• Um livro revela novos detalhes da vida do kapo espanhol mais famoso de Mauthausen. Entre 300 e 400 prisioneiros republicanos conseguiram sobreviver sob o mando deste valenciano que exerceu como ajudante dos SS
Finais de maio de 1945. Ainda não passou um mês desde que as tropas estadunidenses liberaram o campo de concentração nazi de Mauthausen. Os sobreviventes espanhóis se encarregaram já de justiçar ou deter os prisioneiros que mancharam as mãos de sangue exercendo como kapos. Apesar de vestir o mesmo traje raiado que seus companheiros, muitos destes ajudantes dos SS haviam sido ainda mais sanguinários que os mesmissimos nazis. Os kapos se encarregavam de manter a disciplina no interior do campo de concentração e de dirigir os trabalhos forçados. Tinham um cheque em branco para maltratar e para assassinar. Não houve piedade para eles quando terminou a guerra. Só um punhado deles conseguiu escapar. O resto foram espancados até a morte por seus companheiros ou detidos e entregues aos Aliados para serem julgados.
Nem todos os kapos haviam se comportado como criminosos. Numerosos prisioneiros utilizaram sua posição privilegiada para salvar vidas. Em troca, o papel que julgaram outros “deportados com símbolos nazis” não estava tão claro. Por isso, naqueles dias nos quais se honrava a memória dos cerca de 5.000 espanhóis que haviam perecido em Mauthausen-Gusen, um nome… um homem esteve no centro de uma intensa polêmica: César Orquín Serra. Este anarquista valenciano foi acusado de todo tipo de crimes por alguns deportados vinculados ao Partido Comunista. Sua integridade foi defendida por outros compatriotas que haviam trabalhado sob suas ordens e que rechaçaram as acusações à tradicional rivalidade política entre comunistas e anarquistas. Orquín acabou pondo terra no meio e se estabeleceu na Argentina, ainda que a lenda negra o perseguiu mais além de sua morte.
“César foi o deportado mais importante da Europa. Ele foi o responsável direto de que três centenas de republicanos espanhóis pudessem sobreviver no inferno nazi —ressalta Carles Senso, que acaba de publicar junto ao também historiador Guillem Llin o livro “César Orquín Serra: El anarquista que salvó a 300 espanhóis em Mauthausen”. Dizer que foi o mais importante não é uma pretensão nossa, para dar valor à investigação e ao livro, mas um ato de justiça histórica. Se não houvessem existido as acusações que se levantaram tendenciosamente contra César Orquín, hoje não haveria dúvida porque ninguém pode trabalhar de forma tão direta para salvar a vida de seus conterrâneos e consegui-lo com tantas pessoas”.
Anarquista até a morte
A obra contribui com numerosas novidades sobre a novelesca vida deste personagem, começando por sua data de nascimento que aconteceu em 1914 e não em 1917 como se acreditava até agora. Filho não reconhecido de um aristocrata valenciano, seu progenitor não o ignorou e lhe facilitou a vida com generosas colaborações econômicas. Isso lhe permitiu contar com uma cuidada educação e relacionar-se com intelectuais e artistas como a bailarina e cantora flamenca Carmen Amaya. Neste processo pessoal, Orquín se viu atraído pela ideologia anarquista à qual seria fiel durante o resto de sua vida.
Segundo puderam documentar Senso e Llin, em 1936 se alistou voluntário para defender a democracia republicana da sublevação militar apoiada por Hitler e Mussolini. César se integrou na Brigada Lincoln, formada majoritariamente por combatentes estadunidenses. Nela exerceu de comissário político, sendo o único anarquista a alcançar esse grau dentro de uma unidade de comunistas e socialistas. Já então teve seus primeiros confrontos com a linha estalinista mais ortodoxa. Um enfrentamento que perduraria no tempo.
Após o triunfo franquista, Orquín seguiu o itinerário habitual dos espanhóis que acabaram em Mauthausen: cruzou a fronteira até a França, foi encerrado nos campos de concentração galeses, se incorporou a uma das companhias de trabalhadores espanhóis do Exército francês, foi capturado pelos soldados alemães, enviado a um recinto para prisioneiros de guerra e, finalmente, fruto das conversações entre o regime franquista e o nazi, deportado ao campo de concentração. “Sua linhagem lhe havia permitido aprender alemão —ressalta Senso—. Em uns poucos meses conseguiu convencer aos SS de que lhe permitissem comandar um grupo que devia realizar trabalhos longe de Mauthausen”.
A obra de Senso e Llin descreve assim o nascimento desse histórico comando: “O 6 de junho de 1941 foram 161 prisioneiros os que saem esse dia dos imponentes e desanimadores muros do campo de concentração de Mauthausen para ir a Vöcklabruck. Todos republicanos, todos espanhóis”. Orquín não podia imaginar que esse grupo de homens famélicos e desesperados que ele capitaneava passaria à história da deportação espanhola batizado com seu primeiro nome: o Comando César. A Vöcklabruck seguiriam chegando prisioneiros espanhóis desde Mauthausen. O comando acabaria tendo entre 360 e 400 membros. “Em 1941 a letalidade no campo de concentração era de 60% —assinala Senso— e, no entanto, em Vöcklabruck não faleceu nem um prisioneiro”.
Herói e não verdugo
César Orquín contou até tal ponto com a benevolência dos SS que podia compartilhar cama e barraca com sua noiva. A sorte do grupo variou durante os anos posteriores. Em maio de 1942 lhes ordenaram transladar-se a Ternberg para construir uma central eletrica. Ali as condições foram mais duras e os acidentes de trabalho custaram a vida de entre doze e catorze prisioneiros. Dois anos mais tarde o comando voltaria a mudar de destino e se instalaria em Redl-Zipf onde não aconteceram falecimentos.
Durante os anos de cativeiro Orquín manteve diversos confrontos com alguns dos prisioneiros comunistas que dirigiam a organização clandestina de Mauthausen. Esses enfrentamentos provocaram que, após a liberação, o PCE lhe acusasse da morte de numerosos deportados espanhóis. O que haviam trabalhado sob suas ordens saíram em grupo para defendê-lo. “A mim, quando outro kapo me deu uma surra, César me defendeu pessoalmente”, recordava o barcelonês José Alcubierre. Seu companheiro de penúrias, Luis Estañ, justificava inclusive os golpes que recebeu do valenciano: “As vezes, quando dava broncas e bofetadas, eu me dava conta de que o fazia para que os SS o vissem, confiaram nele e não foi pior a sorte de todos nós. A mim me deu uma vez uma bofetada que me fez voar quatro ou cinco metros. E eu o agradeci na alma, porque me havia pegado o sargento da cozinha pondo as mãos nas batatas e vinha por mim; a esses lhes custava pouco acabar contigo. E César, que o viu, veio disparado, me pegou e começou a me insultar em alemão… E parou o sargento”. O deportado murciano Francisco Griéguez resumia assim as diferenças entre ficar em Mauthausen-Gusen ou fazer parte do Comando César: “Com Orquín comíamos um pouco mais que em Mauthausen, não nos tratavam tão mal e pela noite nos deixavam descansar”.
Este tipo de testemunhos foram decisivos para que não se formalizasse uma denúncia firme. Ainda assim, Orquín preferiu tomar distâncias e se transladou à Argentina, onde residiu até seu falecimento em 14 de fevereiro de 1988. Segundo Carles Senso, a investigação que desenvolveu junto a Llin nega definitivamente essas acusações: “Há dados objetivos que negam rotundamente o que o discurso comunista disse de Orquín. São fatos contra opiniões. Publicamos no livro as listas completas dos integrantes dos comandos externos que capitalizou Orquín e neles a morte é uma exceção”.
>> Foto em destaque: César com sua esposa Aloise Marianne Riedl e sua filha Luisa Ana, “Mausi”
Tradução > Sol de Abril
agência de notícias anarquistas-ana
A gaveta da alegria
já está cheia
de ficar vazia
Alice Ruiz
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!