Por Rowan Tallis Milligan | 08/04/2020
O Covid-19 trouxe à tona dois princípios fundamentais do pensamento feminista e anarquista contemporâneo: a importância da reprodução social e a frequente inadequação da “família nuclear” como meio de convivência.
Pela primeira vez que há memória, pessoas de todo o mundo foram forçadas a ficar em casa. Tendo o acesso negado a outras pessoas, a eventos sociais e à “alegria” do trabalho fora de casa, estamos olhando de perto as nossas vidas domésticas. O Covid-19 destacou inadequações que sempre estiveram presentes nos nossos serviços sociais e de bem-estar, tal como a insuficiência da disponibilização de cuidados médicos, de sistemas de alimentação e subsídio e a falta de proteção para as pessoas sem-abrigo, para quem ocupa e para quem vive numa casa alugada. Também revelou algumas das exigências mais intangíveis da felicidade humana — o nível ao qual, talvez sem percebermos, dependemos de conexões e interações sociais e intimidades emocionais fora de casa, para nos sentirmos preenchidas. O Covid-19 revelou que a felicidade doméstica não é realmente tudo.
O ângulo mais assustador do isolamento forçado dentro da casa é, naturalmente, centrado em torno da precaridade da habitação e da falta de opções de habitação em geral. Foram implementadas proteções mínimas para inquilinas, a ocupação residencial continua a ser criminalizada, e também estão em curso medidas para criminalizar a ocupação não residencial. O alojamento temporário e de emergência para os e as sem-abrigo continua a ser extremamente insuficiente. Não é de admirar que os casos de abuso doméstico estejam aumentando, uma vez que um número crescente de mulheres são forçadas a permanecer em estreito confinamento com os seus abusadores — uma perspectiva aterrorizante e agravada pela diminuição da disposição de refúgios para mulheres, estabelecida pelo governo conservador ao longo dos últimos dez anos.
Embora eu não possa oferecer uma solução imediata para estes problemas, especialmente porque o direito ao protesto também foi cuidadosamente reduzido pelas medidas de distanciamento social postas em prática, penso que este tempo de isolamento forçado para muitas pessoas em situações precárias, inseguras ou simplesmente indesejáveis é um momento em que também deveríamos pensar mais esperançosamente, mais otimistamente, em formas alternativas de viver e estar juntos. Existem duas formas de abordar estas questões a partir de uma perspectiva feminista anarquista, que implicam reconhecer a importância fundamental do trabalho de reprodução social e as limitações de um modelo familiar privatizado para lidar com necessidades pessoais, sociais e emocionais.
Claro, qualquer dona de casa poderia ter dito isto. Isolamento, depressão, alienação e miséria são aspetos reconhecidos da “dona de casa”, aceitos e presentes na ficção e não-ficção desde os últimos 100 anos, parodiados em The Stepford Wives, retratados em Mad Men, e condenados na literatura feminista pelo menos desde a década de 1970. Mas não precisa de ser assim. Não devemos assumir que se é o trabalho dentro de casa que é intrinsecamente horrível. Na verdade, isso sustenta um mito propagado pela sociedade capitalista — que o trabalho remunerado fora de casa é o tipo de trabalho mais satisfatório e, de fato, o único tipo de trabalho que conta. O progresso não é necessariamente julgado pelo número de mulheres que entram no trabalho assalariado, mas pelo quão satisfeitas estão em fazer o trabalho que escolhem e que tipo de trabalho é valorizado.
Agora que tantas pessoas estão trabalhando em casa, exceto aqueles e aquelas de repente consideradas “essenciais” (não nos esqueçamos que há um mês atrás foram chamadas de “pouco qualificadas” pelo mesmo governo), é um bom momento para pensar sobre a desvalorização histórica do trabalho de reprodução social. De repente, apercebemo-nos que o único trabalho realmente necessário é o trabalho dos cuidados, da alimentação, da saúde e do saneamento — trabalho que é pouco remunerado e historicamente tem sido muito feminizado e isolado dentro do lar. Agora estamos todas e todos em casa, e reclamações sobre as crianças interferirem com trabalho importante parecem encantadoras e engraçadas até que te perguntas por que é que trabalhar para o lucro é visto como mais valioso do que cuidar de crianças, ou do lar.
É interessante notar que os grupos de apoio mútuo criados em todo o país para oferecer apoio comunitário e solidariedade durante a crise do Covid-19 focaram em grande parte em torno do trabalho de reprodução social. Um dos aspectos primários da teoria feminista anarquista é orientado em torno de repensar a maneira como abordamos a reprodução social, transformando-a de uma preocupação individual ou familiar para uma questão coletiva com soluções coletivas. A produção de pessoas, desde o parto, à criação de filhos, ao cuidar de plantações e o proporcionar refeições, até à limpeza e higienização de uma casa, até oferecer apoio emocional, curar feridas, fornecer um ombro onde chorar e cuidar dos e das idosas e doentes são apenas algumas das inúmeras formas de reprodução social que nós vemos (ou melhor, não vemos necessariamente) no mundo, hoje e ao longo de toda a história humana. No entanto, o trabalho social reprodutivo tem sido cada vez mais escondido, privatizado, individualizado para ser reproduzido principalmente dentro das nossas casas individuais, e tem sido, de forma significativa, atribuído ao gênero feminino.
A privatização da reprodução social tem sido um elemento chave da sociedade capitalista, demolindo métodos colaborativos de fornecimento de alimentos, cuidados para crianças e apoio mútuo. Um dos meios principais para conseguir isso foi o processo histórico de isolar as mulheres em casa para proporcionar trabalho doméstico, invisibilizado e individualizado. Como observou o filósofo político Friedrich Engels, a prisão das mulheres dentro da família foi resultado direto do aparecimento da propriedade privada e, portanto, o papel das mulheres tem estado intrinsecamente ligado à dimensão da propriedade no capitalismo. Ao mesmo tempo que era escondido dentro de casa acontecia o processo de desvalorizar o trabalho de reprodução social. Como Arlie Hochschild descreveu em The Second Shift, não é o fato de que as mulheres tendem a fazer a maioria do trabalho doméstico, “é que a sociedade desvaloriza o trabalho do lar e vê as mulheres como inferiores porque fazem trabalho desvalorizado” (Hochschild 2012, p. 274). Hochschild, aqui, está bem acompanhada com aquelas que lutam pela valorização do trabalho reprodutivo social.
“É por isso que os esforços que sobretudo as mulheres estão fazendo para desprivatizar a nossa vida quotidiana e criar formas cooperativas de reprodução são tão importantes. Não só abrem o caminho para um mundo onde o cuidado dos outros pode tornar-se uma tarefa criativa e não um fardo, mas também rompe o isolamento que caracteriza o processo da nossa reprodução, criando laços solidários sem os quais a nossa vida é um deserto afetivo e não temos poder social”. (Federici 2019, p. 184)
Ao socializar a reprodução, desmantelamos a lógica opressiva da família nuclear, que leva a que um leque mais amplo de pessoas se envolva no trabalho socialmente reprodutivo para o bem da comunidade e não do indivíduo.
A coletivização da reprodução social também requer um repensar do “lar” como local primário do trabalho reprodutivo social. Uma verdadeira coletivização incluiria formas comunais de viver e estar juntos, em vez de simplesmente mover certas práticas para fora do domicílio e para a comunidade. Como seria se destruíssemos completamente a família nuclear? Como é que isso afetaria as dinâmicas interpessoais de gênero e as ideias em torno das formas de trabalho atribuídas a um gênero? Enquanto os preços exorbitantes das casas estão nos forçando cada vez mais a viver em situações “comunais” muito além do que podemos desejar — como a crescente norma da partilha de apartamentos nos 30 e tal anos — o que é que seria diferente se escolhêssemos esses acordos comunais, em vez de tê-los forçados sobre nós? Socializar e comunalizar o “lar” nos nossos próprios termos poderia mudar fundamentalmente a relação entre as mulheres e o trabalho de reprodução social que elas fazem e poderia também trazer uma dinâmica alterada à formação e sustentabilidade de modos de vida “alternativos” em geral.
Com o Covid-19 estamos cada vez mais isolados daqueles e daquelas que nos rodeiam, mas há esperança: na proliferação de grupos de ajuda mútua e na solidariedade comunitária que surgiu; no reconhecimento do que realmente significa o trabalho essencial; no nosso desejo de ver e estar com outras pessoas neste momento em que estamos forçados a estar em casa. Há uma oportunidade para repensar como poderemos querer viver de forma diferente, o que significa viver felizes e o que é que realmente é importante nas nossas vidas cotidianas.
Referências
Federici, Silvia e Peter Linebaugh. Re-encantando o mundo: Feminismo e a Política dos Comuns. Oakland, CA: PM Press, 2018.
Hochschild, Arlie e Anne Machung. O segundo turno: Famílias trabalhadoras e a revolução em casa. Londres: Penguin, 2012.
Toupin, Louise. Salários para o trabalho doméstico: Uma história de um movimento feminista internacional, 1972-77. Vancouver: UBC Press, 2018.
Tradução > Ananás
agência de notícias anarquistas-ana
Perfume no ar
E insetos voando
Entre as flores.
Angélica Stefaniak, 7 anos
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!