“O que tento fazer em meu trabalho é dar prazer ao mundo. Faço imagens para que as pessoas desfrutem ao olhar, que lhes ajude a se sentir melhor. Faço imagens que sejam positivas, que reforcem a ideia de solidariedade e que demonstrem a possibilidade de um mundo anarquista” (Clifford Harper – junho 2020)
Em raras ocasiões, as redes sociais ou a internet nos trazem coisas interessantes. Faz cinco anos que topamos – via alguma busca aleatória – com uma imagem que nos chamou poderosamente a atenção. Mais que uma imagem era, na verdade, uma ilustração de estilo xilográfico, monocromática e com traços bem definidos; ela nos mostrava um punhado de trabalhadores de macacão, com jornais da IWW e clamando algum slogan ou chamando, talvez, para uma rebelião. Fazia referência, logo soubemos, à histórica Greve Geral de 1913 que estorou na fábrica de pneus Akron, localizada em Ohio (Estados Unidos).
Esse primeiro impacto de encontrar uma estética proletária em tempos onde o “obreirismo” e a estética classista parecem incomodar as novas formas de fazer política da esquerda contemporânea – ou pelo menos um setor – foi, sem dúvida, comovedor. Pouco a pouco, puxando o fio digital que nos une à virtualidade, encontramos o nome do autor: Clifford Harper. E começamos a descobrir algumas coisas. A primeira delas era que ele não se considerava um artista, mas sim um “trabalhador qualificado, um artesão”; a segunda, que vinha de uma família de trabalhadores e que era militante anarquista; e, finalmente, que continuava ativo e prolífico.
Mas se é que precisávamos de algum motivo extra para escrever sobre ele, foi ter descoberto que algumas de suas ilustrações eram reproduzidas sem citação em vários lados, incluindo uma publicação argentina de grande circulação em ambientes militantes de esquerda. Não nos importamos com o Copyright (e, acreditamos, tampouco Clifford), mas que se possa conhecer seu trabalho, tão pouco divulgado no sul da América Latina.
Clifford Harper aceitou muito amavelmente responder várias perguntas desde o outro lado do mundo para dois desconhecidos que, embora não viessem do mundo das artes, interessavam-se por seu trabalho. Perguntas que aqui compartilharemos em forma de relato e que são o verdadeiro coração deste artigo [1].
Conhecendo Clifford
Clifford Harper nasceu num lar operário de Chiswik, no oeste londrino do pós-guerra, em 13 de julho de 1949. Seu pai era carteiro e sua mãe cozinheira.
Sabemos que com 13 anos as autoridades escolares o expulsam da educação formal e que, sendo apenas um adolescente, realiza diversos trabalhos para sobreviver até que, aos 16, ingressa como aprendiz numa gráfica. Em meados dos anos 60 ainda não existiam os sofisticados programas de desenho ou edição para computadores; deverá, então, aprender o ofício manual desde o princípio, como ele conta:
“(…) tudo era feito à mão. Aprendi ali habilidades e técnicas muito precisas, e como ser paciente para produzir de acordo com instruções precisas. Por isso, meu trabalho é altamente detalhado e com finos acabamentos (…)”
Aprendendo o ofício chegará ao turbulento 68; ano de revoltas na Europa, de barricadas e de sonhos de liberdade, de início de um ciclo de lutas onde as ideias de Bakunin eram redescobertas pela juventude.
Com menos de 20 anos, Clifford abraça o anarquismo, renuncia o trabalho na gráfica e vai viver nas okupas libertárias. Depois de um tempo numa experiência em Cumberland, participa numa comuna da ilha Eel Pie, sobre o rio Tâmisa, perto de Richmond, Surrey.
Uma pequena comuna onde se tentava viver como se pensava e onde a primeira regra será a velha máxima socialista: “de cada um, segundo suas possibilidades; a cada um, segundo suas necessidades”. E os e as militantes irão oferecendo o que sabem. O jovem e autodidata trabalhador gráfico contribuirá com sua parte. E será um trabalho febril. Fará desenhos, cartazes, layouts e ilustrações para o movimento. Ávido e inquieto, seguirá aprendendo técnicas.
Nos dirá sobre essa experiência que:
“(…) Quanto mais fazia, melhor me saía. Quanto melhor eu fazia, mais pedidos de trabalho recebia (…)”.
A experiência durou vários anos, mas, até fins da década de 70, foi se reduzindo a possibilidade de trabalho independente fora dos canais comerciais.
Então, começará para Harper uma extensa carreira profissional, na qual desenvolverá o que aprendeu em diversas formas e plataformas: ilustrações para revistas e jornais nacionais, capas de livros, exposições.
Seus trabalhos serão publicados em The Guardian, The Times Saturday Review, Oxford University Press, Penguin Books, Vogue, Radio Times, National Union of Teachers, The Daily Telegraph, The Independent, BBC Worldwide e dezenas de outras mídias [2].
Particularmente intenso e constante foi o trabalho de C.H. no The Guardian, que se estendeu por quase 20 anos.
Obviamente, durante todo esse tempo Clifford participou, impulsionou e colaborou solidariamente em centenas de trabalhos para o movimento anarquista, operário e de esquerda.
Arte e alienação [3]
“(…) Em primeiro lugar, devo dizer que não me chamo artista. Sou um trabalhador qualificado e artesão. Recuso o mundo da arte porque é irremediavelmente corrupto e descomprometido. A arte e os artistas estão aprisionados no mundo do dinheiro, da fama e do ego; e a arte se converteu, às vezes, em inimiga do povo. Claro que há muitas exceções, há muitos artistas que trabalham dentro da luta, mas a arte em geral serve à classe dominante, e não às pessoas (…)”. Clifford Harper
Talvez por isso sua estética pode ser destes tempos ou nos remeter a princípios do século XX e aos pintores que ligaram seu trabalho artístico às misérias que o desenvolvimento industrial capitalista ia semeando. Clifford reconhece como suas influências principais o pintor, gravador, ilustrador e escultor anarquista suíço Felix Valloton (1865-1925); o pintor impressionista francês Camille Pissaro (1830-1903), também simpatizante ácrata; e o pintor impressionista alemão antifascista George Grosz (1893-1959).
Mas o artista que realmente sente como sua inspiração mais importante e como seu verdadeiro mestre é o belga Frans Masereel (1889-1972), xilografista, pacifista e colaborador da imprensa libertária e social da época. Masereel dispensava a palavra e preferia que a ilustração se apresentasse sem texto.
Harper se sente herdeiro e solidário com essa tradição do autor de “História sem palavras” e nos diz:
“(…) todos, com exceção dos cegos, podem ver. E uma imagem funciona muito rapidamente: você a vê, ela entra em sua cabeça e você a entende; tudo numa fração de segundo. Com o texto é muito diferente, as palavras podem mentir. As imagens estão conosco desde o princípio; o texto, por sua vez, só tem algumas centenas de anos, e por muito tempo poucas pessoas sabiam ler (…)”.
Clifford ressalta que não se sente próximo da arte atual, pois a considera elitista e distante dos gostos e necessidades da classe trabalhadora; e sonha em poder aproximar a arte da classe trabalhadora, torná-la compreensível, sincera, comprometida.
“As tarefas no anarquismo seguem sendo as mesmas de sempre: agitar, educar e organizar”
Na vida e no trabalho de Clifford o anarquismo nos é apresentado como uma essência fundamental; seria impossível separar o artesão do militante, o ilustrador do ativista setentista. Sua obra e sua ideologia se sustentam numa mesma face, com um só traço.
Entre os anos 68 e 74, militou ativamente no movimento Okupa londrino, integrando-se ao All London Squatters, participando de ocupações em Camden, North London, Stepney Green, East London ou Peckham.
Eventualmente, militou na IWW [4] em diversos conflitos, foi um assíduo colaborador de Freedom Press [5] e um entusiasmado organizador de diversas edições da Feira do Livro Anarquista de Londres (London Anarchist Bookfair) [6], que contou em muitas de suas edições com a marca de Clifford em sua propaganda e capas, onde tentava mostrar uma imagem positiva e construtiva do anarquismo. Foram, na opinião de Harper, uma das experiências mais agradáveis e prazerosas das quais ele se propôs a participar.
Durante os últimos 50 anos, os trabalhos de C.H. estiveram estreitamente relacionados com a militância anarquista; de modo que são difíceis de quantificar, sobretudo em países de língua não inglesa, onde ainda não foram divulgados adequadamente.
Muitas vezes as necessidades militantes e as urgências do ativismo diário desprezam a propaganda criativa e o desenho cuidadoso. Clifford explica isso quando nos diz que:
“(…) às vezes tive que lidar com uma má compreensão da importância da criatividade no campo da propaganda; razão pela qual houve, frequentemente, uma luta para que o trabalho fosse aceito. Agora as coisas são muito diferentes e há incríveis trabalhos criativos que se realizam em todas as partes (…)”.
Estas dificuldades influenciaram para que Clifford, um defensor ferrenho da necessidade da organização do anarquismo, decidisse deixar de atuar “como um construtor, pois prefiro a liberdade de trabalhar ao lado e não dentro da organização”. Embora ele se apresse em esclarecer:
“(…) sempre aceito e aceitarei o trabalho dos anarquistas. Prefiro ceder meu tempo e minhas habilidades para quem as necessite, colocando a unidade em primeiro lugar e as diferenças onde pertencem: no lixo (…)”.
Palavras finais
Em seus 71 anos, Clifford Harper segue colaborando com as publicações anarquistas, de esquerda ou de trabalhadores que solicitem seu trabalho, de acordo com suas possibilidades atuais, além de ter criado sua própria página digital e editorial: Agraphia Press. [7]
Muitas de suas imagens são compartilhadas por novas gerações que não conhecem sua história e trajetória.
Seus traços definidos e amorosos podem ser vistos em cartazes, murais, capas de livros, panfletos, camisetas, pins ou adesivos; a maioria das vezes sem que se conheça o nome de seu autor.
Em seu monumental e inspirador livro Anarchy, a graphic guide, escrito e ilustrado por ele em 1987, deixava entrever sua confiança no ideário e na prática libertária, tentando atingir um grande público, a classe trabalhadora; mostrando a simplicidade e a profundidade do anarquismo, sobretudo todo seu lado construtivo e positivo.
Nesse sentido, gostaríamos de fechar esta nota com a própria voz de Clifford, com seu otimismo e perspectivas atuais:
“Minha ênfase está colocada na propaganda, em mostrar claramente o verdadeiro significado e possibilidade do anarquismo. Precisamos fazer que as pessoas vejam o anarquismo como desejável e alcançável, e que nossas ideias devam ser vistas como atrativas e positivas. Nossa história mostra que se pode fazer isso e que as pessoas levam consigo a necessidade e o desejo de liberdade, porque o anarquismo vem da própria classe trabalhadora”.
Notas
[1] Agradecemos o trabalho de tradução de Pablo Abufom Silva, que possibilitou superarmos nossas limitações idiomáticas na comunicação com Clifford Harper.
[2] Pode-se acessar a lista completa de suas contribuições nas publicações em: https://peoplepill.com/people/clifford-harper/
[3] Título do livro do historiador e crítico de arte libertário Herbert Read (1893-1968).
[4] A mítica IWW (Industrial Workers of the World), fundada nos Estados Unidos em 1905, tinha uma perspectiva internacional e chegou a constituir seções em lugares como Austrália, Inglaterra, Canadá, Chile, Nova Zelândia, México e Alemanha. Os “wobblies”, como são conhecidos/as seus integrantes, desenvolveram uma militância sindical de ação e democracia direta, independente de governos e patronais. Em sua constituição confluíram anarcossindicalistas, sindicalistas e marxistas revolucionários. Na atualidade, absolutamente identificada com o anarquismo, segue existindo; embora tenha visto claramente reduzidas suas dimensões e influência.
[5] Fundada em 1886, a partir do célebre jornal Freedom, é a editora anarquista mais longeva da atualidade. Entre seus impulsionadores, destacaram-se Piotr Kropotkin, Charlotte Wilson e, a partir dos anos trinta, Vernon Richards.
[6] A primeira edição da conhecida Feira do Livro Anarquista foi realizada em 1983 e se mantém ininterruptamente até hoje.
Tradução > Erico Liberatti
agência de notícias anarquistas-ana
Palmo a palmo
dedo a dedo
inicio teu percurso
Eugénia Tabosa
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!