“É uma ousadia construir um periódico de alta tiragem, sem anúncio ou pauta comercial. Tive muito prazer, mas também houve dor. O processo de despedida tem sido bonito. Resolvi celebrar. A edição 09 será em baixa tiragem e vai discutir corpo gordo e anticapitalismo”, diz a editora do “Jornal de Borda”, Fernanda Grigolin. Ela conversou com a ANA sobre o jornal – visualmente estupendo e anarcofeminista-, que está chegando ao fim com a edição 10. Confira a seguir.
Agência de Notícias Anarquistas > Como surgiu a ideia do “Jornal de Borda”?
Fernanda Grigolin < A ideia surgiu da vontade de manter um projeto de alcance, de manter o contato com o espaço público e suas relações efêmeras. Nasceu de uma vontade de encontro com quem lê. No processo ele foi se aproximando das práticas anarquistas publicadoras, o gesto dos jornais da primeira república e suas relações com a cidade. Mas isso se deu no processo. O Borda não nasce como um periódico anarquista, ele tinha uma proposta de arte contemporânea, arte impressa, depois percebi que o lugar dele era da cultura visual e sob um recorte anarcofeminista, mas eu precisei de uma jornada para compreender o periódico.
ANA > Em que ano foi isso? Em quê contexto? Na época já se assumia uma anarcofeminista?
Fernanda < Em 2015. Na época eu me assumia como feminista autônoma anticapitalista, mas eu não tinha leitura de autoras anarcofeministas e sim de anarquismos e ainda encontrava em minhas leituras pouca identificação de gênero, porém foi na aproximação com as mulheres militantes que aprofundei o meu conhecimento de anarcofeminismo. E sim, desde 2018, me considero anarcofeminista.
ANA > O jornal já nasceu sabendo que iria desaparecer na décima edição, por quê?
Fernanda < O jornal nasceu um pouco sem planejamento. Ele foi crescendo e eu pondo em página. Foi na sexta edição, devido aos seus custos altíssimos postos no papel que eu decidi que a edição dez seria a última. Foi por respeito aos assinantes que tinham assinado do 1 ao 10 que eu também segui. Os assinantes são pessoas muito importantes para o Borda. Dos 200 assinantes, 30% assinam desde o começo e há assinantes que fazem assinaturas para amigos e familiares.
ANA > E por quê “Borda”?
Fernanda < É uma homenagem à Gloria Anzaldúa, as suas teorias das Fronteiras: do corpo, da linguagem e das nacionalidades. O seu livro Borderlands/La Frontera: the new mestiza (1987) e a forma como ela pensa o feminismo autônomo e a linguagem marcaram a escolha do nome do jornal e suas edições até o 04. Gloria volta na edição 06 juntamente com Maria Lacerda de Moura como motes em Fronteiras e Encruzilhadas.
ANA > Como são selecionados os conteúdos? Existem colaboradores permanentes? Vocês recebem sugestões de pautas…
Fernanda < O Borda é um jornal que trabalha com tema ou eixo temático em cada edição. Eu considero um grande ensaio até a edição 03. Eu ainda tinha alguns desejos de pertencer a um lugar da arte, da arte impressa e aos ditames desse lugar. Eu ainda achava possível ter uma perspectiva anti-institucional e participar do mundo das feiras de publicações. Porém, ainda é um lugar do mercado e seus crivos. Eu demorei dez anos para entender que não é um lugar tão autônomo como se diz.
O Borda nasceu de uma experiência na rua, mas eu sentia uma necessidade de pertencer a um lugar da arte. Uma bobagem. No primeiro número eu discuti edição na arte, o segundo discuti circulação, o terceiro há uma complexidade e um olhar mais para militância feminista (autônoma), a teoria queer e as questões raciais. O Borda flerta com o anarquismo na edição 04, o número que traz o fac-símile de A Plebe, mas é mesmo nas edições 05 e profundamente na 06 que o periódico se entende dentro do anarcofeminismo. O periódico passou a complexificar mais as relações, trazer participações de anarquistas e anarcofeministas e, também, resgatar a memória das mulheres anarquistas. Tenho muito orgulho das edições 06 e 07. Você as tem por aí, certo?
ANA > O jornal tem muitos textos em castelhano, por quê?
Fernanda < Porque minha construção de militante é latino-americana, desde adolescente o espanhol é parte do meu cotidiano, no começo com uma aproximação com pessoas e países do cone sul, depois passei a me aproximar de pessoas de outras localidade da América Latina. Acredito muito numa perspectiva latino-americana de luta por questões estruturais, sociais, culturais e coloniais. Tudo que eu faço o espanhol vem junto, não consigo separar de mim isso.
ANA > O jornal é distribuído em alguns países da América Latina, certo?
Fernanda < Sim, é. México e Argentina desde a edição 02 e com lançamentos e participações de atividades; Peru na edição 03, Chile na edição 05. Distribuição é muito cara, meu sonho era que tivesse sido mais ampla.
ANA > E como o jornal se mantém?
Fernanda < O jornal se mantém com assinaturas e do meu bolso. Tive apoios financeiros muito pontuais como um Proac para a edição 03 e um projeto com o Sesc para edição 08. Isso aliviou muito, mas foram alívios pontuais. Mesmo a campanha do número 06 não cobriu tudo. É um projeto com muitas dívidas, mas que estou sanando. Sou muito grata aos assinantes e apoiadores das campanhas. Os cinco anos de existência do Borda foram muito bonitos e sou muito grata. É uma ousadia construir um periódico de alta tiragem, sem anúncio ou pauta comercial. Tive muito prazer, mas também houve dor. O processo de despedida tem sido bonito. Resolvi celebrar. A edição 09 será em baixa tiragem e vai discutir corpo gordo e anticapitalismo.
ANA > “Corpo gordo e anticapitalismo”?
Fernanda < Sim. A reunião de pauta foi uma live no YouTube, um momento especial¹. Artistas, filósofas, escritoras, pesquisadoras decoloniais e ativistas de movimentos sociais anarquistas, feministas, antiespecista, LGBTTTQ+ e negro vão trazer vários olhares sobre o corpo gordo sob uma perspectiva anticapitalista. Entre as participantes estarão Kono, que é ativista gorda, sapatona, antiespecista, pós-pornô, escritora, autora do manifesto gorde ela cerda punk, e Vanessa Joda, fundadora do projeto escola Yoga Para Todos, professora de yoga, militante antigordofobia e anarcafeminista. Ambas são anarcas.
ANA > Você falou de “dor”. Quais as desventuras de perdurar com uma publicação em papel? É um exercício de resistência?
Fernanda < Desventura é uma palavra mais bonita que dor, obrigada. Vou usá-la a partir de hoje e sempre lembrar da ANA, obrigada. Uma desventura de qualquer pessoa que publica é realizar um produto que existe nos moldes capitalistas como um lugar de resistência. O impresso é um lugar amplo, complexo e de circulação, mas não podemos esquecer que ele é produto capitalista. A máquina tipográfica é a matriz do tear e ela foi pensada como máquina. O livro é considerado a primeira máquina de ensinar, tem um propósito industrial, capitalista e disseminador em essência. Porém, assim como qualquer tecnologia ela traz em si a complexidade das relações humanas. Pessoas anticapitalistas usam ferramentas tecnológicas com propósitos de propagação de suas ideias. Eu trabalho com publicações, elas são meu lugar de trabalho (produção, edição e circulação) e também meu lugar militante (pois a arte pode ser a própria militância), às vezes me pego em questionamentos. Uma grande desventura é o Borda nunca ter se sustentado e eu sempre ter posto nele dinheiro próprio. Mesmo sendo um projeto que eu investia o melhor de mim, eu almejava que ele conseguisse se sustentar. Assim como a tecnologia depende do seu uso, acho que o impresso que persiste por aí pode ou não ser um lugar de resistência. Tudo depende de como foi produzido, editado e como vai circular. Uma publicação impressa sozinha (por si e em si) não resiste, quem resiste são as pessoas que o realizam e suas ferramentas de estar no mundo. Eu demorei pra compreender isso. Às vezes a gente olha para uma publicação em papel e diz: “Uau, o impresso resiste!”. Mas o impresso é um organizador social, por trás dele há uma pessoa ou um grupo de pessoas que imprimiram propósitos e nem todos nós somos anticapitalistas, anarquistas e feministas etc, logo nem todos os impressos estarão no lugar de resistência.
ANA > Depois do lançamento do primeiro número, qual foi a edição de maior repercussão? E por qual o motivo?
Fernanda < A edição de maior repercussão é a 06. Há vários motivos pra isso. Ela foi uma edição com uma campanha de financiamento na Benfeitoria, teve muita divulgação e apoio. É uma edição que traz dois fac-símiles e parcerias com pesquisadoras do anarquismo. Muita gente me diz lembrar-se dessa edição, eu mesma, quando penso no Borda penso nela por isso no vídeo que fiz a edição que aparece, ela se destaca. Gosto muito da edição 07. Ela é uma edição de compilado de textos de mulheres anarquistas, é uma homenagem, pôr em páginas diversas mulheres anarquistas latino-americanas lado a lado. Seus temas, seus ideais. Gosto muito do processo, foi artesanal, com muito estudo e apoio da Karina Francis Urban, do Centro Cultural São Paulo e do tipógrafo José Gianetti. Fazer nascer a palavra impressa como essas mulheres faziam é também um gesto histórico e artístico.
ANA > Até o momento, o que você tira de mais positivo da experiência com o Borda?
Fernanda < O mais positivo é a generosidade e o apoio mútuo, tanto dos anarquistas quanto das feministas autônomas. As pessoas que assinam em sua maioria são anarquistas e/ou feministas autônomas e moradoras dos estados do nordeste do Brasil. Algumas pessoas das artes assinam, mas não é em massa, não é em peso como é com os anarquistas. Acho que os anarquistas compreendem a prática publicadora como uma prática essencial ao seu ideal e eles também compreendem questões relacionadas as lutas anticapitalistas.
ANA > Entre essas diversas mulheres anarquistas latino-americanas abordadas no Borda, qual você escolheria para ser mostrada em um filme, uma série? Por quê?
Fernanda < Que pergunta linda. Eu escolhi Juana Rouco para iniciar Charlas y Luchas, um projeto de entrevistas no YouTube. Escolhi Juana porque é a mulher anarquista, das que pesquisei, que mais mexe comigo. Juana é de uma potência, uma complexidade maravilhosas. Tenho uma relação anterior com Maria Lacerda de Moura, a qual tenho extremo apreço, mas Juana me atrai, me movimenta no âmago por questões de classe (foi uma operária como são as mulheres da minha família da geração dela), nômade (eu tenho muita afinidade com pensamento nômade) e pensadora de publicações periódicas feita com mulheres e para anarquistas (Nuestra Tribuna existiu por três anos).
ANA > Você acha que hoje a obra da anarquista Maria Lacerda de Moura transcende o “movimento anarquista”, chega aos vários feminismos? Não faz muito tempo o seu livro “A Mulher é Uma Degenerada” foi citado em uma novela da TV Globo… (risos)
Fernanda < Sim, transcende, e há usos que a deslocam do seu contexto propositalmente. Há leituras liberais ou excludentes da obra de Maria Lacerda, temos que ter muito cuidado. Acho belo que ela chegue mais e mais a diversas pessoas, é maravilhoso. Uma adolescente vendo uma novela pode ter um acesso a Maria Lacerda, ou mesmo via YouTube ou um podcast, mas retirar a Maria Lacerda dos seus ideais anticapitalistas, de amor plural, por exemplo, é deslocalizá-la brutalmente. Porém, apenas olhá-la dentro de um olhar anarquista “universalista”, sem perceber suas complexidades, suas articulações amplas de ideias e suas associações autônomas de ideias também é levantar apenas alguns aspectos do anarquismo. Maria Lacerda e outras mulheres já falavam de América Latina, pensavam seus contextos e estavam atentas as discussões das suas próprias épocas. Elas eram anarquistas, estiveram presentes ali, mas elas também destoaram de uma certa forma de outros discursos que são os discursos que mais conhecemos, que mais temos produção sobre. E trazer isso à tona não é falar mal do anarquismo e sim mostrar o quanto o anarquismo é um ideário complexo e construído amplamente e o quanto essas mulheres foram produtoras de conhecimento por meio dos seus impressos.
ANA > Muito obrigado Fernanda pelo seu tempo e dedicação. Se houver algo mais que você queira dizer para quem está lendo…
Fernanda < Obrigada você. Muito obrigada pelo espaço, por nossas trocas virtuais.
[1] youtube.com/watch?v=qT4CNKULbAc
>> Contatos com o “Borda”:
tendadelivros.org/jornaldeborda
jornaldeborda@tendadelivros.org
agência de notícias anarquistas-ana
Há trafego intenso —
Vendo o ipê amarelo
Meus olhos descansam.
Sonia Regina Rocha Rodrigues
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!