Isolamento, 13 de abril de 2020.
Mãe,
sábado nossa cama amanheceu cheia de sangue. Tomamos um susto imenso, mas felizmente não era nada tão grave: a Preta quebrou uma unha, quase inteira. Precisamos chamar a veterinária em casa, e agora ela está com a patinha enfaixada – só até amanhã.
Apesar de ter sido relativamente tranquilo, foi uma bela dose de adrenalina logo pela manhã. Pensamos primeiro que era a gata, e se tivesse sido era grave pela quantidade de sangue. E mesmo com a resolução rápida e sem grandes agravantes, isso nos deixou pensando por esses dias sobre a fragilidade da vida, em como ela pode estar em um instante e não estar mais no seguinte. Esse pensamento me traz sempre sentimentos mistos. Saudades do pai, da vó, do Abu, e medo de perder mais pessoas, um medo que é bem diferente daquele que eu sentia quando ainda não tinha perdido ninguém e não fazia ideia da dimensão de uma perda. Você lembra quando eu era pequeno e dizia que iria ser cientista e inventar um remédio pra ninguém morrer nunca, mãe? Acho que se eu tivesse tido sucesso o pessoal da previdência teria grandes problemas com isso.
Hoje, começamos a trabalhar de casa em Isolamento. Na verdade, começamos a tentar entender – e lamentar – o que esperam da gente nesse trabalho à distância. Se já era difícil pra mim imaginar qualquer tipo de educação sem encontro, mãe, fica mais complicado ainda vivendo em Isolamento. Muitos de nossos estudantes não estão em Isolamento ou em Quarentena. Alguns deles vivem nas cidades-satélite daqui, Miséria ao norte, Fome ao sul, Violência Doméstica a leste e Precariedade e Tristeza a oeste. Dizem que Tristeza é um lugar de gente rica, mãe, mas essa visão é muito preconceituosa e, quase sempre, vem de gente que nunca esteve por lá. Um dos meus alunos, por exemplo, me confidenciou uma vez que sua mãe tinha depressão por ter sido abusada pelo cunhado. Ela contou isso pra ele e o menino, além de ser diagnosticado também com depressão, se tornou bastante agressivo, explode muito fácil com qualquer situação de desconforto – e, na escola, elas eram muitas. Ele vive em Tristeza. Como imaginar essa criança estudando a distância, sozinha, pedindo auxílio pra mãe pra resolver exercícios que já não faziam muito sentido em sala de aula? Assim como aí, mãe, o poder público em Isolamento não está preocupado em educar ninguém, muito menos as crianças mais pobres. Querem só mostrar pra imprensa e pra sociedade que estão fazendo algo – e se der errado, a culpa é dos professores que não souberam, dos pais que não estiveram, dos estudantes que não quiseram.
Peguei um livro que gosto muito aqui, que tem um compilado de textos de dois geógrafos anarquistas que pensaram e escreveram sobre educação. Um deles é russo e se chama Piotr Kropotkin, outro é francês e se chama Elisée Reclus. Os textos são do século XIX, mas é impressionante como parecem ter sido escritos ontem. “Nada interessa tanto às crianças como as viagens, e nada é mais chato e menos atrativo na maioria das escolas do que aquilo que ali se batiza como geografia”, escreve Kropotkin em 1885. “O professor pede ao aluno um ato de fé, pronunciado além disso em termos cujos sentidos não domina; recita prontamente os nomes dos cinco rios da França, de três cabos, de dois golfos e um estreito; sem referir esses nomes a nenhuma realidade precisa”, reclama Reclus em 1903. Mais de 100 anos depois e seguimos acreditando que ensinar significa apresentar conteúdos, e pedimos aos estudantes que acreditem que é assim e reproduzam em seus cadernos o que dizemos. Se já era ruim naquela época, se continua péssimo hoje, como esperar que dessa farsa à distância que estão produzindo usando a tecnologia como argumento – a mesma tecnologia que não é neutra e não está ao alcance de todos, como se quer fazer crer – saia algum tipo de relação de ensino?
Desculpa o desabafo, mãe, mas é que trancado em casa é ainda mais difícil lidar com todas as coisas que atravessam minha cabeça de professor. Vou mudar um pouco de assunto. Você lembra do seu Zé, o catador de material reciclável que vive aqui na porta de casa? Então, tivemos alguns encontros com ele por esses dias. Tentei chamá-lo pra comer, mas ele nem sempre responde da forma como estamos acostumados. Não quero dizer que ele é ininteligível ou que tem algum problema; não, não é isso. Ele só se comunica de outro jeito. Com os olhos, principalmente. Mesmo quando as palavras não fazem sentido, consigo entender algo do que ele quer dizer olhando pros olhos dele. Os olhos dizem muita coisa. Basta estarmos disponíveis para escutá-los.
Os olhos do Zé – vou abandonar o seu, não gosto de pronomes possessivos – me passam muito cansaço, na maioria das vezes. Puxar um carrinho com quilos e mais quilos de material explicam parte disso. Viver na rua, sozinho, provavelmente explica uma outra parte. E tem ainda um pedaço que eu não consegui acessar até hoje: a história dele. Se nós vivemos aqui em Isolamento há menos de um mês, ele vive há muito mais tempo. Quanto será? Esteve sempre na rua? Esteve sempre sozinho? Como aprendeu a falar com os olhos, e ao mesmo tempo embaralhar o sentido das palavras que diz? Quais são seus desejos, seus medos, suas tristezas e alegrias?
Uma coisa que você me ensinou, mãe, foi a olhar para o outro e enxergar. Nos acostumamos, e em Isolamento isso parece ser ainda pior, a resumir o outro ao que achamos dele; nisso, o Zé se torna apenas um pobre homem de rua que não fala nada com nada. Mas esse não é o Zé. Esse é o retrato que se faz dele quando se olha sem ver. Só ele pode dizer o que é, o que foi e o que quer ser.
E qualquer um que quiser estabelecer uma relação humana verdadeira tem que estar disposto a enxergá-lo. E escutá-lo. Tanto pelas palavras quanto pelos olhos. Outro dia, eu abri a porta e o Zé estava varrendo a calçada. Chamei ele por duas vezes. Ele não respondeu. Quando eu estava prestes a fechar a porta, olhou pra mim e sorriu. Um sorriso de cuidado, de vizinho, de tranquilidade ainda que na rua. Não sei se ele viu meu aceno de volta. Não importa. Quem estava falando era ele. Era só prestar atenção pra perceber.
Mãe, escutei de uma pessoa mais velha que ela se sentia inútil, e que poderia desaparecer e ninguém sentiria falta. Toda vez que eu escuto o Zé, toda vez que eu converso com você, eu sinto como se estivesse voando e, ao mesmo tempo, me enxergando lá de cima, cada vez menor e menor, até que só consigo me enxergar no plural. Sozinho, sou só um ponto, um terço de reticência, quase nada; mas com o outro, com o Zé, com você, volto a ser humano. Só existimos nas relações. E a sua presença, pra me dizer um mundo de coisas com os olhos, tem feito muita falta.
Te amo,
D.
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