Por José Aureliano Martín | 01/11/2020
O apoio mútuo, de Kropotkin, publicado por primeira vez em 1907, é um dos grandes livros do mundo. O motivo disso, conforme era explicado no prólogo de sua edição norte-americana, é que o livro estava sendo continuamente reeditado e constantemente encontrava-se esgotado. Kropotkin foi um homem de ciência e um pensador anarquista. Foi simultaneamente biólogo e filósofo social; historiador e ideólogo. Por isso, seu livro, como afirma Ángel J. Cappelletti no prólogo da edição espanhola, é “um ensaio enciclopédico, de um gênero cujos últimos representantes foram positivistas e evolucionistas. Abarca quase todas as vertentes do saber humano, da zoologia à história social, da geografia à sociologia da arte, todas a serviço de uma tese científico-filosófica que constitui, por sua vez, uma particular interpretação do evolucionismo darwiniano”.
A origem desse estudo, segundo se explica no prólogo, está na viagem de Kropotkin a Sibéria, entre 1862 e 1866, onde procurou evidências sobre “essa amarga luta pela sobrevivência entre animais da mesma espécie”, que era a característica preferencialmente considerada pelos darwinistas. Entretanto, o que Kropotkin viu com seus próprios olhos não foi essa amarga luta, mas a evidência de alguma coisa diferente, que o levou a reavaliar a teoria de Darwin sobre a origem das espécies. Dizia: “A sociabilidade é tanto uma lei da natureza quanto o é a ajuda mútua… os animais que adquiriram o costume da ajuda mútua são, sem dúvida, os mais aptos. Têm maiores possibilidades de sobreviver como indivíduos e como espécie, e alcançam em suas classes correspondentes os mais altos desenvolvimento mental e organização física…”.
Kropotkin analisou o comportamento de muitas espécies. Sobre as formigas, por exemplo, dizia que ocupavam o ponto mais alto de toda uma classe de insetos por sua capacidade mental e bravura. Das abelhas, que trabalhando em comum multiplicavam em proporções inverossímeis seus esforços individuais, e recorrendo a uma divisão temporal do trabalho, cada abelha conservava sua disposição para qualquer trabalho quando fosse necessário, conseguindo assim um tal grau de bem-estar e segurança como nenhum outro animal tem, por mais forte que possa ser, ou melhor armado que esteja. Mas também advertia que a sociabilidade das abelhas era tanto mais instrutiva quanto mais os instintos de rapina e de preguiça continuavam existindo entre elas. Dessa maneira, “quando a coleta está terminada e nos campos e pradarias resta pouco material para a elaboração do mel, as abelhas ladronas aparecem em grande número…, mas a seleção natural deve aniquilar incessantemente as ladronas, dando lugar a indivíduos que compreendem as vantagens da vida social e do apoio mútuo…”.
Depois dessa análise, dizia que “… vê-se, por tudo o que precede, que a guerra de todos contra cada um não é, de modo algum, a lei predominante na natureza. A ajuda mútua é lei da natureza tanto quanto a guerra mútua, e essa lei se faz, para nós, mais exigente quando observamos algumas outras associações das aves e observamos a vida social dos mamíferos…”.
Porém, Kropotkin reconhecia que Darwin, em seu A origem do Homem explicou o verdadeiro sentido da “luta pela existência”, mostrando como em incontáveis sociedades animais a luta pela existência entre os indivíduos desaparecia completamente e, no lugar da luta, aparecia a cooperação que levava ao desenvolvimento das faculdades intelectuais e das qualidades morais que garantiam a essa espécie as melhores oportunidades de viver e se propagar.
Nesse sentido, O apoio mútuo não é, como pretendem alguns, uma negação da teoria da seleção natural de Darwin. Muito ao contrário, Kropotkin partia do reconhecimento da importância adaptável da cooperação e do socorro mútuo, que de maneira nenhuma contradiz a teoria da seleção natural. O que sim foi considerado inaceitável foi o extremismo evolucionista apresentado por autores como Huxley, ou, em sentido oposto, o conceito de vida de Rousseau. Assim, na introdução de seu livro, Kropotkin afirma: “O amor, a simpatia e o sacrifício de si mesmo, naturalmente, desempenham um papel enorme no desenvolvimento progressivo de nossos sentimentos morais. Mas a sociedade, na humanidade, de maneira alguma foi criada sobre o amor ou sobre a simpatia. Foi criada sobre a consciência – embora seja instintiva – da solidariedade humana e da dependência recíproca dos homens. Foi criada sobre o reconhecimento inconsciente ou semiconsciente da força que a prática comum de dependência estreita da felicidade de cada indivíduo e da felicidade de todos, e sobre os sentimentos de justiça ou de equidade, que obrigam o indivíduo a considerar os direitos de cada um dos outros como iguais a seus próprios direitos”.
Ao longo de suas pouco mais de duzentas páginas, Kropotkin mostra uma pesquisa rigorosa sobre o comportamento das espécies animais e do homem primitivo, corroboradas por uma grande quantidade de trabalhos de ecólogos e antropólogos posteriores, que subscrevem cientificamente a principal conclusão dessa obra do pensador anarquista: “… no progresso ético do homem, o apoio mútuo – e não a luta mútua – tem constituído a parte determinante”.
É de interesse sua referência à evolução do conceito de apoio mútuo nas cidades da Idade Média, relacionado, por sua vez, com a evolução de importantes conceitos do direito penal. Escreve assim: “Quando as instituições de ajuda mútua, isto é, a organização tribal, a comuna aldeã, as guildas, a cidade da Idade Média começaram a perder no transcurso do processo histórico seu caráter primitivo, quando começaram a aparecer nelas as excrescências parasitárias que lhes eram desconhecidas, motivo pelo qual estas mesmas instituições se transformaram em obstáculos para o progresso, então a revolta dos indivíduos contra as instituições adquiria sempre um caráter duplo. Uma parte dos rebeldes empenhava-se em purificar as velhas instituições dos elementos estranhos a elas, ou em elaborar formas superiores de livre convivência, baseadas uma vez mais nos princípios da ajuda mútua; trataram de introduzir, por exemplo, no direito penal, o princípio de compensação (multa), no lugar da lei do talião, e, mais tarde, proclamaram o “perdão das ofensas”, ou seja, um ideal ainda mais elevado de igualdade diante da consciência humana, em vez da “compensação” que se pagava segundo o valor de classe do lesado. Mas, ao mesmo tempo, a outra parte desses indivíduos que se rebelaram contra a ordem que tinha se consolidado tentava simplesmente destruir as instituições protetoras de apoio mútuo a fim de impor, em seu lugar, sua própria arbitrariedade, ampliar desse modo suas riquezas pessoais e fortificar seu próprio poder. Nesta tripla luta entre as duas categorias de indivíduos, aqueles que tinham se revoltado e os protetores do existente, consiste toda a verdadeira tragédia da história…”.
Há alguns dias compartilhava com minha professora de inglês estas reflexões e falava da necessidade de tentar adaptar esse antigo conceito da ajuda mútua aos tempos atuais, como remédio para combater os grandes males que nos acometem, a começar pela pandemia em curso, que torna a nos manter confinados, e a mudança climática, que não deixa de nos surpreender com novas catástrofes todos os dias. Embora ela se mostrasse bastante cética a respeito, eu seguia insistindo na necessidade de atualizar o conceito.
Como dizia Asmley Montagu sobre O apoio mútuo no prólogo do livro, “… em sua ampla extensão, inclusive nos tempos atuais, vemos também a melhor garantia de uma evolução ainda mais sublime de nossa raça”. Afirmação que comparto plenamente e que considero de total atualidade e vigência.
Fonte: https://elfarodeceuta.es/apoyo-mutuo/
Tradução > s/n
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