O fascismo é o paroxismo do normal

Por Wander Wilson

Para fazer funcionar segundo a pura teoria os direitos e as leis,
os juristas se punham imaginariamente no estado de natureza;
para ver funcionar suas disciplinas perfeitas,
os governantes sonhavam com o estado de peste.
Michel Foucault

Que o delírio me arte
Makalister

1830

Lauret inicia seu procedimento de cura da loucura informando ao homem que as vozes que escutava não eram reais. O homem responde que sabia bem o que tinha ouvido. O psiquiatra prossegue pedindo que ele pense mais em suas loucuras, que obedeça ao que ele lhe pede pois isso é razoável.

Uma ducha gelada. Outras perguntas. Outras duchas geladas. O processo só é interrompido quando o homem confessa de que não havia mulheres lhe xingando nem pessoas perseguindo. Tudo aquilo era loucura.

A cura procedia pela extração da confissão de que um louco era louco. Neste momento religioso a loucura não poderia mais existir. Ou se tinha razão, ou se tinha loucura. Separar estas duas entidades é o fundamento primeiro da lógica manicomial e suas práticas.

Colonização

Para que alguém fosse dirigido aos manicômios era preciso que a família expulsasse um de seus membros para o confinamento. A família opera como uma ponta de soberania que internamente se hierarquiza pela distribuição assimétrica da autoridade no binarismo de gênero e governa as crianças (Patria Potestas). A correção da loucura e a missão civilizatória foram amplamente comparadas ao longo da história do século XIX. Fournet afirmava que a os missionários tomavam a família emprestada para sanar os erros de tradição dos povos alienados. Eles eram a infância dos europeus em um estágio da razão inferior, a infância da humanidade (infans – o infante é aquele que não domina a fala). A colonização dos povos se cruza com a dos loucos nos asilos e das crianças na família.

A família aparece como o próprio princípio de correção da alienação dos povos considerados selvagens e também dos loucos. Ao longo do século XIX Europeu, com repercussões no início do século XX Brasileiro, produziu-se uma profusão de teses médicas sobre a prostituição e a mulher degenerada. Parte destas teses exploravam que a mulher recorreria a estes recursos por querer realizar apenas prazeres e libido, e, também, por ter uma fonte escassa de recursos materiais. A comparação mais uma vez se dava entre os selvagens e as crianças. Assim como estes, elas deviam ser tuteladas pelo Estado.  Problema de um cuidado com a espécie em uma linha evolutiva da civilização.

A cidade de Barbacena, em Minas Gerais, ficou conhecida como sítio do Holocausto Brasileiro, principalmente pelo grande trabalho da Jornalista Daniela Arbex. No manicômio ali instalado, algumas das pacientes consistiam em mulheres expulsas de suas famílias pelos seus maridos devido a alguma inadequação detectável pelo soberano.

Pausa para o comercial

Nos Estados Unidos a classe medicamentosa dos benzodiazepínicos (Rivotril, frontal, etc) passa a se popularizar com emprego ansiolítico. Um destes era o Oxazepam, cuja publicidade, em 1967, se direcionava a maridos e enquanto o consumo era destinado preferencialmente às esposas.

Você não pode deixá-la livre, mas você pode ajudá-la a se sentir menos ansiosa. (https://w-bad.org/benzohistory/)

Degenerescência

Além das mulheres, uma figura importante na definição do degenerado e do delinquente foi o anarquista. Em seu livro Os Anarquistas, de 1894, o Antropologista Criminal e Médico Cesare Lombroso, os define como criminosos natos. Sua demonstração parte de medições de crânio e larguras da mandíbula. A característica fisiológica produziria a insubmissão.

A teoria de degenerescência também floresce após a experiência da Comuna de Paris, encerrada com o massacre, prisão e execução de muitos communards pelo Estado. Psiquiatras franceses analisaram o episódio. As análises traziam como tônica a ideia de que a experiência não poderia ser da ordem da razão. Houve uma febre coletiva tal qual na utilização do álcool. Outros inventaram em seus delírios racionais que o consumo de álcool havia produzido a Comuna. Este episódio ajudou a fomentar um movimento moral antialcoolista na França.

Esta psiquiatria se articulava a uma perspectiva que ficou conhecida historicamente como Higiene mental. O conceito de degeneração produziu um novo tipo de racismo, agora contra o anormal. No Brasil, Juliano Moreira da Costa, chega a escrever que os degenerados, entre eles, alcoolistas inveterados, deveriam ser proibidos de se reproduzirem. Atribuiu a isto medidas profiláticas: era preciso higienizar a reprodução familiar e seu impacto na população.

Brasil

O médico Rodrigues Dória vai a Washington apresentar sua pesquisa em dezembro de 1915. Ali, diante da comunidade científica, versa sobre a introdução do hábito da maconha fumada nas fronteiras do Estado Brasileiro. Segundo o psiquiatra, este hábito seria uma vingança dos negros para com os brancos civilizados. O problema era colocado nos termos da evolução. Os pretos escravizados teriam prestado serviços aos seus irmãos brancos mais adiantados em civilização. Agora transmitiam o hábito da erva fumada como vingança. O racismo aparece como uma ética humanista no meio científico.

Anos depois, Pacheco de Oliveira falaria sobre o perigo da heroína amarela. A droga teria sido produzida na china. Repercutia os discursos estadunidenses de que a dependência dos opioides teria sido alastrada como um golpe comunista chinês. Em seus princípios a heroína fora comercializada pela Bayer, farmacêutica alemã.

Nazismo

As drogas também têm sua participação na operacionalidade dos antigos racismos dos povos com a teoria da degenerescência e o racismo ao anormal durante o nazismo. Em todos os cantos do Terceiro Reich era a gestão da saúde para a pureza da raça que se instalava. Todas as famílias eram intimidadas a participar da polícia diária da vida do estado, buscando traços de parentes que fossem dependentes de morfina ou cocaína. Em 1935, a lei de saúde conjugal proibiu o casamento com qualquer um que apresentasse perturbações psicológicas. Nesta categoria também estavam os dependentes de anestésicos. Doentes mentais considerados criminosos também sofriam execução, dentre estes, pessoas julgadas como dependentes de drogas. Erwin Kosmehl, diretor central do Reich para o combate de delitos relacionados as drogas, afirmava que a maior parte do tráfico internacional era produzido por Judeus.

O nazismo não inventou os campos de concentração: apareceu nos EUA para com os japoneses, na União soviética com os Gulags e a perseguição aos inimigos da revolução e no Brasil, durante o Estado de Sítio de Arthur Bernardes na cidade de Clevelândia do Norte. Neste último, os anarquistas brasileiros eram os principais alvos. Na Alemanha, o que entrou em operação foi um cruzamento entre o antigo racismo dos povos com o mais novo racismo dos anormais, produzindo esta máquina de morte e extermínio ao mesmo tempo em que promovia a saúde para a pureza da raça. Esta, como argumenta Paul Virilio, promovia também uma relação íntima com o suicídio: o já conhecido telegrama 71 de Hitler que visava a destruição das condições de existência do próprio povo alemão. A saudação da morte é íntima ao fenômeno do fascismo histórico. Um dos slogans do franquismo: Viva a morte!

Não é o traço da loucura de uma personalidade que produz o extermínio, mas a racionalização do campo de concentração na decisão de quem deve viver, se expor ao risco do suicídio em nome da pátria, e quem deve morrer. A racionalização da loucura em termos da degenerescência e do perigo da impureza, paroxismo da normalização, como sugerido por Michel Foucault.

Guerra as drogas

No Brasil, nos EUA, na, no, naquele outro lugar, a chamada guerra as drogas é um operador do racismo de Estado. Por onde a proibição das drogas foi se estabelecendo, a ela se conectou a imagem do uso às minorias e à figura do estrangeiro. Antes da aprovação da Lei Harrison de Narcótico em 1914, primeira legislação a definir a tipologia jurídica do adicto e do traficante, o New York Times soltou uma notícia que afirmava: “um crioulo que usou cocaína é mesmo difícil de matar”. Estes vínculos entre uma minoria étnica e/ou racial e o consumo de uma substância também pode ser visto em relação ao ópio, considerado uma praga trazida pelos chineses que foram para os EUA para construir estradas de ferro, ainda no século XIX. A estes estereótipos junta-se o do irlandês, questionado moralmente pelo seu hábito com o álcool, substância proibida junto às demais com a Lei Seca de 1920, que acabou sendo revogada devido ao aumento de mortes em função do consumo de bebidas adulteradas e ao aumento do tráfico de bebidas ilegais, junto a uma convulsão social gerada por meio da proibição desta substância.

Durante a ditadura do Estado Novo no Brasil instaurou-se a Delegacia de Costumes, Tóxicos e Mistificações (DCTM) para resolver problemas vinculados a maconha e ao candomblé. Hoje, o cárcere, a polícia, e a guerra às drogas seguem sendo a máquina assassina do povo preto e periférico. Já acontecia antes. Não é novidade deste governo. Nem foi suspenso na bem-aventurança dos governos anteriores. As comunidades terapêuticas, instituições majoritariamente religiosas como mostra nota do IPEA em 2017, foram integradas ao sistema de saúde promovendo uma moral da abstinência, saúde e fé em uma força superior. Articulam-se valores conservadores como promoção da saúde mental. A evangelização dos anormais, dos pobres em contínuo com as missões realizadas em povos indígenas. Isso nunca cessou. Depois veio UPP e presidente da república falando que bandido se resolve na bala quando a polícia subia o morro do Alemão. O ministro de saúde de então, inaugurou o termo Epidemia de Crack em escala nacional. Bola levantada para algum miliciano do futuro cortar.

2020: Tradição, Família e Propriedade

Em 2020, o confinamento de muitos no núcleo familiar aumenta a violência doméstica. O isolamento na família aumenta o número de mulheres mortas pelo poder executivo da função-pai.  Mantém-se as operações entendidas como combate as drogas em favelas e periferias. As estatísticas apontam que o maior número de mortes devido a COVID em São Paulo ocorre entre moradores da periferia. Os presídios seguem lotados amplificando a potência de morte do cárcere, este novo campo de extermínio de Estado. A maioria dos presos no Brasil estão enquadrados em tráficos drogas. A imensa maioria pessoas negras e moradores de periferia. Antes da COVID, segundo a Plataforma Brasileira de Política de Drogas, os casos de contaminação por tuberculose poderiam chegar até 2072 por 1000 habitantes, 28 vezes a proporção da população geral.

O Sars-cov-2 chega em Terras indígenas. Missionários, garimpeiros, invasores de terra, mantém suas operações normais ajudando a espalhar o vírus, tal qual os primeiros invasores de suas terras.

O Estado deixa indígenas, negros e mulheres sob o alvo preferencial da morte que lhe cabe. Alguém sabe das crianças?

A imunidade vai cumprindo seu papel de definir um inimigo, o vírus, ao mesmo tempo que cria uma unidade combatente intransponível e autônoma: o indivíduo biológico. O último médico-ministro defendia que preservasse as vidas dos mais jovens pela força produtiva em nome da pátria. 5000 mortos, 6000 mortos, infelizmente alguns terão que morrer. A morte e sua gestão reaparecem pela produção de uma saúde que é saúde do Estado. Saúde, força e produção vão se rearticulando na imunidade.

A defesa da propriedade segue a todo vapor. A defesa dos bancos segue com injeção de dinheiro do Estado. Alguém lembra o que aconteceu quando quebravam vidros de bancos em 2013? Lei-antiterrorismo. Não era o governo de hoje.

Outros normais da política recente

Durante a Flip de 2019, realizada na cidade Paraty, organizou-se a Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (FLIPEI). Uma das mesas desta festa contou com o jornalista Glenn Grenwald para falar sobre a operação Lava-jato e a parcialidade do juiz Sérgio Moro nas investigações. O evento aconteceu em meio ao vazamento das conversas de procuradores e juízes que ficou conhecida como Vaza Jato. Ao saberem do debate, uma manifestação Bolsonarista tentou chegar até o evento e, não conseguindo, se instalou na margem oposta do rio em que se realizava o evento. Dali soltaram fogos de artifício no intento de acertar a embarcação onde era realizada a discussão. Queriam acertar alguém. Queriam eliminar o inimigo. Em seus discursos públicos a FLIP categorizou tudo como normal.

Algum tempo antes…

Um governante de esquerda faz aliança com um partido de direita. Tira uma foto apertando a mão de seu célebre representante. Nesta época o atual ocupante do trono fazia parte deste mesmo partido de direita. O que hoje vira loucura na boca dos mesmos, ontem era pacto selado com mãos dadas intermediada pela representação.

Uma memória anarquista: 1936, Durruti

“Nenhum governo do mundo combate o fascismo até suprimi-lo. Quando a burguesia vê que o poder lhe escapa das mãos recorre ao fascismo para manter o poder de seus privilégios, e isso é o que ocorre na Espanha. Se o governo republicano tivesse desejado eliminar os elementos fascistas, podia tê-lo feito a muito tempo. Ao invés disso, contemporizou, transigiu e gastou seu tempo buscando compromissos e acordos com eles”.

Um novo normal só serve ao juiz

Algumas alianças para esta escrita:

Margareth Rago – Do Cabaré ao Lar

Michel Foucault – Em defesa da Sociedade

Henrique Carneiro – A história do proibicionismo

Norman Ohler – High Hitler

Edson Passetti em conversação libertária na soma – https://www.youtube.com/watch?v=lJaPtPqNi6Q

Maria Lacerda de Moura – A mulher é uma degenerada https://tendadelivros.org/marialacerdademoura/

Fonte: https://www.sobinfluencia.com/blog/o-fascismo-o-paroxismo-do-normal

agência de notícias anarquistas-ana

A lua fria —
Sobre o templo sem portão,
O céu tão alto.

Buson