À medida que a resposta do governo à pandemia vacila, os projetos de apoio mútuo — uma base dos movimentos sociais durante décadas — estão surgindo e se erguendo para atender às necessidades básicas das pessoas.
Por Shane Burley | 27/03/2020
À medida que os primeiros casos de coronavírus foram chegando ao estado de Washington, a resposta do governo foi lenta e confusa. Foi aí que as e os membros da comunidade sabiam que teriam que construir algo se quisessem ultrapassar esta pandemia.
“Reconhecemos que não podíamos confiar nos sistemas atuais e que precisávamos de cuidar umas das outras diretamente”, disse Janelle Walter do Coletivo de Apoio Mútuo de Tacoma (Tacoma Mutual Aid Collective), uma organização voluntária de membros da comunidade que compartilham recursos. Apoio mútuo significa criar “uma rede que possa ser mobilizada imediatamente, sem necessidade de permissão”.
Situado perto do estuário de Puget, Tacoma é uma cidade de classe trabalhadora perto de Seattle que não tem um grande cenário político de esquerda como outras metrópoles da Costa Oeste. Lá foram atingidas com a primeira onda do que se tornaria uma pandemia nacional e global — encerrando os serviços sociais, forçando as pessoas a abandonar os seus empregos e deixando comunidades inteiras tendo que lutar para se manter. Esta foi uma crise com proporções catastróficas que ninguém estava preparada para lidar, e surgiu como uma avalanche ao longo de apenas alguns dias.
O Coletivo de Apoio Mútuo de Tacoma formou-se rapidamente a partir de pessoas que queriam criar um sistema forte para apoiar as e os mais afetados, e imediatamente começou a fazer compras e entregas de mercearias e medicamentos para pessoas que não podiam arriscar sair para espaços públicos. Começaram uma distribuição de mercearias e materiais escolares no sábado em frente à Escola Primária McCarver, onde as famílias podiam se dirigir, pegar o que precisassem e ir embora sem violar as novas regras de “distanciamento social”. O objetivo era escutar aqueles e aquelas com quem compartilhavam os bairros, ouvir o que as pessoas precisavam e iniciar um sistema de partilha.
“Apoio mútuo é comunidade”, explicou Walter. “Confiar uns e umas nas outras, construir confiança e aptidão. Remover a necessidade de abordagens paternalistas para a ajuda, como vemos em organizações sem fins lucrativos e noutros programas estatais. Estamos vendo projetos de apoio mútuo surgindo por todo o lado — vários aqui em Tacoma — e é porque as pessoas estão percebendo que os nossos sistemas entram em colapso em situações de emergência, sejam elas uma pandemia ou um desastre natural. Sistemas que já são ineficientes e funcionários que já são incompetentes, são incapazes de atender às necessidades humanas básicas, portanto precisamos de cuidar umas e uns dos outros.”
A comunidade de apoio
Os Estados Unidos, a maior economia do mundo, foi levada praticamente a uma paralisação, visto que cada estado está lidando com surtos de um coronavírus mortal, chamado COVID-19. À medida que o número de mortes globais aumenta para as dezenas de milhares, e as pessoas são recordadas de gripes pandêmicas anteriores que derrubaram percentagens significativas da população mundial, os governos esforçaram-se para descobrir qual seria o melhor plano de ação.
Esta burocracia deixou muitas comunidades para trás, particularmente enquanto as “ordens de abrigo” diminuem e as empresas fecham, deixando muitas pessoas sem rendimento para sustentar as suas famílias. Este é um dos piores cenários para uma ameaça à saúde pública, e a maioria das comunidades foi deixada ao abandono.
A clareza desta situação tornou as pessoas ativas nas suas comunidades — algumas politicamente e outros simplesmente procurando as melhores ferramentas para a sobrevivência — e a começar a desenvolver uma série de grupos de “apoio mútuo” para se ajudarem uns e umas às outras a atender às suas necessidades básicas.
“O apoio mútuo é a ideia de que os seres humanos devem ajudar os seres humanos, mesmo e especialmente exteriormente a quaisquer forças de mercado”, disse Breht O’Shea, da Coligação de Esquerda do Nebraska, que também participa no podcast “Revolutionary Left Radio”. “A cooperação humana, a solidariedade e o comunalismo estão incorporados profundamente no nosso DNA e o apoio mútuo é exatamente esse aspecto da humanidade na prática.”
O apoio mútuo é a ideia de que, quando apoiamos as necessidades uns e umas das outras numa relação recíproca, mas sem obrigação ou pagamento, temos a maior chance de sobreviver e prosperar. Há décadas que projetos de apoio mútuo têm sido uma base de movimentos sociais radicais — desde serviços de distribuição de alimentos como o Food Not Bombs até aos programas de “Sobrevivência Pendente da Revolução” dos e das Panteras Negras, que incluíam clínicas de saúde gratuitas e programas de café da manhã. Quando o Estado não satisfizer as necessidades do público, muitas comunidades construirão os próprios recursos, e ao fazê-lo construirão uma alternativa às burocracias hierárquicas do governo.
“O apoio mútuo é uma relação recíproca e respeitosa, e é distinta dos programas de caridade ou do governo”, disse Devin Ceartas da Triangle Mutual Aid em Piemonte, Carolina do Norte. O apoio mútuo evita as ineficiências burocráticas que muitas vezes vemos nos governos e nas grandes organizações não governamentais e, em vez disso, espera construir comunidade. “Todo o acontecimento que tensiona o nosso sistema obriga-nos a escolher: Vamos acumular papel higiênico e desinfetante, trancar a porta e aceitar que a Guarda Nacional aplique toques de recolher? O apoio mútuo escolhe plantar hortas, unir os nossos recursos, priorizar as e os mais necessitados e proteger os e as mais vulneráveis”, continuou Ceartas.
Em quase todas as cidades dos Estados Unidos começaram a se formar redes de apoio mútuo — desde projetos de distribuição de recursos até soluções simples, como angariações de fundos, compilação de listas de recursos e contatos e criação de chats para que as pessoas na mesma área possam ficar em contato umas com as outras. A velocidade com que estes grupos surgiram e a profundidade de cuidados que muitos deles oferecem, começaram a mostrar quais opções as comunidades têm quando as grandes instituições falham, ou não estão dispostas a lidar com o desastre.
Obter o que precisamos
A crise do COVID-19 é diferente de muitas outras porque afeta toda gente, encerra negócios e o governo numa varredura massiva impede-nos de nos unirmos por causa do risco de infecção. Isto criou uma necessidade urgente de recursos com um alcance maciço, incluindo tudo, desde produtos médicos até alimentos e cuidar de crianças. É por isso que muitos dos grupos que se formaram se concentraram na centralização de todos os recursos disponíveis, permitindo que as pessoas saibam como ajudar as outras e de todos os serviços que estão à sua disposição.
“Este projeto está servindo como um centro de coordenação e de informação, ao contrário de outras organizações que estão prestando ajuda diretamente. Nós não temos pessoas, tempo ou dinheiro para prestar assistência direta, mas podemos ajudar as pessoas a encontrar os recursos de que precisam”, disse Andy Rutto do NYC United Against the Coronavirus, que se reuniu em 12 de março para criar um documento geral de recursos. “Acredito que já passamos o ponto em que os nossos governos — a nível municipal, estadual ou nacional — podem atender adequadamente às necessidades da sociedade sob a atual pandemia do coronavírus. Isso significa que precisaremos de cuidar uns e uma das outras e que teremos de nos manter seguras umas às outras.”
O COVID-19 pode afetar algumas pessoas com problemas de saúde prévios com uma intensidade excepcional, por isso cabe a muitas pessoas nas organizações de apoio mútuo voluntariar-se para fazer tarefas para elas, como ir buscar e entregar mantimentos. Muitas das organizações criaram um sistema onde voluntários podem se inscrever para fazer tarefas específicas ou “turnos”, e elas conectam as pessoas necessitadas com as pessoas que oferecem a ajuda.
“Todos os dias recebemos inúmeras quantidades de voluntários”, disse Kevin Van Meter, que trabalha com a Equipe de Resposta Familiar do Condado de Benton em Corvallis, Oregon. Esta organização de apoio mútuo foi iniciada pela Coalition of Graduate Employees, um sindicato de estudantes de pós-graduação na Universidade Estadual de Oregon, que tem feito trabalho de apoio mútuo desde antes desta crise para ajudar a apoiar as e os estudantes trabalhadores em dificuldades. Agora têm 150 voluntárias prontas para fazer tarefas, mais do que os pedidos que chegam. “Isso provavelmente vai mudar agora pelo fato de que isto está começando a fechar. As pessoas estão começando a receber ordens para ficar em casa. A crise está se aprofundando nas suas próprias vidas e agora eles têm de se apoiar nestes serviços como nunca antes”, acrescentou Van Meter.
A Mutual Aid Network of Ypsilanti (Rede de Apoio Mútuo de Ypsilanti), ou MANY, em Michigan, antecedeu a crise e foi criada por pessoas envolvidas com outras organizações, incluindo a Coligação de Trabalhadores de Immokalee, a Mutual Aid Disaster Relief (Apoio Mútuo de Alívio de Desastres) e os e as Industrial Workers of the World (Trabalhadores Industriais do Mundo). A MANY, que na verdade tem um status 501 (c) 3, foi capaz de responder rapidamente à pandemia porque já estavam fazendo o trabalho de construção de conexões comunitárias previamente, fazendo trabalho de apoio para despensas locais de alimentos e fornecendo refeições.
Ypsilanti enfrentou as mesmas dificuldades econômicas que muitas cidades do Cinturão da ferrugem, com uma taxa de pobreza de 30% e 13% dos e das estudantes não tendo abrigo. Antes do coronavírus chegar, a comunidade ainda estava tentando obter recursos que não estavam disponíveis através de programas governamentais.
“Como passamos o último ano construindo intencionalmente, planejamos dar resposta à pandemia com os mesmos processos de movimento lento que usamos para construir este projeto”, disse Payton MacDonald, uma organizadora da MANY. “Estamos comprometidos com uma abordagem de “solidariedade, não caridade” para a organização e não pretendemos ser especialistas em apoio mútuo, pois acreditamos que é uma parte inerente da vida. É importante salientar que não “damos” apoio mútuo aos “menos afortunados”. Os nossos programas existentes ainda estão começando, e esta crise global está testando os seus limites.”
Os recursos de saúde são particularmente escassos, incluindo ferramentas básicas de saneamento, como produtos de limpeza e desinfetante para as mãos, que ficaram esgotados em muitos lugares dentro de poucos dias após o início da pandemia. Em Portland, grupos organizados numa coligação, incluindo os Democratic Socialists of America, Symbiosis, Pop Mob e Portland Action Medics iniciaram uma rede que fornece recursos e cria materiais a partir do zero — incluindo seu próprio desinfetante para as mãos feito usando uma receita da Organização Mundial da Saúde.
“Uma coisa muito simples que se pode fazer é contribuir para quaisquer esforços de fazer chegar alimentos ou produtos de higiene para a comunidade. Precisamos abrandar a propagação, o que significa facilitar que as pessoas evitem a proximidade e mantenham as mãos limpas”, disse Aya Leigh, uma médica de rua que estava ajudando a criar uma feira de recursos para fazer distribuição antes que as ordens de isolamento doméstico fossem postas em prática. “Cada uma das nossas ações afeta os outros. Estamos todos juntos neste planeta. Estamos todos juntos nesta pandemia e precisamos começar a agir como tal. Quanto mais cuidarmos umas e uns dos outros, melhor estaremos todos.”
Voluntários da rede estão distribuindo mantimentos, incluindo o desinfetante para as mãos, e trabalhando para criar locais de entrega confiáveis que as pessoas saberão que poderão visitar quando precisarem.
À medida que 3,3 milhões de pessoas são dispensadas por causa dos encerramentos provocados pelo coronavírus, a necessidade de dinheiro vai tornar-se tão preocupante quanto a comida e os medicamentos. É por isso que várias organizações de apoio mútuo têm simplesmente priorizado esforços para angariação de fundos para levar dinheiro aonde é mais necessário. O Baltimore Mutual Aid & Emergency Relief Fund foi criado por membros do Food, Clothing & Resistance Collective — Maroon Movement, que foi formado em 2015 para realizar trabalhos contínuos de apoio mútuo como distribuição de alimentos, projetos de horta e refeições em grupo.
“Fazemos parte da comunidade e não de alguma entidade externa que faz trabalho de caridade ou panfletos aburguesados”, explicou a membro Sima Lee, que foi inspirada a envolver-se por causa da necessidade básica de recursos que muitas comunidades marginalizadas têm — particularmente comunidades de povos indígenas e pessoas negras. “Estamos apenas cuidando do nosso povo. Somos ferozmente anticapitalistas, portanto o nosso trabalho enfatiza fazer as coisas de forma cooperativa sem que o dinheiro esteja sempre envolvido.”
Elas e eles também têm trabalhado com a Baltimore Safe Haven para apoiar profissionais do sexo durante a crise, que têm as dificuldades adicionais de ter de encontrar abrigos e estar sem rendimento.
“As nossas referências e os meus mentores pessoais foram o Partido dos Panteras Negras e os seus programas de sobrevivência que ajudavam a cuidar das necessidades que o Estado negligenciava e, ao mesmo tempo, forneciam educação política durante o processo”, continuou Lee. “Defendemos o poder horizontal para o povo. Não aparecemos simplesmente num desastre para uma sessão fotográfica. Estamos sempre aqui!”
À medida que esses projetos brotam, ou se desenvolvem sobre o trabalho que já têm feito, as pessoas estão construindo novos métodos de coordenação entre elas e tentando construir relacionamentos para permitir que estes grupos se mantenham para além das próximas semanas. Adam Greenburg criou o canal de Slack COVID-19 Mutual Aid Coordination — um serviço de mensagens popular no mundo da tecnologia — para começar a construir essas pontes entre grupos para que as pessoas tenham um lugar central para compartilhar recursos.
“A minha esperança é que, com este Slack, as e os organizadores possam divulgar as suas necessidades e as pessoas possam seguir aquilo que faça sentido para elas”, disse Greenberg. “Isto poderia resultar em modelos de distribuição mais modulares para apoio direto baseado nas necessidades ou na consolidação em torno de um conjunto de reivindicações progressistas para manter as nossas comunidades seguras”. A dificuldade estará em responder a circunstâncias que estão mudando rapidamente, particularmente quando a resposta dos agentes públicos e da lei mudam diariamente.
Uma imaginação radical
Embora a utilidade prática destes grupos de apoio mútuo seja o que tem recebido atenção e inspirado participação, as motivações são muito mais profundas para muitos e muitas das organizadoras envolvidas. À medida que a desigualdade de rendimentos aumenta e os períodos de crise econômica e climática se expandem, muitos estão se sentindo puxados para construir uma comunidade forte que possa permanecer vibrante tanto quanto fortalecer os laços de solidariedade. Num mundo onde a preparação para o desastre é vista como um ato do consumidor, aqueles e aquelas que praticam apoio mútuo acreditam que na verdade os relacionamentos e o compromisso de apoio em que as pessoas possam confiar é que são o mais crucial para a nossa sobrevivência.
“Isto pode servir de exemplo para outras pessoas, esperamos dar um impulso para superar a inércia cultural associada ao individualismo”, explicou o grupo antifascista de apoio a prisioneiros Nashville Anarchist Black Cross numa entrevista recente. “Se algo positivo pode ser retirado do surto do COVID-19, é que os nossos organismos estão extremamente conectados e devemos estar mais atentos às inúmeras maneiras que podemos amar coletivamente. Isso é empoderante para nós, reconhecermos que somos somente tão fortes quanto as e os mais vulneráveis na nossa comunidade, portanto todos precisamos participar em ações para proteger a nossa comunidade como um todo.”
Elas usaram os seus recursos para criar packs de higiene, desinfetante para as mãos e outras ferramentas para distribuir a quem precisar — com o entendimento de que combater uma pandemia requer a participação de todos e de que toda gente precisa de apoio.
As próximas semanas vão ser difíceis, contudo os resultados dependerão da forma como as pessoas que estão no terreno respondem. Para os ativistas radicais na origem de muitos desses projetos, há o desejo de simplesmente aplicar os princípios que foram aprendidos com movimentos sociais para fazer o seu melhor para apoiar a comunidade em crise. Ao fazê-lo, podem abrir a porta para o mundo que querem construir, um que valorize cada membro da comunidade e que encontre a sua força e resiliência através da colaboração.
“O apoio mútuo mostra que há mais do que suficiente para nos sustentarmos e que todos nós temos mais em comum do que as elites e os chefes nos querem fazer crer. É muito mais fácil organizar em torno de outras questões uma vez que a empatia seja construída”, disse Sima Lee, que enfatizou que os efeitos a longo prazo do coronavírus serão sentidos por meses, talvez anos. “Eu espero ver greves de aluguel e muito mais depois de tantos vizinhos terem se conectado através do apoio mútuo durante o COVID-19. A crise é maior que o vírus. A crise é de 400 anos de capitalismo supremacista branco e todas as contradições estão se desmoronando diante dos nossos olhos. Temos de começar agora a pensar como é que as coisas vão ficar depois de isto acabar.”
O impacto dos esforços de apoio mútuo pode fazer muito mais do que satisfazer as necessidades imediatas de saúde. Eles podem construir o tipo de laços dos quais emergem todos os movimentos de massas — a vontade de solidarizar e lutar enquanto comunidade. À medida que as semanas se transformam em meses, e potencialmente entramos numa nova era de recessão, perda de empregos e despejos, essas relações que foram formadas através do apoio mútuo também podem ser usadas para promover a mudança mais profunda e sistêmica que é tão desesperadamente necessária.
>> Shane Burley é um escritor e cineasta de Portland, em Oregon. Ele é o autor de “Fascismo Hoje: O Que É E Como Acabar Com Ele” (AK Press, “Fascism Today: What It Is and How to End It”). O seu trabalho tem aparecido em lugares como Jacobin, AlterNet, In These Times, Polytical Research Associates, Waging Nonviolence, Labor Notes, ThinkProgress, ROAR Magazine e Upping the Anti. Siga-o no Twitter: @shane_burley1.
Tradução > Ananás
agência de notícias anarquistas-ana
Vejo um brilho
Nos olhos do menino
Que vê a fogueira.
Bruno Sales – 13 anos
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!