No centro documental da Fundação Anselmo Lorenzo, que busca reunir, preservar e espalhar a história do movimento libertário, você pode ler Durruti em japonês, ver pôsteres originais de dias anti-Franco no exílio ou o que aconteceu com seu avô desaparecido em 1937.
Por Jose Durán Rodríguez | 29/12/2019
Localizada a pouco mais de 50 quilômetros de Madrid, a cidade de Yuncler de la Sagra, em Toledo, aparentemente não oferece nada em sua vitrine que evita a passagem de visitantes ocasionais que viajam pela região. Mas as aparências enganam, é sabido. O território foi abalado pelo boom imobiliário de tijolos que varreu a região no início do século 21 – quando se vendiam os 40 minutos de carro até Madrid como outro incentivo para comprar um apartamento ali, o ‘novo’ PAU da capital – o nome Yuncler é lembrado entre os que frequentaram o que hoje são as ruínas – outra operação imobiliária incerta – de Vicente Calderón: o clube Super López, fundado lá, pendurou sua bandeira fielmente nas arquibancadas na parte norte do estádio do Atlético de Madrid.
Vamos adicionar algumas informações mais importantes sobre o município: com um censo de 3.759 habitantes em 2018, nas eleições gerais de 10 de novembro o PSOE foi o partido vencedor em Yuncler com 627 votos, seguido pelo Vox com 615. Unidas Podemos 188, o Pacma 25 e só recebeu um voto o Partido Comunista dos Trabalhadores da Espanha.
No site do Conselho da Cidade, você pode ler um texto sobre a história da cidade, que fala de Yuncler como “um exemplo constante de rebeldia entre seu povo”, “daqueles que partem porque não querem pagar os impostos no século XV, passando pelos contínuos processos judiciais com a igreja, até a compra da cidade pelos vizinhos a D. Francisco Melchor de Luzón e Guzmán – antes este cavaleiro o tivesse comprado do rei Felipe IV – que com sua tirania obriga seus habitantes a ir deixando o local, fato que exorta seus vizinhos a comprar o povoado do fidalgo”. Nesta cidade “rebelde” está o maior arquivo documental da Espanha sobre o movimento libertário.
“Estou movendo 1.250 quilos com três dedos”, diz ao Salto Sonia Lojo, arquivista de bibliotecas da Fundação de Estudos Libertários Anselmo Lorenzo (FAL) por dez anos. O faz de fato, e abre um móvel compacto que permite ver vários corredores cheios de prateleiras nas quais se distinguem numerosas caixas, pastas e vários materiais organizados e classificados. Como em Yuncler, a sala esconde coisas que não podem ser vistas à primeira vista. Estamos no “arquivo histórico da CNT, que se dedica a reunir, preservar e disseminar a história do movimento libertário e do movimento operário, em geral”, explica as portas de um edifício industrial que nos convida a entrar.
No interior, na sala com móveis compactos, existe “a documentação gerada pela CNT desde o início do século XX – de fato, a origem da fundação, criada em 1987, é preservar a documentação da própria instituição, que possui mais 100 anos de história – e o que mais temos é do período da Guerra Civil, também do exílio, da clandestinidade e da Transição até o presente”.
Atualmente, o trabalho de Lojo está focado no inventário geral da documentação gerada pela central anarcossindicalista, com cerca de 3.000 caixas. “Existe uma parte inventariada e em processo de catalogação”, detalha. É documentação interna: sessões plenárias, assembleias, congressos, como é que a organização funciona, seus acordos, formas de ação…”. Os últimos materiais que chegaram são transferências de Barcelona e Valência. Quando eles não usam mais a documentação com frequência, ela é encaminhada para o arquivo da CNT. “Aqui é organizado e disponibilizado para consulta”, explica Lojo.
A FAL recebe cerca de 400 consultas anuais realizadas por pesquisadores. Em Yuncler está o depósito, onde a documentação é mantida e o trabalho técnico é feito. Na sede de Madrid, os pesquisadores podem fazer uma consulta digital após uma reunião prévia. “30% são pessoas que procuram seus parentes ou estão investigando histórias locais, o que estava acontecendo em suas aldeias. A maioria é do período da Guerra Civil, mas é verdade que começa a haver mais interesse na Transição e na democracia”, explica a arquivista, que também acrescenta que há um interesse crescente no conhecimento da história das mulheres. “Isso foi notado nos últimos anos, claramente por causa da ascensão dos feminismos em que vivemos”.
O registro das consultas permite que Lojo priorize o enorme trabalho que está por vir – “se houver agora 30% de consultas sobre nomes e sobrenomes, temos que trabalhar com a onomástica, extrair os nomes dos documentos” -, embora o princípio é sempre catalogar o material mais antigo, pois é o mais delicado.
CONTAR SEM FALAR
Um arquivo não catalogado é um arquivo que não existe, pois não permite que as informações sejam ordenadas, acessíveis e possam ser recuperadas e consultadas, o que é o fim da tarefa documental. Como exemplo, Lojo ressalta que no depósito da FAL existem “livros não catalogados que são colocados em caixas e estão aqui há 30 anos” sem nenhuma evidência deles. A primeira coisa, explica, é estudar o tipo e o conteúdo dos documentos. Em seguida, passa para a fase de classificação, que informa a origem da instituição geradora do documento. E, finalmente, surgem os instrumentos de descrição, como inventários, guias, catálogos”, que é o que é oferecido ao público para poder localizar a documentação que está buscando”.
Juntamente com a documentação da CNT, o depósito da FAL tem outros arquivos: o da Associação Internacional dos Trabalhadores e do Fundo de Mulheres Livres, outras organizações relacionadas e fundos pessoais (Felix Álvarez Ferreras, Cayetano Zaplana, Abraham Guillén) doado para custódia. “Os materiais chegam por meio de doações, legadas pelos próprios militantes da CNT, por organizações de exilados ou por compras, que geralmente são as menores por falta de recursos financeiros”, lamenta a bibliotecária. Na sua opinião, a joia da coroa é o arquivo fotográfico. “É o mais maravilhoso. Sem falar que ele conta tudo: modos de vida, psicologia”. A FAL tem um fundo fotográfico da Guerra Civil com 1.735 positivos originais, preservados e digitalizados. Lojo também destaca um fundo de fotografias pessoais de Buenaventura Durruti e outro de Mauro Bajatierra com imagens dos iniciadores da CNT, com cerca de 130 fotografias do início do século XX.
A hemeroteca é uma terceira parte do fundo global. “Sempre se disse que quando dois anarquistas se reúnem a primeira coisa que fazem é um jornal, então imagine”, diz Lojo, rindo. “Temos 2.500 cabeçalhos controlados, mas ainda há muito por catalogar”. Entre as publicações mais marcantes preservadas pela FAL, desde o século XIX até o presente e em todo o mundo, está o Campo Libre (Campo Livre), um semanário que destinava uma página dupla às coletividades agrárias de Castela, contando como se organizavam e trabalhavam. Na edição de 28 de agosto de 1937, eles dedicaram esse espaço à comunidade de Coslada, uma cidade de Madrid onde cresceu quem assina esse texto.
Outra área da FAL é a biblioteca, onde estão localizadas cerca de 40.000 exemplares, embora apenas 6.000 sejam catalogados, incluindo curiosidades como poder ler Durruti em japonês. “O livro mais antigo que temos é de 1848, um texto de Étienne Cabet sobre o socialismo utópico, que é um pouco a origem das ideologias do movimento operário: anarquismo, socialismo, comunismo. Do El hombre y la tierra (O Homem e a Terra), de Eliseo Reclús, temos todas as edições que estiveram na história desta publicação”, diz Lojo, que enfatiza que estamos diante de uma biblioteca especializada, “que não é a mesma coisa que uma biblioteca pública. Nós nos concentramos em documentação muito específica, portanto, o objetivo é a conservação, porque temos documentação que nem a Biblioteca Nacional possui e a perda de um documento pode ser irreversível”.
Diferentes materiais guardados pela FAL são milhares de pôsteres originais do exílio, documentos da luta antifranquista fora da Espanha e outros que difundiam as idéias libertárias onde os militantes tiveram que se instalar. E também um arquivo audiovisual com diversos meios de comunicação: latas de 35 mm com filmes históricos do Sindicato da Indústria e Espetáculos, microfilmados com documentação digitalizada de guerra ou gravações completas de plenos do sindicato.
Após a Guerra Civil, a ditadura ilegalizou todos os sindicatos, inclusive a CNT, e se apropriou dos recursos que o sindicato servia coletivamente: bens móveis (veículos, impressoras, máquinas) e imóveis (prédios, terrenos, minas), contas bancárias, empresas coletivizadas, filmes, fotografias e documentação. Em 1936, a CNT alcançou cerca de um milhão de membros e seu peso político foi muito importante nos primeiros meses da guerra, especialmente na Catalunha e Aragão. Mas essa história foi apagada pela repressão e pelo exílio. “É difícil reconstruir toda a história da CNT devido à falta de documentação. Na guerra, muita coisa foi perdida, outra foi salva, o que os pesquisadores consultam atualmente. As coisas da clandestinidade vêm das pessoas do exílio, que mantiveram essa documentação e depois se transferiram para cá graças aos companheiros que jogaram suas vidas para mantê-la e que ela serve para a memória”, lembra Lojo.
Uma vez legalizada no final dos anos 70, a CNT iniciou uma campanha para reivindicar o retorno de seu patrimônio histórico, ainda hoje nas mãos da Administração, depositária da documentação que comprova a propriedade desses bens. “É um relacionamento hostil”, avalia a arquivista, “principalmente por causa da questão dos direitos. Agora o Ministério da Cultura tem o Centro de Documentação da Memória Histórica, eles chamam assim, mas na verdade foi um arquivo policial que nos tirou a documentação. Estamos em litígios para a devolução ou, pelo menos, para que a propriedade seja reconhecida e poder haver uso e divulgação de nossa própria história. Se a tivéssemos aqui, a atividade de divulgação seria muito maior”.
A FAL mantém um relacionamento mais frutífero e próximo com o Instituto de História Social de Amsterdã, onde grande parte da documentação salva pela CNT acabou: “Temos um contrato com eles, pelo qual eles mantêm a documentação, mas a propriedade é nossa. Nós os visitamos uma vez por ano. No futuro, a ideia é que essa documentação volte”.
O espaço em si – adquirido pela FAL – exige o cumprimento de uma série de requisitos para a conservação do material, incluindo uma certa altura e um perímetro de segurança ao redor do edifício, que economizarão dois dos riscos que ameaçam um centro documental: o fogo ou inundação. Também deve ser um espaço em que a temperatura e a umidade possam ser controladas 365 dias por ano, que devem ser constantes em torno de 21 graus. Outro perigo é o aparecimento de bibliófagos, insetos que atacam o papel.
Mas a principal dificuldade enfrentada por essa Fundação para a memória libertária é a falta de recursos humanos e econômicos. Lojo lista uma lista de emergências: “Precisamos de mais pessoas especializadas trabalhando no arquivo para avançar mais rápido. E também precisamos de dinheiro para poder conservar. Nós precisamos de móveis planejados. Temos mais de 200 pôsteres em cada gaveta, o que impossibilita o manuseio. Mas cada móvel planejado custa 3.000 euros. A imprensa é muito delicada e temos jornais do século XIX. Precisamos de móveis específicos que são muito caros”.
Tradução > Liberto
agência de notícias anarquistas-ana
ipê florido
as abelhas zunem
folhas caídas
Rubens Jardim
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!