A pandemia de coronavírus mudou drasticamente nossa forma de viver. E se o fez foi porque antes mudou a forma de morrer. Mortes em solidão, rápidas, simultâneas e massivas fizeram cair em poucos dias a cortina das imanências rotineiras da realidade do mundo, atirando-nos à intempérie da contingência absoluta. Isto não impediu que os “rockstars” do pensamento global, como Zizek e Byung-Chul Han, tenham jogado as runas e apostado sobre se o vírus no futuro debilitará ou relançará mais forte o capitalismo.
É óbvio, no entanto, que uma molécula não tem capacidade nem para uma nem para outra coisa. Justamente porque o irrepresentável da enfermidade e da morte são parte do real e não da realidade que o investe. O processamento da morte, da crise de sentido e da evidência do real que trazido pela catástrofe é o que sucederá daqui em diante. A realidade voltará, mas a forma em que o faça não a decidirá o vírus mas nós. Nada mudará necessariamente depois disto, mas tudo pode mudar.
Nossa localização nos perímetros da organização do mundo torna relativamente simples ver que esta pandemia, ainda que tenha se configurado velozmente como um risco invisível para todos ao mesmo tempo, representa em essência uma crise da centralidade do mundo. A vimos vir. O vírus começou e se dispersou desde os países centrais para os periféricos pelas respostas sem convicção e tardias que deram as grandes potências ao problema. O vírus se irradiou desde a China a Europa e da Europa a Estados Unidos e logo ao resto da terra como um “lapso temporal” do movimento do corredor civilizatório, que começou faz milhares de anos e terminou envolvendo a totalidade do globo com seu progresso e desgraça no presente.
Justamente a eles não se pode apontar ineficiência. Se as respostas não foram inicialmente contundentes nos países centrais foi para preservar precisamente a atividade econômica produtiva, de consumo e financeira que é a base de suas supremacias violentas. Se recusaram a uma “parada técnica” para não frear os fluxos de mercadorias e capital e aceleraram o fluxo viral. Finalmente, provocaram uma “parada por ruptura” na “movimentação contínua” do sistema econômico capitalista e um colapso no centro de suas tramas de sentido, que tem considerado todos os aspectos de nossas vidas como indivíduos e nos mantêm como país subordinado.
A eficiência biológica do vírus teve alento político. Por tudo isto se a pandemia nos igualou a todos no risco, não o fez na responsabilidade nem nos recursos. Objetivar e executar esta assimetria de função entre os países centrais e as nações periféricas afetadas é uma tarefa fundamental e básica ao propor a questão desde uma perspectiva que nos permita ver nossas opções.
Mas nem esta nem nenhuma outra reconfiguração da realidade futura ocorrerá de maneira autônoma. Tampouco a solidariedade, que a partir do sacrifício individual do isolamento busca preservar o conjunto da ameaça metastática do vírus, terá uma tradução automática na vida social futura. Para que efetivamente a situação cooperativa atual e de contenção geral se opere em uma realidade distinta há que encontrar o modo em que os mecanismos colaborativos e comunitários de solidariedade infectológica se tornem instituições econômicas e políticas. Isso exigirá além de convencimento, sacrifícios individuais de outros tipos. Econômicos e políticos, por exemplo, que permitam uma distribuição justa da riqueza para garantir o acesso aos bens sociais à totalidade da população, incluídos os que em estado de “normalidade” vivem na intempérie e em risco permanente. Mas também culturais e ideológicos que substituam a hegemonia do hedonismo niilista, que mantêm a atual hierarquia de valores e nossas preferências.
O capital, no entanto, se viu detido e já está voltando por seus foros com seus capitães ao estilo Paolo Rocca [empresário ítalo-argentino, líder do grupo Techint] com sua lógica maquinal de acumulação e sua extorsão à sociedade, mais além do que opine qualquer sanitarista. A realidade prévia a esta crise não se retirará mansamente por uma microscópica partícula que coloniza as células de outros organismos para reproduzir-se, ainda que os mortos se contem por centenas de milhares. O melhor exemplo disto são as declarações de Dan Patrick, vice governador do Texas (EUA), que declarou que havia que “sacrificar vidas para salvar a economia”. Esta expressão sintetiza toda uma série de declarações de líderes mundiais e empresariais tendentes a recobrar a normalidade das atividades produtivas e comerciais pagando o preço que tenha que pagar e assumindo uma sorte de darwinismo social extremo. O ilustrativo destas declarações de Dan Patrick é que mostram brutalmente de que se trata no fundo e em essência um projeto político profundo como o capitalismo. Se trata de um discurso que em última instância da representação simbólica e investe de sentido à morte.
Para contestar e derrotar esse projeto não bastará esgrimir liberalismos sacralizadores de direitos individuais, não alcançará com ínfimas regulações sociais-democratas ou apelações românticas à solidariedade dos ricos. Para que isto mude e possamos superar a crise sanitária como transição a uma melhor sociedade são necessárias reformas cabais para articular outro projeto político. Um que subordine o capital a fins humanos, organizando a comunidade em uma discursividade que dê um significado à vida, diferente ao do mercado e portanto dê um sentido distinto também à morte.
Fabio Seleme
09 de abril 2020
Fonte: https://lapeste.org/2020/04/combatiendo-al-virus-y-al-capital/
Tradução > Sol de Abril
agência de notícias anarquistas-ana
Sentado e sorrindo,
que faz o menino cego
na Festa das Flores?
Izo Goldman
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!