Nos últimos dias vimos como, diante dos protestos e motins nas ruas por causa das medidas tomadas pela pandemia de Covid, muitos meios de comunicação voltaram a usar o anarquismo como desculpa.
Por Julián Vadillo | 07/11/2020
No final do século XIX, a imprensa conservadora (e algumas nem tanto) estabeleceu o objetivo de criminalizar o movimento anarquista, em um momento delicado para as próprias organizações libertárias e em meio a um marasmo gerado por ações individuais que tiveram episódios na França, Espanha ou Itália, entre outros.
Naquela época, muitos porta-vozes e grupos falavam de uma “Internacional Negra” que tinha estabelecido uma espécie de comitê secreto que promovia ataques terroristas em vários países. A origem desta suposta estrutura foi localizada no Congresso de Londres em 1881 e à frente dela, figuras renomadas como Piotr Kropotkin ou Errico Malatesta.
A mensagem era simples. Naquele congresso foi aprovada uma estratégia de enfrentamento violento contra as instituições do Estado e os executores foram dotados dos meios possíveis para realizar essas ações. Uma Conferência Internacional de Defesa Social contra o Anarquismo se reuniu em Roma em 1898, com o objetivo de articular a colaboração policial em diferentes países (as origens da Interpol), sob o guarda-chuva dessa acusação.
No entanto, a realidade estava longe do que se pretendia. O Congresso de Londres em 1881 não estabeleceu nenhuma tática violenta e as informações que conhecemos sobre ela, que foram utilizadas para esta estratégia, vieram de infiltrados da polícia francesa e italiana. Kropotkin, que foi acusado desta estratégia, condenou o uso de violência sem sentido porque, como ele disse, um edifício de séculos de exploração era impossível de derrubar com alguns quilos de explosivos.
Entretanto, o bode expiatório do anarquismo funcionou por muito tempo. Os anarquistas foram acusados da instabilidade interna de muitos países, e o movimento trabalhista foi assim criminalizado e considerado um problema de ordem pública. Algumas circunstâncias de violência individual ou de pequenos grupos foram usadas para estabelecer leis emergenciais e repressivas contra a liberdade de organização.
O anarquismo se transformou em uma carta coringa. Esta questão foi mantida em protestos recentes, como a existência do “Bloco Negro” em mobilizações antiglobalização ou o surgimento de uma autodenominada “Federação Anarquista Informal” com epicentros em países como Itália, Grécia e Espanha. Em todos os momentos, nada de novo sob o sol.
SOBRE OS PROTESTOS ATUAIS
Curiosamente, nos últimos dias vimos como, diante dos protestos e motins nas ruas por causa das medidas tomadas pela pandemia Covid, muitos meios de comunicação voltaram a usar o anarquismo como desculpa. Um famoso programa de televisão, apresentado por um jornalista que se autodenomina especialista em questões de sucesso, disse abertamente que Barcelona foi um epicentro de experimentação do anarquismo internacional. Em todas as notícias, ao falar sobre os perfis do protesto, os “grupos anarquistas” apareceram indistintamente como organizadores ou participantes ativos do protesto.
Não importa se os perfis dos convocadores das redes sociais, em sua grande maioria, têm um vínculo ideológico com a extrema direita. O anarquismo funciona colocando os perfis do protesto no mesmo saco. Entretanto, ninguém indica quem são esses “grupos anarquistas”, onde eles coordenam e o que pensam. O anarquismo foi, é e certamente será um mantra para poder colocar uma amálgama de ideologias sem nenhuma conexão.
O ELOGIO DA REVOLTA?
Luigi Fabbri escreveu um panfleto intitulado Influências burguesas sobre o anarquismo, no qual ele delineou o que era o anarquismo e o que alguns apontavam que era. E como o discurso dessa burguesia sobre o anarquismo havia permeado até mesmo alguns setores libertários.
Fabbri acusou os literatos burgueses, jornalistas e pessoas distantes do movimento operário revolucionário de conferir uma imagem violenta do anarquismo. Embora o anarquista italiano não negasse a necessidade de violência em autodefesa, ele negou a existência de um “anarquismo violento”, pois o anarquismo doutrinário estava longe de ser violento. Este interessante texto de Fabbri foi dirigido àqueles que usaram a palavra e o movimento anarquista, mas também àqueles que, chamando-se anarquistas, reproduziram o que a burguesia e os movimentos diziam ser o anarquismo. Em um ponto de suas dissertações sobre violência, Fabbri afirmou o seguinte: “A violência, além de estar em si mesma em contradição com a filosofia anarquista, na medida em que sempre envolve dor e lágrimas, é algo que nos entristece; a necessidade pode nos impor, mas seria uma fraqueza imperdoável condená-la quando é necessária, e também seria maldoso usá-la quando é irracional, inútil ou usada no sentido oposto ao que pretendemos”.
Certamente, Fabbri faz uma análise de seu momento histórico (ele insiste muito nisso no texto) onde, embora não descarte uma violência concertada inerente a certas circunstâncias históricas, a paixão pela violência ou o uso dela porque foram entendidas como prejudiciais ao anarquismo. Como Malatesta, Fabbri considerou que o fim não justificava os meios e que são esses meios que determinam um fim. Se seus meios forem violentos, sua sociedade será violenta, e ele deu o exemplo do modelo capitalista ou do fascismo incipiente.
A luz das imagens e comentários que foram feitos nos últimos dias sobre os protestos na Espanha, nunca é melhor dar uma leitura como Fabbri fez. Embora a má gestão e a perda de direitos justifiquem a mobilização, é preciso primeiro analisar bem em que consiste esta mobilização e qual é seu propósito.
Como disse recentemente o historiador Aleix Romero, a terminologia e os conceitos são fundamentais e nestas mobilizações eles têm sido embaçados ou pervertidos. É gritada “liberdade”, mas devemos nos perguntar que tipo de liberdade está sendo defendida ou exigida. Que “liberdade” é defendida por um partido como Vox ou extremistas de direita das mobilizações? Que conceito de “liberdade” teriam aqueles que veem seus direitos reduzidos por causa da limitada vida noturna? Que “liberdade” querem os empresários que dizem se sentir prejudicados por várias medidas tomadas?
Quando alguém fica fascinado pelo protesto sem parar para pensar em certas questões, estaremos no ponto em que Fabbri criticou aqueles que se consideravam anarquistas de acordo com os parâmetros estabelecidos pela burguesia e pelos reacionários. “Anarquistas de direita” um bom amigo meu os chama, porque ele diz que eles fazem tudo o que a ala direita quer.
Um servidor, que participou de mobilizações para a defesa da saúde pública nos últimos tempos, diante de cortes ou do abandono dos bairros operários, não pode se identificar com mobilizações que ele vê como mais de direita do que qualquer outra coisa, onde o que prevalece é um “elogio ao motim” sem poder entender aqueles que o justificam.
UM PROBLEMA (SÉRIO) DE ANÁLISE
Fabbri tirou um raio-x de seu tempo e deu uma resposta da perspectiva anarquista. Algo que não está sendo feito no momento. E não digo isto a título de comparação, anseio por um tempo que já passou, mas como um convite à reflexão.
A Espanha passou por uma série de transformações sociais nos últimos tempos que não foram analisadas de forma coerente ou reflexiva pelos movimentos sociais, incluindo o anarquismo. O ciclo que se abriu com o dia 15 de março, onde parecia que certas questões horizontais poderiam ser recuperadas, foi enterrado, em parte, por um debate sobre se trazer ou não alguns dos protagonistas desse movimento para as instituições. Entretanto, uma análise social baseada na perda de direitos, nas consequências dos cortes sociais no campo educacional ou de saúde, foi deixada em um nível secundário ou não foi tratada com suficiente interesse. No final, os bolsões de pobreza que são gerados podem ser canalizados na direção oposta aos nossos desejos, e o ressurgimento da extrema direita marca um perigo que eu não sei se estamos calculando em sua verdadeira dimensão.
Quando, na França, no final do século XIX, as medidas introduzidas pela Terceira República tentavam se consolidar, uma figura chamada George Boulanger organizou um movimento que, com conceitos sucintos baseados no patriotismo e um programa demagógico de reformas sociais, arrastou a influência de diferentes setores políticos. Não durou muito, mas deu dores de cabeça reais não apenas às autoridades republicanas, mas também ao importante movimento socialista e anarquista francês. Algo semelhante está acontecendo hoje em dia, apesar da distância e das circunstâncias.
A pandemia de Covid-19 aumentou ou acelerou este processo. Tenho que admitir que me surpreendi com o número de “epidemiologistas” e “virologistas” que nos rodeiam (e eu sem o saber). De repente, muitas pessoas “souberam” como combater um vírus. E enquanto eles gastam suas forças para contradizer o homem da frente, para mostrar que “eu sei melhor” ou “o exemplo X é melhor que o exemplo Y”, houve um crescente descontentamento. Além disso, nestes tempos complicados, há pessoas que consideramos próximas em ideias que perderam algo fundamental: o princípio da empatia. Porque, cuidado, a situação gera medo em amplas camadas da população e a última coisa que você procura é o julgamento da torre de marfim para lhe mostrar o quanto você está errado. Aqueles de nós que viram de perto o perigo dos vírus ou como as pessoas em seu ambiente desapareceram, não estão à procura de fórmulas mágicas, mas de reflexões gerais.
Se formos capazes de realizar um exercício de reflexão sobre o que nos rodeia, afastando-nos da demagogia e mistificação, talvez ainda tenhamos a oportunidade de dar uma leitura e oferecer uma alternativa. Entretanto, esta reflexão e análise deve ter todos os elementos sobre a mesa, aqueles que gostamos e aqueles que não gostamos. Não podemos tomar a parte do todo para tirar a conclusão de que pretendemos e demonstrar àquele “à nossa frente” que ele está errado e que é um cretino porque eu sou “mais esperto que qualquer outro”. Na verdade, não deveria haver um “a frente”, pois as análises são feitas lado a lado. O problema surge quando a base dessas discussões é feita por twitter ou em 140 caracteres.
Mesmo assim, devemos ser otimistas e estabelecer uma base para uma análise e um debate sério. Malatesta costumava dizer que a superação de uma sociedade injusta requer a base e a fundação de um novo mundo. A destruição em nome da destruição é niilismo, e nada de bom jamais saiu dele. Nem tudo está perdido.
Fonte: https://www.elsaltodiario.com/opinion/el-comodin-del-anarquismo
Tradução > Liberto
agência de notícias anarquistas-ana
Pardal orfãozinho
vem brincar
comigo
Cláudio Fontalan
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!