Por Kris Hermes | 27/05/2020
Está bem estabelecido que a resposta dos Estados Unidos da América do Norte à pandemia de coronavírus tem resultado em dezenas de milhares de mortes evitáveis e desnecessárias. De sua indiferença inicial, e ausência de seriedade para com a COVID-19, à falta de infraestrutura em saúde pública e testagem, a negligência e a incompetência do governo federal é impressionante, e tem consequências trágicas para centenas de milhares de pessoas.
Para piorar, o vírus tem impactado as pessoas de cor desproporcionalmente nos Estados Unidos da América do Norte, destacando ainda mais o racismo estrutural e a injustiça econômica presente muito antes da COVID-19 e que apenas piorou durante a pandemia. Com pessoas de cor encarceradas em taxas muito mais altas que pessoas brancas, o rápido alastramento do vírus pelas cadeias, prisões e centro de detenção dos Estados Unidos da América do Norte tem afetado predominantemente prisioneiros de cor. A polícia também tem imposto o distanciamento social e outras medidas de saúde pública de forma desigual e violenta.
Em circunstâncias mais normais, um grande número de pessoas teria tomado as ruas para protestar e resistir à resposta insensível e fatal do governo. Mas, medidas de saúde pública que visaram a redução de danos também limitam bruscamente a liberdade de assembleia e, por sua vez, têm causado uma crise existencial para muitos dos que de outra forma estariam nas ruas demandando responsabilidade.
Em 11 de abril todos os 50 estados declararam emergência, e como cada estado concede poderes diferentes nas emergências, tais declarações tipicamente concedem uma autoridade abrangente para impor e forçar uma matriz de medidas coercitivas, incluindo ordens de permanecer abrigado ou em casa, e banimento de encontros públicos. Apesar destas onerosas restrições, ativistas e organizadores políticos ainda têm encontrado modos de fazer ação direta contra políticas e práticas injustas.
Algumas das ações inovadoras que vimos ao longo das últimas semanas incluem protestos em carros e caravanas pedindo o alívio dos aluguéis e moratória nos despejos, e die-ins¹ demandando que o governo local aborde a crise enfrentada por pessoas desabrigadas em cidades como San Francisco. O reverendo Billy Talen liderou um protesto-de-uma-pessoa-só no início de abril contra a Bolsa Samaritano, um programa de assistência social evangélica notoriamente anti-homossexual e islamofóbico, tentando plantar uma bandeira do arco-íris nas proximidades de uma instalação temporária de suporte respiratório criada pelo grupo no Central Park. Outras ações criativas e necessárias incluem greves de aluguel, greves de emprego e greves sem controle, centradas em condições inseguras de trabalho, direito à licença médica, e pagamento de adicional de insalubridade aos trabalhadores da linha de frente.
Prisões, Cadeias, e Centros de Detenção se tornaram Pontos de Transmissão de COVID-19 e Locais de Protesto
Enquanto Nova Iorque e outros pontos de transmissão de COVID-19 têm chamado a atenção pública devidamente, o que acontece nas cadeias, prisões, e centros de detenção de imigrantes do país é menos visível, sendo que estes lugares representam alguns dos piores terrenos férteis para a doença, bem como locais críticos de protesto.
Para muitos prisioneiros e imigrantes mantidos em instalações por todo Estados Unidos da América do Norte, o distanciamento social é impossível, e os meios de se proteger estão completamente fora de alcance. Então, não foi surpresa quando pelo menos 80% dos prisioneiros e metade dos funcionários na Instituição Correcional de Marion em Ohio testaram positivo para COVID-19. Em meados de maio, mais de 1.900 homens estavam infectados. Treze prisioneiros e um funcionário em Marion morreram do vírus. Uma prisão federal em Lompoc, na Califórnia, se tornou o local com maior surto de COVID-19 nas prisões federais do país, com aproximadamente 70% das pessoas testando positivo.
Dezenas de prisioneiros agitados pela inação em uma instalação estadual no Kansas supostamente saquearam escritórios, quebraram janelas, e fizeram pequenas fogueiras para protestar contra o fracasso da prisão em lidar com o crescente número de infecções por coronavírus. Na Cadeia de Cook Country, em Chicago, o presídio unitário com maior área no país, prisioneiros se recusaram a comer comida que não fosse preparada fora de lá devido às condições inseguras dentro do local. Mais de 100 prisioneiros na Instalação Correcional de Pendleton, em Indiana, estiveram em greve de fome desde 30 de abril, demandando monitoramento médico e testagem para COVID-19, refeições aquecidas e nutricionalmente adequadas, desinfetantes para mãos, e suprimentos de limpeza.
Ações similares tem sido organizadas na Cadeia de RikersIsland, na cidade de Nova Iorque, para protestar contra a ausência de equipamentos de proteção individual (EPIs), superlotação, e a adição diária de novas pessoas ao presídio. Nos dias seguintes à greve de trabalho de 24 horas em Rikers em março – e uma efetiva estratégia de mídia com ativistas no lado de fora, que forçou o prefeito de Nova Iorque, Bill de Blasio, a responder – o presídio começou a prover EPIs e suprimentos de limpeza. Em abril, o médico chefe em Rikers chamou o presídio de um “desastre de saúde pública”, e como a pressão aumentou tanto dentro como fora da prisão, uma porção daqueles mantidos na ilha foram liberados, mas muito pouco para uma prisão na qual milhares são espremidos em cômodos estreitos.
Do lado de fora, ativistas, apoiadores, e familiares chamam atenção para o descuido, o desprezo e a negligência que resultam em sentenças de morte para muitos daqueles mantidos em celas por todo o país. Como um resultado dos numerosos protestos e pedidos por desencarceramento, milhares de pessoas foram liberadas das cadeias e prisões desde março. Cresce a pressão para que o governador de Ohio, Mike DeWine, liberte 20 mil prisioneiros de Marion, mas até agora seu escritório identificou menos de 200 prisioneiros em todo o estado para uma possível libertação antecipada.
A falta de transparência geral já prevalente no sistema carcerário dos Estados Unidos da América do Norte apenas exacerba as condições profundamente preocupantes no interior deste sistema. Transparência é um fator crítico para lidar adequadamente com surtos, durante, e até depois, que eles ocorrem. Saber se os prisioneiros têm acesso a cuidados médicos e que tipo de recursos estão sendo dedicados à epidemia dentro do sistema carcerário pode significar a diferença entre vida e morte.
Reconhecendo a urgência da situação, advogados e especialistas em saúde pública pedem a liberação por atacado dos presos, bem como por melhor proteção e medidas de segurança dentro do sistema carcerário para frear a propagação da COVID-19.
Propagação de COVID-19 em Centros de Detenção e Aumento da Pressão para Liberar Imigrantes
Em março, detentos mantidos pela agência de imigração (em inglês, ICE) em múltiplas instalações de detenção em Nova Jersey fizeram uma greve de fome demandando acesso a sabão e papel higiênico. Em abril, o Centro de Detenção Otay Mesa, administrado pela companhia privada CoreCivic, teve a maioria dos casos de COVID-19 reportados entre instalações de detenção nos Estados Unidos da América do Norte mantidos pela ICE. Preocupadas com sua segurança, mulheres imigrantes mantidas em Otay Mesa solicitaram EPIs, como máscaras, mas a proteção lhes foi negada, a menos que assinassem termos de renúncia liberando a CoreCivic de qualquer responsabilidade com a COVID-19. Quando elas se recusaram a assinar os termos de renúncia e começaram a fazer máscaras improvisadas de tecido, guardas as atacaram com spray de pimenta, algemando pelo menos três delas e as colocando em confinamento solitário. Em meados de maio, Carlos Ernesto Escobar Mejira, mantido sob detenção em Otay Mesa desde janeiro, se tornou a primeira pessoa a morrer de COVID-19 sob custódia da ICE.
Com mais de 1.100 imigrantes sob custódia da ICE testando positivo para COVID-19, pressão pública e ações judiciais tem sido construídas para que a agência liberte quantos imigrantes e refugiados for possível. Enquanto milhares estão sendo libertados em abril, mais de 30 mil pessoas ainda são mantidas sob custódia da agência em diferentes cadeias e instalações de detenção por todo o país.
Estes ganhos foram conseguidos através de luta dura, e também vieram com um custo. Quando mais de 100 pessoas fizeram um protesto dentro de uma prisão de segurança mínima do estado de Washington, oficiais atacaram presos com spray de pimenta e atiraram neles com armas de projéteis não-letais. Até táticas menos confrontacionais têm resultado em violência contra os presos. Oficiais de correção em Rikers borrifaram spray de pimenta em oito prisioneiros em março para tentar checar a temperatura deles em uma cela clínica. Um prisioneiro em uma instalação de detenção federal na Louisiana recebeu spray de pimenta e foi algemado porque se opôs a colocarem prisioneiros doentes de volta entre a população carcerária em geral. No início de abril, cinco prisioneiros tinham morrido na mesma instalação.
Brutalidade Policial e Aplicação Imprudente de Medidas de Saúde Pública
Muito parecidas com o tratamento negligente e prejudicial de presos e imigrantes, as práticas de policiamento durante a pandemia desafiam o senso comum e colocam uma quantidade incontável de pessoas em risco. Seja impondo medidas de saúde pública como distanciamento social ou respondendo a protestos políticos, a controversa abordagem policial de “janelas quebradas” usada durante a pandemia, criminalizando pessoas e impondo violações de baixo nível, com mão pesada e de forma racistas, reflete a existência de problemas no policiamento do dia a dia nos Estados Unidos da América do Norte.
No início de maio, imagens ilustrando o policiamento desigual acontecendo em Nova Iorque circularam amplamente nas redes sociais. Algumas imagens mostram membros do Departamento de Polícia de Nova Iorque (em inglês, NYPD) distribuindo máscaras a pessoas brancas em parques da cidade lotados, e não prendendo ninguém. Em contraste, vídeos com prisões brutais em comunidades de negros e latinos em distanciamento social também têm circulado. O procurador do distrito do Brooklyn liberou estatísticas, mais ou menos no mesmo período, que destacaram ainda mais as disparidades no policiamento. Das 40 pessoas presas por violação do distanciamento social entre 17 de março e 4 de maio, 35 eram negras, quatro eram latinas, e uma era branca.
No fim de março, o NYPD prendeu três pessoas sob circunstâncias questionáveis apesar das promessas dos oficiais da cidade, na época, de no máximo multar pessoas por causa de violações do distanciamento social. Depois da escalada da situação, atraindo uma multidão, e criando um risco à saúde pública até maior, a polícia borrifou spray de pimenta e agarrou pessoas nas proximidades sem usar equipamentos de proteção, apesar de mais de mil policiais do NYPD terem testado positivo para COVID-19 até aquele momento. As três pessoas foram acusadas de obstruir a administração governamental, assembleia ilegal e conduta desordeira.
Milhares de oficiais do NYPD têm sido despachados nas semanas recentes a parques, ruas e metrôs para impor ostensivamente ordens de saúde pública. De acordo com o New York Times e com informações providas pelo NYPD, entre 16 de março e 5 de maio, a polícia fez pelo menos 120 prisões e emitiu aproximadamente 500 convocações pela cidade por o que a instituição diz serem violações do distanciamento social. Pessoas negras constituíram 68% dessas prisões, e pessoas latinas, 24%. As convocações também foram desproporcionalmente entregues pela polícia, com mais de 80% delas emitidas a pessoas negras e latinas.
Na Philadelphia, vários oficiais de polícia removeram forçosamente um passageiro negro de um ônibus público, arrastando-o para fora por ele não utilizar máscara. Em vez de apenas fornecer uma máscara ao homem, a polícia atuou abusiva e imprudentemente, colocando o passageiro e outros em risco de infecção. O incidente viralizou depois de um vídeo de abril, e a autoridade de trânsito disse que não aplicaria mais sua política de exigir que os passageiros usassem máscara.
Repressão Policial aos Manifestantes por Justiça Social
Em uma abordagem similarmente desigual e seletiva para impor as medidas de saúde pública, policiais estão reprimindo manifestações por justiça social – criminalizando manifestantes, e impondo distanciamento social de modo acidental, imprudente e perigoso – enquanto deixam sozinhas numerosas manifestações de ativistas de direita que protestam contra as ordens de ficar em casa em vários estados.
Em resposta a um protesto com 30 carros do lado de fora do Centro de Detenção de Otay Mesa em solidariedade à maltratada e pouco protegida população imigrante mantida na instalação, a polícia notificou² três pessoas acusando-as de uso ilegal de uma buzina, não possuir comprovante de seguro, e violação da ordem estadual para ficar em casa. Em contraste, não ocorreram prisões quando centenas de pessoas – brandindo armas automáticas, bandeiras dos estados confederados, e suásticas – desceram no Capitólio do Estado de Michigan para protestar contra a ordem para ficar em casa dada pelo governador.
No Primeiro de Maio, pessoas em todo o país se mobilizaram por pautas como moradia e economia, que têm sido crescido com a COVID-19. Manifestantes na Califórnia pediram por moratória em todo o estado para aluguéis, hipotecas e serviços públicos. Ativistas por moradia em São Francisco organizaram uma caravana de carro que atravessou a cidade e eventualmente chegou a uma casa vaga onde duas pessoas sem-teto se refugiaram. Em resposta, mais de uma dúzia de oficiais de polícia bloquearam o acesso à casa por horas, removeram os manifestantes das ruas, e fecharam todo o quarteirão. Os dois indivíduos que tentaram ocupar a casa vaga foram notificados pela polícia, e ao menos um manifestante foi detido agressivamente. Em Austin, no Texas, a polícia interrompeu um protesto por greve de aluguel no Primeiro de Maio, e prendeu mais de 20 pessoas, acusando-as de obstruir uma estrada e de invasão criminosa.
O prefeito de Nova Iorque, de Blasio, baniu todas as atividades ao ar livre relacionadas à Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América do Norte no início de maio, e deixou a critério da polícia prender quem estava reunido em grandes grupos, até se essas pessoas usassem máscara e seguissem as diretrizes de distanciamento. Uma das primeiras ações de imposição na cidade foi fechar uma conferência de imprensa organizada pela coalizão LGBTQ chamada Reclaim Pride, protestando contra a parceria entre o hospital Mount Sinai Beth Israel e a Bolsa Samaritano. A polícia chamou a reunião de ilegal e ameaçou prender os presentes – incluindo membros da imprensa – e exigiu que as pessoas se dispensassem imediatamente, apesar de elas estarem cumprindo as ordens de saúde pública.
Aproveitando Oportunidades para Obter Mudanças Sistêmicas em Tempos de COVID-19
Além de expor a negligência e as deficiências da saúde pública nos Estados Unidos da América do Norte, a pandemia de coronavírus tem atraído muita atenção para as ações racistas e repressivas realizadas pelo Estado diariamente. Quer se trate do encarceramento em massa e suas trágicas consequências, da punição generalizada e das práticas de policiamento violentas que miram as pessoas de cor, ou da repressão constantemente direcionada a ativistas de esquerda e movimentos por justiça social, a COVID-19 tem destacado as variadas e nocivas formas de controle pelo Estado.
Se tem um lado positivo na devastadora crise de saúde pública e econômica em que nos encontramos, é a ruptura do status quo e a oportunidade de fazer mudanças fundamentais na forma como nos organizarmos e de nos governarmos. Ao lidarmos com a necessidade de novas formas de resistência e com qual é a melhor maneira de alavancar nossa força coletiva neste momento, devemos procurar pontos de intervenção estratégicos que nos permitam alavancar essa força para obter mudança sistêmica.
Pedidos pelo desencarceramento e pela abolição das prisões estão crescendo. Até o policiamento, que tem raízes profundas nos Estados Unidos da América do Norte, está sendo visto cada vez mais como uma ferramenta de controle social na qual nós poderíamos estar melhor se não a tivéssemos. A dissolução do Estado carcerário/policial tem sido a principal prioridade dos movimentos sociais de pessoas de cor por muitos anos. Devemos aproveitar essa base à medida que nos recuperamos da COVID-19 e garantir que não voltemos simplesmente ao “normal”.
Notas:
[1] Nota do Tradutor: Die-in é um tipo de protesto que as pessoas, caídas ao chão, simulam estarem mortas.
[2] Nota do Tradutor: Notificação que deve ser assinada se comprometendo a comparecer em juízo, cuja renúncia em assinar resulta em detenção.
Tradução > Sid Sobral
agência de notícias anarquistas-ana
sair do protocolo
contornar a mesmice
bancar o vôo solo
Gabriela Marcondes
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!