O descontentamento no Chile era algo previsível há muitos anos. No entanto, o silêncio era o que primava na população. A contragosto as pessoas expressavam seu descontentamento, sempre sem gritar, sempre obediente, com o conhecimento de que o trabalho finalmente é o único que nos dava o sustento. E se atendemos à história, passada não faz muitos anos, gritar e levantar-se significava sangue, balas e morte. Foi esta mesma falta de justiça e impunidade, e a indignidade que nos fizeram tragar tantos anos, a que tomou as ruas de todo o país. As pessoas abriram seus olhos para ver um governo provedor da injustiça em cada frente e em cada aspecto de nossa vida. Foi isto o que terminou por gerar um levante social, todo o descontentamento se materializou e já não eram pequenos grupos isolados impulsionando demandas, era a população em seu conjunto, que parou e disse basta. Como epidemia, a opinião pública começou a mencionar todas as demandas e petições nunca escutadas. Os esquecidos tomaram a palavra, e o ocorrido na sexta-feira 18 de outubro foi um passo bem dado. É a marcha do povo que se estendeu por mais de um mês, e que sabemos não há de parar.
Contudo, vemos que a problemática social foi levada a uma assembleia constituinte, e alguns querem que toda a luta se concentre aí. Mas como sindicato temos plena clareza de que uma assembleia constituinte não soluciona nem alcança as profundidades de nossa luta, se quis mostrar como um fim, mas temos plena consciência de que não é. Sabemos que uma assembleia constituinte não vai mudar a realidade que vivemos como pobres, temos conhecimento de como opera a reforma na luta e no levante social, se propõe como algo que não é, porque sabemos que se faz com a ideia de gerar uma nova forma de administrar o capitalismo, e é por isso que nossa proposta não vai por aí, nem por favorecer alguma via estatal que se queira tomar para a revolução dos esquecidos.
Dentro das reformas se fala de muitas coisas, entre elas subir o salário, que se bem isto traz uma melhora, e de alguma forma dá mostras de melhorar nossa qualidade de vida, não o é. O governo dá benefícios econômicos, mas, ao mesmo tempo, sobe os impostos, e da mesma forma se termina pagando de nosso bolso estas “melhoras”, não é novidade que o poderio não queira perder nem pão nem pedaço, por isso somos críticos a todo “benefício” e pacto que se levante desde sua vereda.
Dentro do protesto, pudemos ver como se levantam distintas formas de resistência, e como as forças da mal ordem do Estado quiseram reprimi-las. Agora o trabalhador, a estudante, o morador e a profissional estão informados e em vias de organização, o governo está contra a parede, e nenhuma força repressiva poderá frear este avanço, por muito dura que se pretenda. Vimos cozinhas comunitárias, grupos de paramédicos espontaneamente formados e a disposição de nossa gente, grupos rotativos que não abandonam a resistência, marchas feministas gritando pelos direitos das mulheres, evidenciando o abuso por anos vivido, sem medo e com força. Esta é nossa alternativa, isto é o que verdadeiramente marcou um antes e depois, demonstra que organizadas e organizados: muito e tudo é possível, que se podemos atender a nossas necessidades desde a autonomia e a determinação, somos nós os e as principais atores deste movimento, isso não se pode perder, porque é território ganho, é o avanço dos que tomaram a palavra, das esquecidas, do povo.
Em todo protesto aparecem grupos de autodefesa que se enfrentam com a violência desmedida e aberrante das forças da mal ordem, apoiamos plenamente a todos e todas as que lutam, cremos que há que fortalecer nossas ideias por sobre todas as coisas, sabemos que isto é o que deve ficar do enfrentamento e o que lhe dá sentido. Nenhum avanço é lamentavelmente gratuito, há vítimas, há desaparecidos e assassinados, há um número importante de pessoas privadas de sua liberdade, a força repressiva da mal ordem encarcera aos pobres, encarcera aos lutadores sociais, e a quem não teve uma oportunidade real na vida. É por isso que dizemos: todos os presos são políticos, exigimos a liberdade de quem está preso por lutar, ou por nascer pobre.
Como anarquistas, não temos a ambição de demonstrar absolutamente nada, estamos trabalhando ombro a ombro com as pessoas, nossas ideias sempre foram pela justiça e o amor à humanidade, contra a autoridade, o capitalismo e o patriarcado, é por isso que a aplicamos em cada frente na qual trabalhamos. A imprensa burguesa quis por anos criminalizar nossas ideias, nosso movimento, e com este protesto, se demonstrou quem são os verdadeiros terroristas dos quais tanto enchem a boca o jornalismo burguês, eles demostraram que operam sob os interesses dos poderosos, em defesa da propriedade privada, onde uma infraestrutura vale mais que a vida, e onde o corpo da mulher não é mais que um bem de consumo para qualquer um. Não estão nem pela justa autodefesa, nem pelas pessoas, tampouco por nossas demandas. Ou fazem mofa ou infantilizam o que nos aflige e o que nos levanta, mas nos alegra ver que a grande maioria da população já tem conhecimento disto.
Nos é necessário mencionar por sua vez, que somos críticos à democracia representativa, já que permite que detratores de nossas demandas façam política contra, e em desfavor de nossa luta. Desde o ano de 2006 os estudantes começaram a fazer política, rompendo com a forma imposta de fazê-la, na qual os atores sociais não tinham lugar. Naquele cenário a jogada do Estado foi apelar ao democrático, ou seja, se os estudantes tinham opinião válida, não tinham a autoridade para resolver os problemas sociais, já que se fizessem o que os estudantes exigiam se estaria impondo sua posição, e a democracia não se compõe só de estudantes.
Assim transcorreram treze anos, onde se impulsionaram diversas demandas, já não só de educação, também de NO+AFP, de moradia, de saúde, contra o patriarcado e o extrativismo. Nenhuma teve solução, mas todas foram entendidas e sentidas pelo povo, passaram pelo filtro democrático que busca a conciliação entre os que sofrem injustiças sociais e os que fazem negócios delas. Conciliação que sempre é favorável para os poderosos.
A luta que se está gestando tem relação com cinco demandas: saúde, educação, trabalho, moradia e na visibilização da opressão que vive a mulher. Como Sindicato de Ofícios Vários pensamos que saúde e educação não só devem ser gratuitas e de qualidade, também pensamos que devem mudar os sistemas, devem se buscar outras formas de educação, modelos nos quais aprendamos a pensar, não estamos por uma educação pública que seja semelhante a um laboratório para a máquina produtiva. Com isto queremos dizer que cada demanda deve ser trabalhada profundamente, não é só o acesso, é o conteúdo, somos contrários ao modelo econômico instaurado, sabemos que o problema é o capitalismo, sabemos que o problema ao mesmo tempo, é o patriarcado, temos fé cega nas bases em que podemos criar outra forma de viver, em harmonia com nossa comunidade e sobretudo com dignidade, para todas e cada um. O poderio que impulsiona este modelo aderiu a autoridade e o mal viver, a custa de abuso e desgaste, em completa coordenação com a defesa da propriedade privada, sabemos isto, esse é nosso claro inimigo: a forma nas quais nos obrigam a viver, é por isso que todos os setores estão lutando, e ainda que a classe dominante não queira assumir esta verdade, seguiremos na luta até que se faça realidade a vida digna, onde as pessoas tenham sua casa, onde a terceira idade receba uma pensão suficiente, onde a escola seja um lugar de desenvolvimento e incentivo da cultura, onde a saúde se aborde de forma integral, e não para lucrar com nossas enfermidades, onde o empresariado não abuse de nossos recursos naturais, onde cada mulher e companheira tenha a livre e justa decisão sobre seu próprio corpo, onde se respeite o direito que tem de sair e voltar sã e salva a seu lar, um mundo onde possa por fim liberar-se de ser sempre um objeto de conquista, com um traço demarcado desde o berço, que a determina e delimita, só pelo fato de sua condição de gênero. Nossa luta é por tudo, e não se baixarão os braços até cumprir com este sonho.
Devido a isto, todos os que estamos na luta sabemos que é importante a organização, que de todas as partes se levantem assembleias. Nós aplaudimos todo esforço que se impulsione desde as bases. Ainda assim, não compartilhamos certas lógicas de alguns setores de esquerda que tentam e pretendem ser o porta-voz do povo, quando o único porta-voz do povo é o povo organizado de maneira horizontal, sob os princípios do federalismo. Ainda falta para que o povo se organize de verdade, mas é possível e esse dia está muito próximo.
Nós não pensamos que o povo é um ente fantasma em disputa, que não pensa e que se deve manipular, nós cremos que o povo existe e que é fundamental sua organização desde suas bases, seja nos territórios, no estudantil ou no trabalho.
Em consequência, como Sindicato de Ofícios Vários: somos anarquistas, mas não somos o porta-voz do anarquismo, somos trabalhadores, mas não somos os representantes dos trabalhadores.
Há muito por fazer no campo organizativo e pensamos que a única forma de conseguir avançar é deixando de lado as pretensões que não colaboram com este processo. O que não significa baixar as bandeiras e esconder os discursos, é simplesmente assumir o que realmente somos, sem falsidades, sem manipulações, e desde aí entender-nos com outros.
Fazemos um chamado a continuar a luta, à união das organizações e a reger-se sob princípios libertários, em apoio mútuo e solidariedade.
Ainda que a anarquia não chegue hoje nem amanhã, nos põe sempre do lado dos oprimidos e contra as injustiças que imperam.
Somos resistência, proposta e rebeldia.
Desde o mar à cordilheira se escuta o poderoso canto da terra que vai forjando outros mundos e um deles é a anarquia.
Por um mundo novo, que garanta o bem-estar e a felicidade de todos e todas, onde ninguém explore a outro e onde todos vivamos em harmonia com a natureza.
Sindicato de Ofícios Vários Santiago
Quinta-feira, 28 de novembro de 2019
Santiago, região chilena
Tradução > Sol de Abril
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Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!