Em 15 de agosto de 1935, aconteceu um dos momentos mais ricos e menos lembrados da história boliviana do século XX: a fundação do Sindicato de Culinária em La Paz. É sempre um bom dia para comemorar as lutas de nossas avós contra o racismo, o classicismo, e o patriarcado!
Por Jhoselin Granaados | 17/08/2020
“Para a glória de nosso sexo, foi fundada em 15 de agosto de 35…”, pode-se ler entre as linhas escritas por Petronila Infantes no manifesto para o segundo aniversário do Sindicato de Culinária. A afirmação, por si só poderosa, torna-se ainda mais significativa com o relato das lutas que passam por esta abordagem de uma das mais emblemáticas organizações proletárias da história boliviana.
Huascar Rodriguez Garcia, autor de La choledad antiestatal: el anarcosindicalismo en el movimiento obrero boliviano, observa que este manifesto reflete a forma como as cozinheiras se percebiam diante da sociedade, reconhecendo-se como parte do proletariado e assumindo seu choledade (cabe destacar que chola é um termo utilizado em alguns países da América Latina como termo de identidade nacional e também tem relação com as populações indígenas).
A União Culinária, liderada por Petronila Infantes, entre outras líderes, foi um movimento de mulheres, e para as mulheres, que deixou toda uma sociedade machista, classista e racista desconfortável. Isso fez retroceder aqueles que se chamavam seus empregadores, incluindo o governo.
Bolívia: final do século XIX e início do século XX
Com a perda do Pacífico, o país tornou-se mediterrâneo, desgastado e empobrecido.
Os lugares de maior intercâmbio cultural, ideológico e social, durante as primeiras décadas do século XX e a última do século XIX, foram as fronteiras: territórios trazidos por camponesxs, trabalhadorxs, artesãs e viajantes que embarcaram nos bondes que atravessavam o país e ligavam cidades.
Destas interações surgiram novos pensamentos ideológicos no país, entre eles o anarquismo, o socialismo e o trostkismo. Nos anos 1920, foram formados grupos de trabalhadores e realizados congressos de trabalhadores. Em 1927, foi fundada a Federação Obreira Feminina (FOF), juntamente com o Sindicato de Artes e Ofícios Vários, após o Terceiro Congresso dos Trabalhadores.
Estes movimentos emergentes foram refreados e limitados com o início da Guerra do Chaco, em 1932. Como eles enviaram um grande número de homens, adolescentes, camponeses e indígenas de várias regiões bolivianas para lutar, muitas mulheres ficaram para sustentar suas famílias e, junto com os mineiros, para sustentar o país com seu trabalho.
Três anos depois, em 1935, a guerra cessou, mas as consequências foram atrozes. Em meio a uma crise terrível, as diferenças de classe e raça se acentuaram, apesar da emergência de uma noção de cidadania entre as classes populares.
Neste contexto, as forças para organizar a classe trabalhadora e as fileiras trabalhistas ressurgem. Desta vez, as mulheres que haviam perdido seus maridos, mães solteiras, cholas e trabalhadoras domésticas assumiriam maior destaque.
A Revolta dos Bonde, o Início do Sindicato de Culinária
No final de julho de 1935, foi emitido um decreto municipal em La Paz que estabeleceu o seguinte:
“É estritamente proibido permitir dentro dos carros qualquer vulto volumoso que possa entrar em contato com outros passageiros, bem como pessoas com sinais visíveis de desconforto ou cujas roupas possam contaminar outros passageiros ou emitir um mau cheiro. Qualquer passageiro terá o direito de que tais pessoas sejam retiradas do carro pelos coletores”.
Esta regra foi solicitada pelas “senhoras” da classe rica de La Paz, que haviam declarado que as cestas das cholas rompiam suas meias e as saias pareciam desconfortáveis e anti-higiênicas.
Os bondes daquela época tinham seus carros divididos para as classes com uma variação no preço do bilhete, de modo que com as novas determinações foi mudada de “segregação” para “proibição”.
Diante deste fato, aparece a figura de Petronila Infantes, que, indignada com a decisão, reúne outras cozinheiras cholas para se manifestar contra os regulamentos classistas, racistas e irracionais.
O bonde era o único transporte público que as trabalhadoras domésticas e cozinheiras tinham que ir às compras e levá-las para seus empregos. As “senhoras”, por outro lado, tinham seus próprios carros para circular pela cidade.
Nestas circunstâncias, o Sindicato de Culinárias foi consolidado com um grupo de cholas de trabalho, organizado para zelar por seus direitos e pronto para exercer pressão até que as autoridades fossem empurradas para trás em suas decisões arbitrárias.
Não só conseguiram eliminar a lei que as discriminava no transporte, mas também se opuseram ao aumento que pretendiam fazer nas tarifas.
Com o exemplo das trabalhadoras da culinária e o apoio de outras líderes sindicais, como Catalina Mendoza e Rosa Calderón, 13 outros sindicatos de mulheres foram formados para organizar seus grêmios e, com o passar do tempo, juntas começaram a ter maior visibilidade e influência na opinião pública.
Um caminho de lutas
Algum tempo depois, o governo tornou obrigatório o cartão de identidade e solicitou que as cozinheiras também portassem um cartão de saúde emitido pela polícia de higiene. Em face destas duas disposições, o sindicato se opôs fortemente, pois a produção de cartões era um negócio muito lucrativo para a polícia e não era compatível com o pensamento anarquista.
Por outro lado, o pretexto de “higiene” foi usado pelas elites crioulas para reinstalar um discurso racista que apontava todos os seus preconceitos contra as mulheres trabalhadoras, com a clara intenção de estabelecer um dispositivo disciplinar de “branqueamento” entre elas.
A fim de eliminar a lei da carteira de identidade, os sindicatos organizaram um protesto em frente ao Palácio do Governo. Petronila, fugindo da segurança, conseguiu entrar no gabinete do presidente para fazer ouvir a voz das trabalhadoras e denunciar os abusos da polícia.
A luta contra o referido cartão de saúde foi mais longa e complexa: foram as senhoras que as contrataram que insistiram nesta exigência, pois disseram que tinham medo de rumores de doenças venéreas nos antigos soldados do Chaco.
Em resposta, as trabalhadoras culinárias propuseram que os empregadores deveriam pagar por consultas com médicos especialistas, e não atuar assim com a polícia.
Ao longo dos anos, elas conseguiram um atendimento diurno gratuito para as crianças durante o horário de trabalho, o reconhecimento do trabalho das cozinheiras como profissão e uma jornada de trabalho de oito horas. Elas fundaram a Federação de Mulheres Trabalhadoras com os outros sindicatos de mulheres. Logo depois, elas se uniram à Federação Local de Trabalhadores para unir forças.
“Porque a organização das mulheres é assim: nós nos defendemos, nós nos administramos” – Petronila Infantes
Dona Petronila Infantes, uma chola anarco-sindicalista
Também conhecida como Doña Peta, ela era uma líder anarco-sindicalista e co-fundadora do Sindicato de Culinária.
A Guerra do Chaco a trouxe de volta da Argentina para La Paz. Chegando à cidade onde nasceu, ela vestia as saias de sua mãe e procurava trabalho no ofício que aprendera desde criança: cozinhar.
O conhecimento de Peta sobre a arte culinária impressionou a todos, já que ela também havia sido treinada em cozinha durante sua estada na Argentina. Os pratos que ela cozinhava eram desconhecidos de seus comensais, por isso causavam uma sensação.
Assim, ela trabalhou para o então Prefeito, que muitas vezes enfrentava a parti do Sindicato de Culinárias.
“Enquanto ele reprimiu aqueles movimentos, eu o alimentava, enquanto o Prefeito Estrada discutia com os grevistas, eu dizia: ‘Viva a greve! Meu chefe me ouvia e me olhava da cabeça aos pés; mesmo quando eu caía presa, ele tinha que me fazer sair, porque se não, não comeria”. – Petronila Infantes
Sua tenacidade a distinguiu, em uma reunião organizada por “feministas” do ‘El Atrio’, onde ela tomou o espaço para apontar às mulheres das classes abastadas a exploração que elas exerciam sobre suas empregadas e o desprezo que tinham demonstrado pela mulher de saia por causa de sua classe e raça.
Uma referência ao anarquismo, assim como ao feminismo popular, antirracista e anticlassista, Petronila professou o amor livre e criticou profundamente a instituição do casamento.
Ela viveu e agiu em coerência com seus ideais, colocando o privado também como político.
Você pode ver mais das cholas anarco-sindicalistas nos livros que também usamos para montar este artigo:
• La choledad antiestatal. El anarcosindicalismo en el movimiento obrero boliviano (1912-1965) Huáscar Rodríguez García. Libros de Anarras.
• Lxs artesanxs libertarixs y la ética del trabajo, Zulema Lehm e Silvia Rivera. Ediciones del THOA
• Anarquismos en confluencia, Ivanna Margarucci e Eduardo Godoy. Editorial Eleuterio
Tradução > Liberto
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