Por Thierry Meyssan | 22/06/2020
Não se trata mais de lutar pela igualdade de direitos para todos, nem de questionar os preconceitos de certos policiais, mas de reabrir um verdadeiro conflito cultural, que corre o risco de desencadear uma nova Guerra de Secessão.
As manifestações nos Estados Unidos não são mais dirigidas contra o racismo, mas contra os símbolos da história do país.
As manifestações que começaram em vários países ocidentais contra o racismo nos Estados Unidos estão disfarçando a verdadeira evolução do conflito em solo americano. Nos próprios Estados Unidos, os eventos passaram de um questionamento inicial das consequências que persistem desde os dias da escravidão negra para um conflito diferente, capaz de comprometer a própria integridade do país.
Na semana passada, recordava neste mesmo site que os Estados Unidos podem ter se dissolvido após o desaparecimento da União Soviética, porque parte da identidade americana era então baseada na oposição à URSS. Entretanto, o projeto imperialista – a “guerra sem fim” – colocado nas mãos de George W. Bush permitiu que o país fosse revitalizado após os ataques de 11 de setembro de 2001.
Também sublinhava que durante as últimas décadas a população americana se mudou consideravelmente para se reagrupar geograficamente devido a afinidades culturais [1]. Os casamentos entre pessoas de raças diferentes começaram a diminuir novamente. E concluía que a integridade dos Estados Unidos estaria em perigo quando minorias que não fossem negros se juntassem ao movimento de protesto.
É exatamente isso que estamos vendo hoje. O conflito não é mais branco contra negro, já que os brancos se tornaram a maioria em certas manifestações antirracistas e dado o fato de que hispânicos e asiáticos se juntaram às marchas e o Partido Democrata está agora envolvido nelas.
Desde o mandato de Bill Clinton, o Partido Democrata tem se identificado com o processo de globalização financeira, uma tendência que o Partido Republicano apoiou tardiamente, mas nunca abraçou totalmente.
Donald Trump representa uma terceira via: a do “sonho americano”, ou seja, a via do empreendedorismo contrário ao mundo das finanças. Trump conseguiu vencer as eleições presidenciais sob o slogan “America First!” – América Primeiro!, que não era – apesar de ter sido dito – uma referência ao movimento isolacionista pró-Nazista dos anos 30, mas ao retorno dos empregos que as transnacionais americanas haviam mudado para outros países sem se importar com o aumento do desemprego nos Estados Unidos. Trump certamente teve o apoio do Partido Republicano, mas ele permanece um “Jacksoniano” [um seguidor dos princípios políticos de Andrew Jackson, o sétimo presidente dos Estados Unidos (1829-1837)] e não é o que normalmente se entende por “conservador”.
Como o historiador Kevin Phillips – o conselheiro eleitoral de Richard Nixon – demonstrou, a cultura anglo-saxônica levou a três guerras civis sucessivas:
– a primeira guerra civil inglesa, também chamada de “Grande Rebelião”, entre os seguidores de Oliver Cromwell e os defensores do Rei Carlos I, de 1642 a 1651;
– a segunda guerra civil inglesa ou “Guerra da Independência Americana”, de 1775 a 1783;
– a terceira guerra civil anglo-saxônica ou “Guerra de Secessão”, nos Estados Unidos, de 1861 a 1865.
Os eventos atuais nos Estados Unidos poderiam levar a uma quarta guerra. Pelo menos é o que o General James Mattis, ex-Secretário de Defesa, parece pensar. Ele acaba de expressar sua preocupação com a política do Presidente Trump à publicação americana The Atlantic, acreditando que ela acentua a divisão ao invés da unidade.
Voltemos à história dos Estados Unidos em relação aos lados beligerantes. O Presidente Andrew Jackson (1829-1837), que foi rotulado de populista, impôs seu veto ao Federal Reserve Bank (Fed), que foi estabelecido pelo primeiro secretário do Tesouro, Alexander Hamilton, um dos pais da Constituição, que era a favor do federalismo por causa de sua violenta oposição pessoal à democracia. Como um bom discípulo de Jackson, o Presidente Trump também está em conflito com o Fed hoje.
Vinte anos após a presidência de Jackson, eclodiu a “Guerra Civil” (1861-1865), que os manifestantes de hoje usam como referência. De acordo com os manifestantes, a “Guerra Civil” colocou o sul, proprietário de escravos, contra o norte humanista. O movimento de protesto que começou com um ato racista – o linchamento de George Floyd por um policial branco em Minneapolis – continua agora com a destruição de estátuas de generais sulistas, como Robert Lee. Ações semelhantes já haviam ocorrido em 2017 [4], mas agora estão ganhando importância com a participação de vários governadores do Partido Democrata.
O governador da Virgínia, Ralph Northam, do Partido Democrata, anunciou o desmantelamento de uma famosa estátua do general sulista Robert Lee, a pedido dos manifestantes brancos. Não é mais uma questão de combater o racismo, mas de destruir os símbolos da unidade do país.
Mas essa narrativa não se ajusta à realidade. No início da Guerra Civil, ambos os lados eram escravos. E no final, ambos os lados foram anti-escravidão. O fim da escravidão não foi uma conquista dos abolicionistas. Os dois lados simplesmente precisavam de mais soldados para enviá-los para a frente.
Na Guerra de Secessão, o sul agrícola, católico e rico entrou em conflito com o norte industrial, protestante e rico. O conflito se cristalizou em torno da questão das taxas alfandegárias – os sulistas acreditavam que cada estado deveria estabelecer suas próprias taxas, mas os do norte queriam aboli-las entre os estados e deixar seu controle para o governo federal.
Consequentemente, com a remoção dos símbolos sulistas, vistos como remanescentes da escravidão, a visão sulista da União é na verdade rejeitada. A propósito, é particularmente injusto chicotear a memória do General Robert Lee, que pôs fim à Guerra Civil rejeitando a adoção de uma tática de guerrilha para perseguir o conflito a partir das montanhas e optando pela unidade nacional. Em qualquer caso, estes atos abriram o caminho para uma quarta guerra civil anglo-saxônica.
Hoje, as antigas noções americanas de norte e sul não correspondem mais às realidades geográficas. Seria mais apropriado falar sobre Dallas versus Nova York e Los Angeles.
Não é possível escolher somente os aspectos considerados positivos na história de um país e destruir tudo o que é considerado “ruim” sem questionar tudo o que foi construído.
Ao se referir ao slogan eleitoral de Richard Nixon de 1968 – “Lei e Ordem” – Donald Trump não prega o ódio racista, como muitos comentaristas afirmam, mas retorna ao pensamento do autor desse slogan, o já mencionado Kevin Philipps. Trump não está interessado em provocar a desintegração dos Estados Unidos, mas em devolver o país ao pensamento de Andrew Jackson, contrário a predominância do mundo das finanças.
O americano Donald Trump é visto na situação vivida pelo soviético Mikhail Gorbachev no final dos anos 80. A economia de seu país – não seu financiamento – tem estado em declínio óbvio há décadas, mas seus concidadãos se recusam a reconhecer as conseqüências desse declínio [5]. Os Estados Unidos só podem sobreviver se estabelecerem novos objetivos. Mas esse tipo de mudança se torna particularmente difícil em um período de recessão.
Paradoxalmente, Donald Trump está agarrado ao “sonho americano”, à possibilidade de “fazer fortuna”, em uma sociedade americana estagnada, onde a classe média está de saída e em um momento em que os novos imigrantes não são mais europeus. Diante disso, seus adversários – o Fed, Wall Street e Silicon Valley – propõem um novo modelo, mas em detrimento das massas.
O problema da URSS era diferente, mas a situação é a mesma. Gorbachev falhou e a URSS entrou em colapso. Seria surpreendente se o próximo presidente dos Estados Unidos, seja ele quem for, conseguisse preservar a unidade nacional.
>> Foto em destaque: A Guarda Nacional protegendo o Lincoln Memorial, um monumento localizado em Washington D.C
[1] American Nations. A history of the 11 rival regional cultures of North America, Colin Woodard, Viking, 2011.
[2] «[USA: les émeutes raciales et la tentation séparatiste->article210033.html]», por Thierry Meyssan, Red!Voltaire, 31 de mayo de 2020.
[3] The Cousins’ Wars, Kevin Philipps, Basic Books, 1999.
[4] «Ce que révèlent les élections US sur le conflit intérieur», por Thierry Meyssan, Red Voltaire, 13 de noviembre de 2018.
[5] «Trump, le Gorbatchev états-unien», por Thierry Meyssan, Red Voltaire, 30 de enero de 2018.
Tradução > Liberto
agência de notícias anarquistas-ana
mar sem ondas
a criança cai
levanta
Ricardo Portugal
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!