Por Luis de la Cruz | 29/05/2019
A definição do dicionário da RAE sobre o termo anarquia é breve e insatisfatória. Ao nível que poderia sair de uma conversa de depois do jantar, sem camisa e tomando um licor. O termo e a doutrina política com a qual se relaciona não é, efetivamente, facilmente compreendida em uma frase, razão pela qual Rui Valdivia recentemente veio a somar um ensaio chamado Isso é anarquia! Ensaio sobre liberdade e seus monstros (Decordel, 2019) ao mar de tinta sobre o assunto. Nele anarquia é o centro em torno do qual gravitam suas ideias sobre liberdade e outras questões que nos preocupam vitalmente em 2019. Não é um tratado político ou de história do anarquismo, mas uma coleção coerente de textos que podem ser lidos do início ao fim ou abrindo uma página aleatoriamente. Em ambos os casos, as reflexões sugerem que peguemos uma caneta para sublinhar.
As apresentações de Rui Valdivia são cerimônias íntimas, encruzilhadas entre o sorriso cúmplice durante uma conversa informal e a solenidade expectante do momento anterior ao nascimento artístico. O autor fala e declama, mudando o registro, do explicativo para o poético, improvisando em um roteiro cheio de nuances como um músico de jazz, sem nunca quebrar a linha da história da anarquia. Rui Valdivia gentilmente respondeu algumas perguntas.
Vamos começar pelas apresentações, quem é Rui Valdivia?
Há uma solidez esmagadora por trás dos nomes, porque eles são usados para nos coisificar nos lugares onde a sociedade nos coloca. Com Rui Valdivia, permito-me brincar com os fatos e fabricar a minha identidade, independentemente das impertinências do sistema. Não há nada de frívolo nisso, mas há a necessidade de superar meu documento de identidade nacional, reivindicar a liberdade além das classificações que o sistema usa para perpetuar a exploração e naturalizar o que existe agora pelo imperativo legal e econômico.
Por que a anarquia ainda é uma ideologia ou uma ideia que pode estar presente em nossas vidas?
A anarquia está presente mesmo que não saibamos, porque sempre que um indivíduo deseja fazer algo com os outros em pé de igualdade e sem restrições externas, estaremos reproduzindo o espírito da anarquia. O anarquismo aspira à área em que esses acordos livres e igualitários são desenvolvidos em torno do trabalho, bem-estar, saúde, cultura etc. Engloba a maioria das atividades que desenvolvemos diariamente, que não apenas circunscreva a anarquia a ambientes marginais e sem significado político. A anarquia quer abolir a representação política e, portanto, a necessidade de escolher políticos para organizar nossa liberdade à margem ou contra nós. Também é contra a propriedade privada do capital produtivo, ambiental e tecnológico. Porque a maior coação vem do salário, do trabalho feito pelos outros. A libertação do trabalho assalariado e a emancipação do político profissional, penso, são dois objetivos atuais para o que vale a pena trabalhar.
Que coisas hoje desfrutamos ou vivemos que tem a ver com o que os anarquistas fizeram em algum momento?
Eu acho muito difícil responder isso. O anarquismo repudiava o reformismo, quanto mais tomar o poder e usar os sistemas existentes de opressão para reformá-los internamente. No entanto, o anarquismo lutou para expandir a liberdade das pessoas, para salários mais dignos, para reduzir as horas de trabalho e contra a discriminação e a desigualdade. O significado dessas lutas parciais sempre foi claro, ampliando a capacidade dos indivíduos para decidir sobre o seu futuro e liberar tempo dedicado a trabalhar por um salário, a fim de ser capaz de usá-lo na educação e na organização de estruturas alternativas ao capitalismo.
A redução da jornada laboral para 8 horas foi um triunfo do anarquismo. Mas não se lutou por ela como uma mera reforma, mas como um dos pilares sobre os quais a possibilidade de realizar uma revolução anarquista, a medida foi baseada na versão de tempo gasto na fábrica significaria mais tempo gasto em aumentar o alcance da sociedade anarquista. O anarquismo sempre aspirou fabricar, dentro dos diferentes sistemas de coerção e autoridade, as organizações, comunidades, cooperativas e grupos nos quais torna a liberdade viável na igualdade. Suas experiências são muitas, históricas e atuais, mesmo quando o mesmo sistema tentou sabotá-las, seja violentamente ou através de suas políticas de privilégio em relação aos poderosos.
De certa forma, o desejo de se tornar nossos próprios empresários, possuir o seu próprio trabalho, não tendo chefes e organizar o trabalho de acordo com nossos próprios critérios, é um sonho anarquista que, infelizmente, tornou-se precariedade, em que essa bolha do empreendedorismo faz com que tantas pessoas hoje sofram uma autêntica auto-exploração do trabalho.
Suas apresentações não são atos tão comuns, onde um autor debulha o conteúdo de seu livro, ou pelo menos não apenas… nos conte mais sobre isso.
Este livro é um ensaio, uma experimentação pura e vital sobre a liberdade. Eu não pretendo sentar cátedra sobre nada. Não é um livro histórico, erudito ou acadêmico sobre anarquismo, mas inspirado por textos e experiências anarquistas, tento expor imagens, ideias, intuições e reflexões para, em suma, transmitir minha experiência prática em busca da liberdade. A liberdade é o grande mito político da era contemporânea, e o anarquismo foi a força política que mais se baseou nisso como fonte de igualdade e bem-estar para a sociedade. Antes de sintetizar ou resumir o conteúdo do livro, me inspiro em experimentar outras maneiras de transmitir ou divulgar o pensamento, porque muitas vezes suas páginas apelam para a imaginação, e por esta razão, eu uso poesia, meus poemas mais próximos à liberdade, para melhor expressar as imagens e o desejo comum de ser autenticamente livre.
Você fala sobre experimentação artística e não de arte. Em que são diferentes?
A arte é uma instituição capitalista que santifica certos objetos, a fim de mercantilizar a criatividade humana e construir um patrimônio de luxo que capitaliza a cultura como uma forma de dominação espiritual, legitimando a desigualdade e naturalizando o sistema de exploração atual. A instituição arte tira proveito da necessidade humana de experimentação artística e a usurpa nas instituições de política cultural. A experimentação artística deveria estar a serviço das comunidades como uma ferramenta para fazer articulações e igualar nossas identidades para construir livremente a nossa imaginação para que possamos superar as situações cotidianas de exploração e injustiça e sermos capazes de imaginar alternativas, outras formas de perceber a realidade e de transformá-la. Para este fim eu faço meus “califactos”, mistura de poesia e pintura, e por isso estou fazendo representações públicas de meus artefatos poéticos e, portanto, o emprego nas apresentações do meu livro-ensaio “Isso é a anarquia!”.
O subtítulo do livro, Ensaios sobre a liberdade e seus monstros, é sugestivo… O que está por trás disso?
Não se pode falar sobre liberdade sem fazê-lo de seus monstros, daquelas instituições, ideologias ou poderes que nos usurpam. Eu falo apenas sobre alguns deles, sufrágio universal, trabalho assalariado, o bem público, o Estado de Bem-Estar, etc. E, claro, da representação política e dos Estados. A servidão a que estamos sujeitos é voluntária, aceita porque acreditamos que só poderemos gozar de alguma liberdade se entregarmos a esses monstros que as máfias protegem nosso povo com suas regras e autoritarismo. E porque dificilmente existe margem, fora do sistema, para sobreviver sem aceitar minuto a minuto esse contrato social fictício e enganoso em que se baseia a democracia de mercado capitalista. Os monstros nos sujeitam, mas também nos protegem desigualmente através de suas políticas de privilégio e violência legítima. Somos todos participantes dela, responsáveis pela sua existência, temos sido manufaturados como sujeitos dentro dessas estruturas e, por essas razões, os monstros não são algo estranho, externo que nos oprime, mas nós mesmos somos carne de monstro. A emancipação não consiste, portanto, em destruir monstros, mas em criar alternativas de vida viáveis aos sistemas de exploração existentes, capazes de superá-los, tornando-os progressivamente inúteis.
Em seu ensaio anterior, que também esteve apresentando em Malasaña, explicavas sua visão de mundo da “garupa” da bicicleta. Que perspectiva lhe dá a bicicleta? Tem também algo de anarquista?
No prólogo do “Ensaio sobre duas rodas” meus companheiros de empreendimento cooperativo na Arte das Coisas afirmaram que “esta obra exala anarquismo de seus poros. Um anarquismo que recorda ao naturalismo individualista de Thoreau, temperado, isso sim, por um socialismo igualitário”. É por isso que acho que esse livro foi o germe deste sobre a anarquia. Eu usei a minha bicicleta para derivar por estradas e caminhos, para se perder nas ruas, respirando o mundo dando pedaladas e deixando a mente vagando pelas paisagens que cruzamos: o meio ambiente, a energia, os transportes, as cidades, a nutrição, a ciência, a arte, as drogas, a saúde, etc. Eu me senti muito livre na minha bicicleta, e talvez esse espírito de liberdade de ser você mesmo o seu motor de bicicleta, foi o que levou-me a querer explicar o que significa que nos tornemos produtores de nossa liberdade. Porque essa é a anarquia, o trabalho continuado para recuperar a liberdade de produzir nosso próprio bem-estar.
Por último, vou pedir um exercício de imaginação. Pense que você está andando pelas ruas de Malasaña (ou, se preferir pedalando). Você acha que poderia encontrar algo dessa anarquia que você aponta em diferentes lugares ao longo do livro?
Nas ruas de Madrid, em geral, não se vê nada de anarquia, mas sim desordem, sujeira e muitas vitrines turísticas e de boas vibrações. A dor é ocultada sob uma pátina de bom estatismo, risos e terraços de que Malasaña não deixa de ser uma mostra proeminente. Passeio muito por Madrid e vejo que estão roubando minha cidade, mais e mais coisas se movem fora da minha dimensão humana, que essa grande prostituta que fabrica a Prefeitura para atrair investimentos e dinheiro degrada cada vez mais o ambiente em que quero viver. Cada vez mais as coisas são esmagadoramente belas: bares, lojas de roupas, mantimentos, cabeleireiros, padarias, etc., enquanto que as pessoas que sustentamos tudo isso vivam uma vida cada vez mais precária. É como um parque temático que me sinto cada vez mais comparsa. E é por isso que eu também acredito que a luta emancipatória contra esta cidade começa também dentro dela mesma, em bairros, em todas estas associações e grupos que tentam tecer um tecido humano e comunitário nas fissuras do circo.
Tradução > Liberto
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Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!