de direitos, aumento da violência e, não raro, eliminação física das mulheres.

Em suma, os livros de Ackelsberg e Federici nos mostram que a história das mulheres não é apenas uma história de mulheres, como se fosse um aparte que viesse apenas suplementar uma história dos homens, ainda apresentada como universal. Muito pelo contrário, seus trabalhos mostram como que a naturalização do olhar masculino tem conduzido a narrativa historiográfica a desconsiderar de antemão dimensões importantes do passado, rotulando-as de “tipicamente femininas” como se fossem destituídas de valor. Esta visão reproduz, ainda que involuntariamente, a velha ideia de que a história se desenrola verdadeiramente nas ações políticas, campos de batalha e negociatas diplomáticas, perdendo de vista a riqueza da vida privada, das relações com a sexualidade, dos vínculos afetivos, as redes de sociabilidade cotidiana e a vida das pessoas comuns.

agência de notícias anarquistas-ana

Água empoçada
Pulo sem molhar os pés
Na calçada quebrada.

Ana Clara Santos de Freitas – 09 anos