Por Capi Vidal | 20/06/2020
Não nos cansamos de repetir, com pertinaz e legítima insistência, que o desprestígio das ideias anarquistas é interminável. Assim, é necessário indagar no que o meio de comunicação de massas por excelência, o cinema, representou sobre o anarquismo.
Precisamente, neste longo século que tivemos de representações cinematográficas o mundo “civilizado” se viu tão condicionado pela tecnologia audiovisual, que parecerá mentira para muitos que, não faz tanto tempo, uma corrente socialista com uma visão ampla da liberdade considerava factível a emancipação da classe trabalhadora. Hoje, que as ideias anarquistas devem ser continuamente revisadas para atuar eficientemente sobre as novas sociedades, ainda que nunca rompendo radicalmente com um passado do qual se pode aprender, é preciso esclarecer o que retêm o imaginário coletivo sobre umas ideias que são eminentemente emancipadoras a nível individual e, especialmente não o esqueçamos, coletivo. A menos que nos desviemos, o delírio pós-moderno nos conduz a recuarmos dogmaticamente para a interpretação dos pais fundadores das ideias ou a buscar refúgio em peculiares correntes supostamente anarquistas (ou pós-anarquistas) igualmente desapegadas da realidade. Tudo isso tem um reflexo na representação audiovisual, com mais profundidade que a literária, em uma sociedade pós-moderna que busca fundamentalmente a rápida digestão (e, desgraçadamente, o não menos rápido esquecimento). Para o bem e para o mal, é necessário assumir a situação em que nos encontramos, bem avançados no século XXI. Se de verdade queremos criar uma visão complexa sobre a história, há que indagar no passado e fazer-lhes as perguntas pertinentes para enriquecer o presente.
Assim como em outros academicismos, liberais, conservadores ou marxistas, os historiadores cinematográficos oficiais tenderam a marginalizar o anarquismo e a reduzir sua história a estúpidos lugares comuns. A representação cinematográfica dos anarquistas (Cine e anarquismo, Richard Porton, Gedisa 2001; um livro que teve uma recente revisão) esteve repleta desde o princípio desses mesmos estereótipos, no melhor dos casos, ou de uma aberta demonização em muitos outros. Assim, a grande maioria dos anarquistas é vista no cinema comercial de maneira irracional e violenta. Indivíduos grosseiros, vestidos de negro, com uma bomba na mão, são vistos habitualmente na tela como representação habitual do anarquista. Embora é certo que, em alguns casos de evidente qualidade cinematográfica dito estereotipo é utilizado para perturbar na ocasião uma paz burguesa e uma ordem estatal muito questionável (é o caso do cinema de Buster Keaton ou de Chaplin), se alimentou inevitavelmente do preconceito no imaginário popular. Exceções, agradavelmente surpreendentes, claro, existem e em um discreto filme argentino, “Caballos salvajes” (Marcelo Pyñeiro, 1995), o emotivo ancião ladrão de bancos interpretado por Héctor Alterio se confessa orgulhosamente anarquista (com mais valor, quando o faz ante a acusação de “marxista” por parte de um jovem bem mais reacionário). Como dissemos, são exceções louváveis e é digna de estudo a persistente visão do anarquista como um louco ou selvagem assassino sem escrúpulos. Talvez, a néscia visão criminalista, que contempla o anarquista como um indivíduo com algum tipo de dano cerebral, teve eco nos diretores cinematográficos desde começos do século XX.
Um precedente na literatura, quase contemporâneo a esses inícios do cinematógrafo, é a novela “El agente secreto”, de Joseph Conrad, que reúne todos os preconceitos e estereótipos possíveis sobre os anarquistas, vistos de forma grotesca no universo de dita obra. Parece curiosa a adaptação cinematográfica mais famosa, “La mujer solitaria” (Sabotage, Alfred Hitchcock, 1931), onde se prescinde da ideologia anarquista dos terroristas para potencializar algo que, apesar de certamente antianarquista, se quis ver na novela original: a equiparação entre policiais e criminosos (algo muito ao gosto da obra de Hitchcock). Uma adaptação mais recente, “The Secret Agent” (Christopher Hampton, 1997), pretendia recriar o ambiente londrino do século XIX, com o mesmo ambiente anarquista presente na novela, ainda que sem muita determinação. Todos esses clichês sobre o anarquismo presentes durante décadas no mundo cinematográfico teve seu lamentável reflexo pós-moderno, não sabemos se irônico, devido à ambiguidade presente na trama, no filme estadunidense independente “Simple Men” (Halt Hartley, 1992). Trata-se de um road movie no qual dois irmãos buscam seu pai, um espécie de radical dos anos 60, ou melhor um perturbado, que lê passagens de Malatesta como se fossem a verdade revelada.
Com o triunfo da Revolução russa, o anarquismo foi duplamente marginalizado, por parte dos estatistas em sua totalidade e unívoca construção do socialismo e pelo bloco liberal capitalista, onde o ‘demônio vermelho’ ficava exclusivamente representado pelos bolcheviques. O estimável “¡Viva Zapata!” (Elia Kazan, 1952) foi um dos filmes mais curiosos da época, insultado pela parte marxista e enaltecido por alguns como crítica à burocracia estatista e partidária do anarquismo romântico do revolucionário mexicano. Algumas grandes produções comerciais sobre a revolução bolchevique, como “Doctor Zhivago” (David Lean, 1965) ou “Rojos” (Warren Beatty, 1981), onde se dá voz a Emma Goldman, embora de forma algo ambígua, ainda que mostram o anarquismo de forma minoritária são exemplos na tela de como o socialismo marxista-leninista esmagou as ideias libertárias e estabeleceu as diferenças abismais entre a sociedade civil e o estado. No filme de Lean, uma emotiva cena em um trem reproduz o diálogo entre um bolchevique e um velho libertário: se o primeiro declara “não quero anarquia”, o segundo faz uma afirmação desafiante: “Viva a anarquia! Sou o único homem livre neste trem, todos vocês são gado”.
No terreno mais estritamente anarcossindicalista, cabe destacar a sinceridade de um filme como “La Patagonia Rebelde” (Hector Olivera, 1974), que conta em forma de thriller político um dos fatos mais trágicos da história sindical argentina: o assassinato de 1.500 grevistas e militantes anarcossindicalistas em 1921 durante a greve na região. O filme reconhece o que deve o movimento obreiro argentino ao sindicalismo de influência anarquista e estabelece certa reflexão sobre a evolução domesticada da classe trabalhadora no país (e, desgraçadamente, por extensão em qualquer outro). Curiosamente, a narração se inicia com o conhecido atentado anarquista, contra um militar de alta patente, cujos atos conheceremos posteriormente, ainda que desta vez se compreende o contexto no qual a terrível repressão leva a atos desesperados. A revolução libertária espanhola, paradoxalmente, segue esperando uma grande obra cinematográfica. Apesar de seu valor, “Tierra y libertad” (Ken Loach, 1995), e com o mérito de estar muito inspirada na emotiva e sincera obra literária de Orwell, “Homenaje a Cataluña”, acaba tendo seu peso no excessivo romanticismo, uma dose de maniqueísmo, e por sua tentativa de idealização do Partido Obrero de Unificación Marxista, vítima da repressão estalinista; o espírito do filme deveria ter sido abertamente libertário. Não obstante, o filme de Loach ganha integridade ao compará-lo com Libertarias (Vicente Aranda, 1996), suposta homenagem ao grupo anarquista Mujeres Libres, que se converte em um irrisório e insultante pastiche, de tom confuso e repleto de personagens esquemáticos.
Para não deixar um mal sabor na boca, neste breve artigo sobre um tema demasiado amplo, mencionaremos intenções cinematográficas abertamente ácratas. Assim, um cinema que podemos considerar claramente anarquista, e de indubitável qualidade, é o de Jean Vigo, desaparecido prematuramente. Este diretor é recordado sobretudo por duas grandes obras: “Zéro de conduite” (1933), exemplo de pedagogia libertária, que conta a insurreição de um grupo de estudantes contra seus severos professores, e “L’Atalante” (1934), história de amor entre um jovem marinheiro sem objetivos e sua esposa, com um personagem anarquista de uma grande força vital, o tio Jules, esforçado em transgredir as convenções sociais. O caráter anarquista, iconoclasta e transgressor de outro grande diretor de cinema, Luis Buñuel, autor de mais de 30 filmes, daria para um extenso tratado. Frente ao empobrecimento cultural generalizado, e a banalidade cada vez mais generalizada da arte cinematográfica, urge recuperar as obras e o exemplo destes grandes cineastas.
Tradução > Sol de Abril
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