Já se passou quase um ano e meio desde que lançamos nossa última edição. Naquela época, nosso continente assistia a uma nova ascensão da ultra-direita no poder. No Chile, Piñera iniciou seu mandato com uma retumbante vitória eleitoral; na Argentina, Macri impôs suas políticas neoliberais com punho de ferro. Nos Estados Unidos, o protecionista Trump buscava dar um novo impulso à velha economia ianque, enquanto o Brasil passava da esquerda extrativista (com o Partido dos Trabalhadores no poder) para o neofascismo de Jair Bolsonaro, ex-capitão do exército conhecido como um fervoroso negador dos direitos humanos e defensor da última ditadura que devastou seu país. Na Bolívia, um golpe de Estado policial-militar forçou Evo Morales a renunciar, estabelecendo um regime autoritário antiquado baseado no racismo, na religião e no poder militar. Casos semelhantes ocorreram no Equador, Peru, Honduras, Haiti, Uruguai e Colômbia, países onde a ditadura neoliberal forçou profundas mudanças econômicas que causaram grande agitação entre a população.
Apesar dos diferentes contextos e da diversidade de motivações, a onda de protestos que a América Latina viveu durante 2019 parece surgir de uma raiva compartilhada. A corrupção dos “governos progressistas”, a crise do modelo econômico extrativista baseado na exportação de matérias-primas (pilhagem que hoje ameaça a imposição do mega-projeto IIRSA-COSIPLAN no continente), e a implementação de políticas econômicas agressivas pelas novas administrações de direita, forjaram uma rejeição comum de uma classe política que nada mais tem a oferecer. Após anos de promessas vazias, “novas faces” da política e conflitos intra-elites, a sociedade latino-americana deixa claro que o problema não depende de quem governa, mas da própria ideia de governo.
No Chile, as medidas neoliberais aplicadas por Piñera puseram a nu a luta de classes, aparentemente escondida nos pactos de governo e no engano das reformas. A desigualdade exposta em toda a sua crueza, que não pode ser disfarçada pela ideia democrática, explodiu em uma bela onda de violência contra todos os símbolos e representantes do atual sistema de dominação colonialista. As ações sem vergonha da elite, ao mesmo tempo em que impunham ao resto da sociedade medidas incansáveis de empobrecimento e obediência, quebravam o domínio institucional. A maré de pessoas mobilizadas contra seus respectivos governos traçou um horizonte marcado por possibilidades revolucionárias. E embora a espontaneidade da violência seja esperançosa, sua extensão ainda está por ser vista.
O início da revolta no Chile, em 18 de outubro de 2019, parece abrir um novo período para uma transformação revolucionária. Mas estaremos nós, como anarquistas, preparados para este desafio histórico? As vozes dos camaradas em luta são ouvidas em voz alta como uma saudação fraterna que percorre os múltiplos confrontos contra o poder. Mesmo assim, o Estado, juntamente com a elite política e econômica, não desistirá facilmente da estrutura de dominação que lhes deu tantas regalias materiais. A reação no Chile, e na América Latina, protegida por armas policiais e militares, deixou um rastro de mutilação, ferimentos, morte, perseguição, que não abandonaremos nem esqueceremos, já que caíram em defesa de um ideal de justiça em favor dos mais necessitados.
As ações da classe dominante têm sido acompanhadas por medidas legislativas que só têm aprofundado o controle das manifestações de descontentamento. E, enquanto os pobres e os combatentes sociais enchem as prisões, a solução institucional volta a ser oferecida. O acordo do plebiscito para uma nova Constituição, como foi feito com o plebiscito do “sim e não” nos anos 80, vem para jogar fora todo o progresso alcançado nas ruas, deixando novamente nas mãos daqueles que governam há 200 anos, e seus métodos “democráticos”, a definição do nosso futuro, que temos conquistado pouco a pouco.
O acordo constitucional, nascido sob o pacto de toda a classe dominante, da UDI à (também) Frente (demasiadamente) Ampla, vem para colocar a armadilha em que não devemos cair. Assim como na década de 80 muitos recusaram-se a participar da fraude do fim da ditadura com lápis e papel, não devemos cair nos jogos do poder, que planeja um plebiscito que é visto como um triunfo, mas no qual não temos voz. A mesma classe política definiu as datas, as perguntas, as respostas, e recentemente mudou a votação para outubro, no contexto do coronavírus, sem consultar ninguém. O governo está se desmoronando, mas não tem sido capaz de dar nem mesmo respostas mínimas ao que as pessoas vêm pedindo nas ruas desde outubro.
A elite não vai desistir de seus privilégios só porque um plebiscito o diz; eles não estão interessados. A crise de saúde causada pela pandemia da COVID-19 é intransigente em suas lições sobre a sociedade de classes. As pessoas privilegiadas, que tem turistado pelo Chile e pelo mundo por sua irresponsabilidade, não são capazes de tomar as precauções mínimas para evitar o contágio, exibindo uma irracionalidade que parece ser a sociopatia. Na obsessão maníaca de manter seu estilo de vida chegaram ao limite de expor os trabalhadores, principalmente os domésticos, como sacrifício humano no altar do capital. E, enquanto isso, estão previstos problemas de abastecimento e cuidados comunitários (as denúncias de violência masculina têm aumentado dramaticamente). Diante da inevitável pergunta que tem sido apresentada à sociedade, sobre o que vale mais, a vida ou o lucro, devemos responder sem hesitação: o desenvolvimento harmônico de todos os seres vivos, a partir do apoio mútuo e da solidariedade com os mais necessitados nesses momentos; inclusive, a situação urgente dos pobres.
Assim, nos encontramos em tempos de incerteza, tempos de espera e de reflexão. Forçados ao confinamento, devemos ousar pensar no amanhã como uma questão com possibilidades abertas. No entanto, não devemos nos deixar atrair pelo canto da sirene institucional. Enquanto o medo se enraíza na casa da população, a classe dominante está criando novas lideranças como saídas forçadas da revolta. Lideranças duras que buscam canalizar discursos de descontentamento contra a classe política da qual fazem parte. As possibilidades criativas só podem vir do povo organizado, sem governo, nem governados. Pela mesma razão, não devemos esquecer a validade das palavras, como o murmúrio negro de descontentamento, que nos lembram que a luta deve ser insistente, firme, e que não deve parar até a revolução total, até a queda de toda estrutura de autoridade: “Enquanto houver miséria, haverá rebelião!”.
Liberdade para xs presxs, liberdade para os povos, guerra ao Estado, ao capital e ao patriarcado!!
Vingança para cada morte e mutilação!
>> Para ler e baixar Rebeldías N°5, Outono 2020:
https://issuu.com/revista.rebeldias/docs/rebeld_as_oto_o_2020_n_5
https://revistarebeldias.files.wordpress.com/2020/04/rebeldc38das-otoc391o-2020-nc2ba5.pdf
revistarebeldias.wordpress.com
Tradução > Liberto
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Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!