Podemos ler em toda a grande mídia: os anarquistas fizeram todas as maldades que aconteceram no último mês em toda a Espanha.
por José Luis Carretero | 23/10/2019
O uso do monopólio da força pelo Estado sempre foi uma questão delicada. Além disso, é a narrativa legitimadora do sistema penal de um Estado que se define como democrático. Entendamos: abrir cabeças e encarcerar pessoas nem sempre é bem visto por todos os envolvidos. E muito menos em uma sociedade de classes.
O sistema penal que temos deve ser estruturado em torno de uma série de ideias centrais dos reformadores esclarecidos da Europa que queriam se libertar do poder absolutista do Antigo Regime. Isso implicava, no político, um sistema de divisão de poderes e eleição democrática dos representantes; e criminalmente, toda uma caixa de ferramentas de garantias cidadãs, criada para limitar o poder do Estado e de seus agentes, bem como a ideia central de que o próprio sistema penal tinha como objetivo a reintegração e humanização dos infratores, não sua pura aniquilação ou suplício (tortura pública, execução por meios especialmente impressionantes) que, na sociedade anterior, transformou a punição de crimes em manifestação pública de um poder que poderia gerar, como exemplo para toda a população, um sofrimento sem precedentes.
Assim, o Direito Penal da sociedade capitalista, que se definia como democrático, baseava-se em uma ideia principal: só atuaria, dada a sua enorme capacidade de prejudicar os direitos fundamentais dos envolvidos, diante das agressões mais graves contra bens jurídicos mais importante na sociedade. O que eram essas agressões e esses bens, era algo que foi determinado de maneira rigorosa e limitada no correspondente Código Penal. E ali deviam tipificar, exclusivamente, atividades concretas. Nenhuma linha de pensamento (havia uma certa liberdade de expressão) ou participação em grupos sociais (falava-se da igualdade dos cidadãos como um valor).
Claro, estamos falando de tempos passados. De uma narrativa jurídica antiquada. Embora não sejamos muito claros quando realmente estava na moda nesta península, que passou de ditaduras a ditaduras e de reformas de ditadura a ditaduras reformadas, tantas vezes nos últimos séculos.
A tendência brutal do novo Direito Penal neoliberal é, no entanto, o que tem sido denominado por juristas conhecidos como Raúl Zaffaroni, o “Direito Penal do inimigo”. Ou seja, longe de punir comportamentos específicos, tipificados anteriormente e já consumados, o que o atual sistema penal faz é identificar grupos sociais que possivelmente infratores e, como estamos, em nome da prevenção de comportamentos desviantes e da defesa avançada da ordem social, criminalizar o que essas pessoas fazem.
Não é, portanto, que o cidadão Fulanito tenha feito algo que foi previamente definido no Código Penal como crime, mas que existe um grupo de pessoas suspeitas que, um dia desses, fará algo que ainda não identificamos e isso será muito, muito ruim. Por isso, antes que esse dia chegue, precisamos estudar, monitorar e tipificar o que essas pessoas fazem como crime. Não perseguimos um comportamento específico. Nós perseguimos um inimigo.
E aqui vêm os anarquistas. Os anarquistas: o inimigo de hoje.
Porque hoje cabe aos anarquistas ser o inimigo. Podemos ler em toda a grande mídia: os anarquistas fizeram todas as maldades que aconteceram no último mês em toda a Espanha. Anarquistas sem Fronteiras, que se espalham por toda Europa procurando distúrbios como aves migratórias procuram ventos mais quentes. Anarquistas com fantasmagóricos Mestrados em guerrilheira urbana que costumam atravessar contêineres nas ruas e que devem ter recebido bolsas de força das trevas para saquear lojas de móveis.
Pouco importa que ser anarquista seja uma ideologia (isto é, uma convicção íntima ou uma maneira de ver o mundo), supostamente protegida como qualquer outra em um contexto de liberdade de pensamento e pluralismo político, e não uma atividade concreta. E existem anarquistas dedicados a pregar o pacifismo (como Lev Tolstoi), que organizam cursos de formação sindical, que colaboram com grupos de desempregados e pessoas despejadas, que recuperam a Memória democrática de nosso povo na Universidade ou que defendem a natureza e põem em marcha hortas coletivas.
Além disso, existem, é claro, anarquistas que usam capuz e tombam contêineres. Embora não se saiba muito bem quais são as provas que apoiam a histeria recorrente da mídia nacional sobre os anarquistas nesta semana. Nenhum dado acompanha algumas informações e outras se escudam simplesmente, que os anarquistas que foram detidos são muito jovens (16 e 17 anos) para ter provas prévias de sua participação em um mundo tão sombrio. É o problema de escrever as informações jornalísticas parafraseando os atestados policiais: às vezes os atestados têm (sejam ou não conscientes seus autores) mais ficção literária do que pesquisa de realidade, como sabemos todos os que fomos criminalistas.
Então o inimigo que toca são os anarquistas. É um inimigo que vem a calhar: permite que o tom repressivo suba sem acusar diretamente a grande massa de trabalhadores da independência catalã que se manifestaram nos dias de hoje. Ou seja, sem perceber que estamos indo por eles. É um grupo humano com uma longa história como inimigo (apenas superado, talvez, por maçons, comunistas e judeus). E é um inimigo que, basicamente, foi assediado com várias operações policiais (que se mostraram infundadas ante os tribunais em quase todos os casos) nos últimos anos.
Mas deve haver um inimigo, porque apenas a presença do inimigo justifica a ação avançada do sistema penal. O fato de a vigilância estatal se tornar onipresente (mas não apenas para o inimigo, para todos) e que o populismo punitivo se torna a narrativa básica da mídia e das sentenças judiciais. O estado de emergência, sem a declaração de emergência.
Porque o inimigo, por outro lado, é, obviamente, excepcionalmente mau e, portanto, comete crimes especialmente reprováveis. E isso nos leva à relação carnal existente, no sistema penal neoliberal, entre o “Direito Penal do inimigo” e a extensão dos mecanismos de emergência e da excepcionalidade.
Vou me explicar: Juan Alejandre, meu antigo professor de História do Direito na Universidade Complutense, tinha um livreto interessante sobre a história da tortura como meio de prova no processo criminal. A relacionava com a história do chamado “delitum exceptum”, o crime especialmente grave que permite ignorar legalmente todas as garantias do cidadão no processo. Na época, em Roma, a tentativa de assassinato do imperador, por exemplo.
A tese do meu antigo (e grande) professor foi que, como o direito penal em geral, mostra uma forte visão expansiva (tende a ampliar suas próprias competências, invadindo áreas que não lhe deveriam corresponder, entendendo-se como a reação a agressões mais sérias ante os bens jurídicos mais importantes), dentro do próprio Direito Penal, o “delitum exceptum” também mostra uma forte visão expansiva (se a racionalidade jurídica não intervém, mais e mais coisas são consideradas no âmbito desse delito especialíssimo que permite que as forças de repressão contornem as garantias gerais dos cidadãos em suas perseguições).
Devemos ter em mente que o terrorismo é o grande “delitum exceptum” do nosso tempo. Com tipos penais cada vez mais amplos, uma jurisprudência cada vez mais permissiva com as crescentes limitações que o acompanham, supostamente derivadas de sua persecução, às garantias fundamentais e uma narrativa cada vez mais populista que favorece sua onipresença criminal pelos meios de comunicação. Na busca do delitum exceptum, em suas visões expansivas sem freios, que é o que estamos vendo com toda essa novela dos catalães, anarquistas e outros inimigos semelhantes, chegamos ao Estado de exceção, declarado ou não. Alguns inclusive já o estão pedindo, como Abascal e seu povo.
Apenas um dado, falando de Abascal: Hitler não revogou, até muito tempo depois de tomar o poder, a estrutura constitucional da República de Weimar, que era um modelo dentro do mundo democrático liberal. Foi apenas gradualmente introduzindo e expandindo seus mecanismos de exceção ante o delitum exceptum, até que a ordem normativa mudou, quase naturalmente, e com os aplausos dos grandes juristas, essencialmente para outra. Uma ordem autoritária e assassina. Uma ordem normativa em guerra aberta (a exceção, a emergência) com o inimigo (o vermelho, o judeu, o anarquista) em uma situação urgente que teoricamente justificava todas as exceções.
A democracia, queridos amigos, é defendida por todos, ou não sobrevive para ninguém.
Fonte: https://www.elsaltodiario.com/opinion/jose-luis-carretero-anarquistas-enemigo-disturbios-barcelona
Tradução > Liberto
agência de notícias anarquistas-ana
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