O caso do julgamento do imigrante resume muitos dos aspectos da perseguição política no governo Vargas
Por André Nogueira | 25/03/2019
Desde que surgiram no Brasil no fim do século XIX, seja por tradição operária europeia ou por culturas insurgentes que remetem à colônia, os anarquistas sempre estiveram no alvo das perseguições políticas do histórico autoritarismo estatal. Mal visto até pelos comunistas, esse posicionamento desencadeia muito desconforto às elites brasileiras e ao Estado e sua perseguição atingiu um ápice extraordinário durante o Estado Novo, quando diversos anarquistas foram mortos ou exilados pela polícia política. Este quase foi o caso de Ernesto Gattai, imigrante italiano cujo caso chegou à Suprema Corte Nacional.
Ernesto Gattai foi um famoso imigrante italiano que veio para São Paulo durante a onda de migração da periferia da Europa às plantações brasileiras. Mesmo vindo no mesmo navio, conheceu sua futura esposa (Angelina Da Col) na cidade de São Paulo e tiveram Zélia Gattai, escritora famosa e esposa de Jorge Amado. Gattai veio para o Brasil na condição clássica de um operário italiano: incapaz de ver sucesso no país de origem, mas movido pelas esperanças de futuro da cabeça de um anarquista, buscando liberdade e oportunidade de lutas por um mundo justo, partiu para a América em busca de trabalho.
Gattai era um militante envolvido com a causa anarquista no Brasil. Ao mesmo tempo, para muitos, era um não brasileiro. Também era trabalhador braçal e vivia em condições relativamente baixas. Todos esses elementos colocavam o italiano numa posição de grande vulnerabilidade na sociedade em que vivia. Isso, principalmente, a partir dos anos 1930, quando assume Getúlio Vargas como presidente. Isso nos faz migrar para o ano de 1937, quando Gattai ganha destaque no cenário nacional.
Isso porque neste ano, o caso de Gattai vai parar na Corte Suprema dos Estados Unidos do Brasil, órgão máximo do judiciário na época, por suposta atividade subversiva contra a ordem social, em que a acusação pedia a expulsão do imigrante do país. Portanto, era julgado o Habeas Corpus dele, fazendo com que a discussão caísse sobre dois aspectos: o fato de que Gattai não era nascido no Brasil e o de que ele era um homem de esquerda. Pior: um anarquista, ideologia supostamente responsável pelo caos e a desordem, numa visão conservadora.
A defesa de Ernesto recaiu sobre uma noção cara ao momento: na época, se tentava criar uma noção unificada de “brasilidade”; por isso, foi trazida à Corte a ideia de que Gattai, mesmo não nascido no Brasil, era um cidadão brasileiro na prática (“cidadania fática”), pois interiorizara a brasilidade e não tinha mais contatos com a Itália e tinha casado, e constituído família já no Brasil, abrindo prerrogativas para uma nacionalidade derivada. Mas, ao mesmo tempo, existia a suspeita pairando o caso Gattai, pois não era visto como seguro a liberdade para um anarquista.
Os anarquistas no Brasil têm considerável histórico de influência. Desde 1917, quando essa classe política organizou a primeira greve geral em São Paulo, os movimentos anarquistas são alvo de perseguição da polícia e do governo brasileiro. As greves e as uniões sindicais fazem dos anarquistas membros de um projeto de “política subversiva”, contra os interesses nacionais. Ainda são coibidos pelo próprio Partido Comunista, quando a ideologia socialista de alastrou pela esquerda brasileira e pelos trabalhadores organizados e fez dos anarquistas também “inimigos” da esquerda. Isolado, o movimento manteve-se em ação, porém sob muita perseguição.
Em 1937, ano do julgamento, o Brasil passa por um momento de virada. Vargas é presidente e, depois de um mandato constitucionalmente adequado, cria uma situação de golpe em que instaura uma ditadura nacionalista. A perseguição à esquerda é decretada e aos anarquistas é acirrada. É instaurada uma caça aos que fomentarem algum tipo de “propaganda comunista”, levando à morte ou prisão de diversos militantes dos movimentos operários. Gattai, militante de um grupo historicamente perseguido, é um desses.
Somam-se a este caso as proximidades da Segunda Guerra Mundial. Vargas, em negociação com as potências do hemisfério norte, inicia um alinhamento com os EUA, criando uma relação conturbada com os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Com isso, Vargas proíbe manifestações de nacionalismo italiano, persegue imigrantes e vigia centros de convivência dessas pessoas, além da deportação sumária de imigrantes desses países, como aconteceu com Olga Benário. O fato agrava mais a situação de Gattai.
A defesa de Gattai consegue convencer a Corte de sua cidadania fática como brasileiro, salvando o imigrante da deportação. Ao rememorar as vivências dele no Brasil e a fixação de suas raízes em território nacional, sua defesa cria um apelo à brasilidade, elemento central do projeto varguista, que possibilita que Gattai permaneça no Brasil. Ernesto Gattai não foi preso ou expulso, mas seu caso demonstra as complicações de se remeter a um governo autoritário e suas arbitrariedades, em que a falta do respeito aos anarquistas se acirra e a perseguição a esse grupo político se torna essencial para entender as problemáticas que envolvem a trajetória política brasileira.
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