Walter Duranty trabalhou na União Soviética como correspondente do “New York Times”, mas, vivendo no luxo, distorceu fatos e justificou o regime totalitário
porEuler de França Belém| 31/03/2019
Um escândalo escancara as veias abertas do mau jornalismo às vezes praticado na Alemanha. O consagrado repórter Claas Relotius inventava reportagens e até personagens e, mesmo assim, enganou todos os editores da revista “Der Spiegel”. Graças a um repórter investigativo, afeito aos fatos, o país pôde desmascará-lo. Inicialmente, Juan Moreno quase caiu em desgraça por denunciar e enfrentar um ídolo dos colegas. Relotius perdeu o emprego e a reputação. A reputação da “Der Spiegel” ficou abalada, sobretudo porque ficou evidente que seus controles de qualidade, tidos como rigorosos, não funcionam. A publicação, uma das mais importantes do país, pediu desculpas, mas a desconfiança fica. Porque restou cristalizada a tese de que grandes publicações, que tanto combatem fake news, também são capazes de criá-las.
A história de Claas Relotius não difere da de Walter Duranty (1884-1957), correspondente do “New York Times” na União Soviética, que fez tanto sucesso que ganhou o Pulitzer, a mais prestigiosa premiação jornalístico-literária dos Estados Unidos. A base deste texto é a reportagem “A verdade sobre o correspondente do ‘New York Times’ que ocultou as matanças de Stálin e recebeu o Pulitzer”, do jornal “Abc”, de Madri, Espanha. A matéria é assinada por Israel Viana.
Em 1921, Walter Duranty observou, em reportagem publicada no “New York Times”, que a fome estava levando os soviéticos à revolta. Milhares de vítimas estavam fugindo para as cidades — em busca de comida. Percebeu que, por causa da fome, as pessoas estavam desesperadas. Ressaltou que 20 milhões de pessoas possivelmente morreriam por falta de alimentos. Chegou a elevar a cifra para 35 a 40 milhões. Mostrava-se, então, um repórter atento, que, com a observação direta, dava notícias verdadeiras e assustadores do que estava ocorrendo no país de Lênin.
Mas, de repente, tudo mudou. Entre 1928 e 1932, com seu plano quinquenal, Stálin coletivizou as terras dos camponeses (chegando a inventar a figura dos kulaks, para execrar e justificar a matança de camponeses). Ao expor “a excelência da transformação radical das estruturas econômicas e sociais das repúblicas socialistas — em 1930, mais de 90% das terras agrícolas já eram coletivas e a zona rural havia sido convertida em fazendas comunais” —, Walter Duranty ganhou o prêmio Pulitzer, em 1931.
Por que Walter Duranty renunciou ao seu dever de jornalista, sonegando a verdade e mentindo abertamente? Quando as pessoas estavam morrendo de fome ou sendo assassinadas por discordar da coletivização forçada das terras, o repórter do “Times” distorcia os fatos e defendia o governo: “Qualquer informe sobre a fome na Rússia é, hoje, um exagero de uma propaganda maligna. Não há fome ou mortes por inanição”. O período de 1932 e 1933, o do Holodomor, no qual “Stálin provocou a morte de mais de 7 milhões de pessoas”, também foi ignorado pelo repórter-militante do jornal americano.
Embora fosse um mentiroso contumaz, Walter Duranty era considerado um repórter admirado, um dos mais influentes de seu tempo. Suas reportagens eram publicadas em vários países, como a Espanha. O stalinismo o usava, à perfeição, para justificar o regime comunista. Pode-se dizer que um americano contribuiu, de maneira decisiva, para edulcorar a imagem do governo comunista no exterior. Bernard Shaw esteve na União Soviética, mas brevemente e pode ter sido enganado pelos hábeis comunistas. Chegou a dizer, de maneira irresponsável: “Nunca comi tão bem como durante minha viagem à Rússia”. Enquanto fazia graça, pessoas morriam de fome ou eram assassinadas por não aceitar as ordens do comunismo selvagem.
Considerado um amigo da causa comunista, Walter Duranty passou a ter acesso a informações exclusivas do governo — claro que maquiadas —, às quais enviava para os Estados Unidos como se fossem verdadeiras. Para agradá-lo, Stálin aceitou ser entrevistado duas vezes pelo repórter-companheiro de jornada. Outros repórteres sequer conseguiam chegar perto do ditador.
A União Soviética, na pena de Walter Duranty, se tornou um país idílico, uma espécie de Disneylândia dos reds. O jornal mais influente do mundo, o “Times” — de orientação liberal, e não comunista — se prestou a justificar uma das ditaduras mais cruentas da história. O repórter parecia mais um funcionário do “Pravda” do que de um jornal americano.
Como andava pelo país, pois tinha mais liberdade de movimento do que os demais repórteres, Walter Duranty percebia o que estava acontecendo. Ele sabia que Stálin estava matando pessoas comuns de fome e fuzilando aqueles que discordavam de suas medidas.
A carta da filha de Liev Tolstói
Em 1933, o jornal “Abc” publicou uma carta de uma filha de Liev Tolstói denunciando “as atrocidades de Stálin”. “Faz quinze anos que o povo russo padece.” As pessoas estavam escravizadas e morriam de fome e frio. O governo stalinista tomava a produção dos camponeses e deixava-os à míngua. A produção era comercializada no exterior porque o governo precisava de dinheiro. Ela conta que os camponeses, para não morrerem de fome, escondiam trigo das milícias de Stálin e eram fuziladas sem julgamento.
Depois de viajarem pela Ucrânia, em 1933, outros correspondentes, ao contrário de Walter Duranty, denunciaram a fome e os assassinatos. Gareth Jones, repórter do “Manchester Guardian” e do “New York Evening Post”, contou abertamente que, em todos os lugares por onde passava, ouvia os mesmos gritos dos camponeses: “Não há pão. Nós estamos morrendo”. Quem lia o “Times” ficava com a impressão de que Stálin, o deus comunista, havia criado o Éden na Terra.
Irritado com a verdade exposta, que ele via mas não descrevia, Walter Duranty passou a atacar as reportagens críticas como “exageradas” e produto de uma “propaganda mal-intencionada”. Gareth Jones acabou expulso da União Soviética. O correspondente do “Times” continuou sua missão de “desinformação”.
Em 1933, ao visitar o norte do Cáucaso, afetado pela fome, Walter Duranty mentiu mais vez garantindo que os indivíduos não estavam passando fome na região. É provável que até os comunistas ficassem incomodados com seus exageros propagandísticos.
Mais tarde, quando Stálin começou a liquidar integrantes do Partido Comunista — ao menos 700 mil pessoas —, Walter Duranty publicou que o ditador não teria condenado seus “amigos” se as provas não fossem comprometedoras. Culpados — e a culpa era fabricada — deveriam ser fuzilados: eis a lógica do repórter do “Times”.
Em 2003, 80 anos depois, os organizadores do Pulitzer examinaram um pedido do Comitê do Congresso Ucraniano para que o prêmio concedido a Walter Duranty fosse retirado. Um pouco antes, em 1990, instada por estudantes, a equipe que coordena o Pulitzer havia examinado a pendenga, mas decidira não retomar o prêmio. Sig Gissler, administrador dos prêmios e professor de Jornalismo na Universidade Columbia, frisa que a premiação havia sido “concedida numa era diferente e sob circunstâncias diferentes”. Uma tese indigna de um acadêmico do porte do americano.
Acossado pelos leitores, o “New York Times” publicou que as reportagens de Walter Duranty “são uma mostra do pior jornalismo publicado por este diário”. Mas ressalvou, se protegendo e ao seu repórter, que “o prêmio lhe foi concedido por um grupo específico de histórias” a respeito do plano econômico quinquenal e “não sobre a fome que atingiu a Ucrânia de maneira intensa entre 1932 e 1933”. Pura desfaçatez.
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