Anarquistas e Ativistas Antivacina Têm em Comum uma Desconfiança do Establishment Médico e Estatal
Por Bruce Trigg | Fifth Estate # 406, Primavera, 2020
Um bebê de quatro anos do Colorado morreu recentemente de gripe comum. De acordo com reportagens, a mãe do bebê frequentava páginas do Facebook administradas por grupos que promoviam teorias da conspiração sobre os perigos das vacinas e de tratamentos médicos convencionais, os assim chamados ativistas antivacina.
Ao invés de aplicar a medicação antiviral prescrita pelo pediatra da criança, a mãe seguiu conselhos recebidos pela internet e tratou seu filho com terapias caseiras que envolviam colocar pepinos e batatas em sua cabeça.
Podemos aprender algo dessa tragédia e do papel desempenhado pela página antivacina no Facebook? O que isso significa para pais de bebês? O que significa para anarquistas que se opõe a coerção estatal e que também acreditam num mundo justo e igualitário?
A vida nesse mundo sob o capitalismo tardio é desafiadora tanto intelectualmente quanto emocionalmente. As complexidades da vida moderna muitas vezes exigem que confiemos em cientistas, especialistas médicos, oficiais e políticos que podem ser egoístas, arrogantes, complacentes ou corruptos. Somos bombardeados com constante propaganda, informação falsa e fatos insignificantes sobre a vida pessoal de celebridades.
Informar-se de modo preciso e correto sobre eventos atuais, saúde pública, ciência e medicina exige de nós tempo e habilidade para separar o joio do trigo. Com a vasta quantidade de informações a que somos expostos todo dia, isso pode parecer uma tarefa impossível. O crescimento do movimento antivacina se deve, em parte, a um crescimento desgovernado do acesso a informação que não é nem filtrada e nem verificada, uma desconfiança profunda das nossas atuais estruturas de poder e o ceticismo sobre as motivações de um sistema de saúde pautado pelo lucro.
Os pais de bebês sentem na pele essa pressão quando levam suas preciosas crianças para um profissional da saúde atarefado que podem estar conhecendo pela primeira vez. Eles receberão um termo de consentimento muitas vezes incompreensível, que lista complicações assustadoras, porém raras, que podem ocorrer com a imunização. Dizem aos pais que eles terão que imunizar seus filhos contra 14 doenças em dois anos e receber três ou quatro injeções nessa primeira visita.
Após retornar para casa, pode ser que consultem a internet para descobrir mais coisas sobre as vacinas. Talvez já tenham ouvido notícias sobre as controvérsias que envolvem o assunto. No Facebook, provavelmente encontrarão informação assustadora, associada frequentemente com vídeos eloquentes que avisam dos perigos da vacinação.
Não é incomum que os pais não tenham ouvido falar de muitas dessas doenças, já que elas haviam sido extintas nos EUA há décadas. O fato que essas doenças desapareceram apenas porque a vasta maioria dos bebês e das crianças era vacinada dificilmente é mencionado. Um número crescente de pais, ao encontrar com tais argumentos assustadores e passionais dos ativistas antivacina, escolhe não imunizar seus filhos.
Imunidade de grupo é o termo que descreve como uma comunidade é protegida de doenças infecciosas somente se uma alta proporção de indivíduos em risco forem imunizados. Vacinar crianças e adultos é uma forma de solidariedade social ou defesa comunitária. É compreensível que isso não seja discutido em amplitude numa sociedade de caráter brutalmente individualista.
Também não é comum que um profissional da medicina desgastado explique em detalhe esse contrato social da imunização a um pai ou mãe que traga seu filho ou sua filha para a vacinação infantil.
As vacinas são, em geral, seguras e eficientes. Os Centros de Controle de Doenças e Prevenção (CDC. Em inglês: Centers for Disease Control and Prevention) consideram a imunização infantil uma das 10 mais importantes inovações medicinais do século 20. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que as vacinações previnem de 2 a 3 milhões de mortes a cada ano, enquanto que 1.5 milhões de mortes ocorre devido a falta de imunizações. A OMS chama de “hesitação vacinal” uma das 10 maiores ameaças à saúde global.
Há motivos complexos para a não-imunização de crianças. Jogar toda a responsabilidade no movimento antivacina é enganoso e simplista. É por isso que a OMS prefere o termo menos crítico “hesitação vacinal”.
Afinal, muitas pessoas nos EUA tem pouco acesso à medicina, o que pode explicar a razão de não ter imunizado seus filhos. Imigrantes têm boas razões para temer ir ao centro médico receber as imunizações e lá ser surpreendidos por autoridades imigratórias do ICE (Fiscalização de Imigração e Alfândega. Em inglês: Immigration and Customs Enforcement).
Pais sob pressão na criação de seus filhos e tendo constante contato com informativos que sublinham e exageram os perigos desse processo podem ficar assustados ou confusos sobre os riscos e benefícios da imunização. Há uma rede de propaganda antivacina cooptando um grande número de pais ao ativismo antivacina.
Um exemplo é o filme de 2016, “Vaxxed” (“Vacinado”), de Andrew Wakefield, um médico britânico radicado nos EUA que perdeu sua licença médica por causa de pesquisas fraudulentas ligando a vacinação do sarampo ao autismo. Apesar de numerosos estudos refutarem sua teoria, a conexão entre autismo e imunizações continua sendo propagandeada pelos ativistas antivacina.
Os anarquistas deveriam apoiar a saúde pública e as leis e regulações governamentais que colocam a vacinação infantil como pré-requisito para a matrícula escolar? E sobre as vacinas anuais obrigatórias de gripe para adultos?
Ainda que a vacinação de adultos não seja obrigatória, deveria se permitir que um adulto negue a vacinação de seus próprios filhos, assim colocando a criança e outras crianças em risco desnecessário? Não são questões fáceis de responder, especialmente para aqueles que se opõem à coerção governamental e acreditam nos direitos à livre associação.
O movimento antivacina consiste numa rede solta de grupos ativistas nos quais muitas vezes ideologias de extrema direita circulam, além de seu próprio nicho consumista. Por exemplo, o notório teórico da conspiração e apresentador de TV direitista Alex Jones, que pragueja contra os males do “excesso de governo” e das vacinas, promove as vendas de suplementos caros para tratar doenças.
Outras celebridades também seguem essa linha, como a atriz Gwyneth Paltrow, que defende o movimento antivacina e vende aparatos da nova era em sua própria loja digital. Não é de surpreender que Donald Trump tenha repetidamente expressado seu ceticismo quanto às vacinas, até que recentemente mudou de opinião quando pressionado por um recente surto de sarampo.
Muitos radicais têm em comum com os ativistas antivacina uma desconfiança das corporações farmacêuticas que lucram com as vacinas. Preços imoralmente altos são cobrados por muitas vacinas, como as de herpes-zoster e HPV, ainda que a maioria das pesquisas e testes clínicos desses medicamentos sejam custeados por dinheiro público e conduzidos em universidades públicas e por agências públicas de saúde. É o alto custo das vacinas, e não a hesitação vacinal, que é a razão principal para que milhões de vidas não sejam salvas no hemisfério sul.
Como anarquistas, compartilhamos de algumas das preocupações que os pais sentem quando lutam com opiniões conflitantes sobre qual a melhor maneira de criar seus filhos. Compartilhamos de seu desejo por maior liberdade e transparência e de sua desconfiança do governo e da motivação lucrativa das corporações farmacêuticas.
Mas nossa perspectiva anticapitalista nos permite ver como a motivação do lucro também causa a desinformação a respeito da ciência por detrás das vacinas e impede o acesso a vacinas ao redor do mundo. Podemos proporcionar uma perspectiva alternativa libertária para rebater a paranoia conspiratória de direita que, de modo mentiroso, coloca a culpa num conflito irreconciliável do indivíduo contra a sociedade.
Os anarquistas acreditam em alternativas democráticas, participativas, comunitárias, não lucrativas e não hierárquicas para o sistema de saúde atual. Existe um movimento significativo entre muitos anarquistas onde se aprende sobre terapias tradicionais como a medicina chinesa, acupuntura, medicinas fitoterápicas indígenas e outras técnicas de cura. É um modo de driblar a máquina moderna capitalista de exploração da medicina, e também de aprender modos mais sustentáveis de vida na ecologia social pós-governo. O desafio nesse contexto é aprender como desenvolver essa tendência sem negar o valor de práticas médicas modernas, equilibrando as alternativas de modo inteligente.
Devemos exigir que as vacinas sejam disponibilizadas gratuitamente em todo o mundo. Podemos também apoiar e criar tratamentos alternativos e estruturas de saúde pública que estejam fora do estado e do capital, como as clínicas gratuitas do movimento Common Ground, fundadas no contexto pós-Katrina, em New Orleans. Além disso, podemos nos somar e dar apoio ao movimento a favor da pesquisa médica controlado pela comunidade.
Nós, anarquistas, entendemos em nossa teoria e prática que os direitos individuais e os direitos da comunidade não são irreconciliáveis. Comunidades democraticamente controladas e com livre acesso a informação podem fazer a melhor decisão e resolver esses conflitos de modo mais eficiente que o estado.
>> Bruce Trigg é um médico que trabalha na saúde pública e é consultor no tratamento a vícios. Mora e trabalha em Nova Iorque, NY. Trabalhou por três anos no Serviço de Saúde Indígena (“Indian Health Services”) em comunidades nativo-americanas no Novo México e no Arizona.
Tradução > Schwartz
agência de notícias anarquistas-ana
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