A vida na cidade, desde o seu início, tinha como base unir pessoas que não eram ligadas por laços de sangue ou de clã. A única coisa que as conectava era o espaço urbano que criaram e os modos de vida a que este levava.
Como estas pessoas não estavam colocadas dentro de uma estrutura familiar, tinham de encontrar outras formas de se limitar coletivamente umas às outras, para que os direitos de cada cidadão fossem respeitados. Em muitos casos em que o poder foi absorvido por uma elite, foram desenvolvidas formas externas de limitação – que visavam proteger, antes de tudo, os privilégios dos governantes. Em seguida, houve os casos em que a democracia direta foi implementada (pelo menos até certo ponto) – um exemplo brilhante é o da Comuna de Paris – e o poder foi distribuído mais igualmente entre os cidadãos. Surgiu o que Cornelius Castoriadis chama de auto-limitação – a formação e revisão de regulamentos e normas sociais por meio da tomada de decisão popular.
Nesse sentido, a forma como uma cidade opera é uma questão profundamente política. Henri Lefebvre estava certo em sugerir que:
“O espaço não é um objeto científico removido da ideologia ou da política. Sempre foi político e estratégico. […] Porque o espaço, que parece homogêneo, que aparece como um todo em sua objetividade, na sua forma pura, como o determinamos, é um produto social.” [1]
Não é de admirar, então, que sob o contexto cada vez mais autoritário do mundo de hoje, a regulação de nossas cidades está se tornando igualmente opressiva. O mais impressionante é o caso dos EUA, onde as raízes do controle de escravos da polícia, em combinação com o urbanismo militarizado contemporâneo, criaram um ambiente tão segregativo e violento, o que deixa as pessoas sem outra opção a não ser rebelar-se ou morrer. Mas essa tendência não se limita a apenas um país. Na Grécia, o atual governo de direita da Nova Democracia aprovou uma lei contra reuniões em massa – desde manifestações políticas até qualquer coisa que envolva pessoas reunidas em espaços abertos – sem autorização das autoridades.
Essa medida vem como uma continuação da burocratização rastejante, tão característica do Estado e do capitalismo. Projetos de lei semelhantes têm sido há algum tempo um fato nas potências ocidentais [2] e agora estão se tornando realidade na sua periferia em todo o mundo. Esta é a lógica da cidade burocrática, onde os espaços públicos são completamente separados do público real e apropriados pelas elites governantes e pelos ricos.
O projeto de lei do governo grego é característico dessa burocratização [3]: implica que agora é obrigatório obter uma autorização para manifestações e reuniões ao ar livre, a participação em protestos espontâneos torna-se crime, “desamarra” as mãos da polícia para dispersar (mesmo com força total) reuniões “não autorizadas” e exige que os “organizadores individuais” sejam registrados pelas autoridades como responsáveis por cada encontro (e sejam punidos por eventuais danos e confrontos). Para quem recusar esta nova realidade, o novo projeto prevê punições para até dois anos de prisão.
Além disso, o projeto de lei prevê a criação de um “departamento especial de prevenção da violência” [4] este estado de exceção – instituição que traz memórias de tempos mais totalitários.
O governo e a grande mídia, por outro lado, promovem o projeto de lei como forma de garantir os “direitos individuais” dos moradores urbanos. Este não é simplesmente um truque para polarizar a sociedade – embora também faça um bom trabalho nisso – mas também uma confirmação da tensão liberal na política urbana, na qual a atividade coletiva e o engajamento dos cidadãos sofrem ativa resistência e substituição por caricaturas fragmentadas de vida “pacífica”.
Embora a resistência tenha sido gerada pelo movimento político tradicional no país para a implementação deste estado de exceção [5], nenhuma visão alternativa conseguiu ressurgir entre os manifestantes. Do outro lado do mundo, no entanto, muitas vozes do movimento Black Lives Matter começaram a avançar a ideia de controle comunitário sobre o policiamento da vida urbana. A partir da Ação Comunitária Pan-Africana, com sede em Washington D.C., sugere [6] que as comunidades poderiam ser divididas em distritos, cada um dos quais teria poder para auto-determinar como manter a ordem pública através de referendos, dando à comunidade o poder de voto direto para abolir, reestruturar, reduzir ou reconstruir os seus departamentos.
Esta demanda vem para reinventar a forma como as nossas cidades funcionam e incorporar a sua gestão no projeto de democracia direta, pois desafia radicalmente a principal ferramenta de aplicação da ordem burocrática. Quando a polícia – um grupo com autoridade significativa na vida cotidiana e com o seu próprio interesse estreito – está sendo substituída por milícias de pessoas revogáveis – que estão sob a gestão direta de assembleias de bairros e conselhos comunitários – então começamos a falar de auto-limitação social genuína.
O problema global em curso da brutalidade policial e da impunidade vem para designar um problema político mais profundo. Como o autor Olúfẹ́mi O. Táíwò sugeriu [7]:
“O principal problema com o policiamento e o encarceramento é o mesmo problema que assola todo o nosso sistema político: a captura de elite. […] Não podemos colocar a nossa fé em representantes eleitos e simplesmente votar para sair desse problema […]. Em vez disso, precisamos devolver o poder ao povo — diretamente.”
Nesse sentido, deixar o poder de decisão, em qualquer campo, nas mãos de aparelhos burocráticos ou classes gerenciais está literalmente colocando em risco as nossas vidas. Acabar com isso requer uma mudança de paradigma dos mercados nacionais e transnacionais, para a democratização holística da nossa vida cotidiana e das cidades em que vivemos.
Yavor Tarinski
[1] Henri Lefebvre: Critique of Everyday Life (1977), p 341
[2] https://en.m.wikipedia.org/wiki/Protest_permit e https://www.gov.uk/protests-and-marches-letting-the-police-know
[5] https://thepressproject.gr/viei-katapatisi-tou-dikeomatos-sti-diadilosi/
[6] https://www.dissentmagazine.org/online_articles/power-over-the-police
Fonte: https://freedomnews.org.uk/the-bureaucratization-of-urban-space-and-the-need-to-reclaim-our-cities/
Tradução > Ananás
agência de notícias anarquistas-ana
a estação amua
fumo de castanhas
à esquina da rua
Rogério Martins
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!