• Sua Escola Moderna em Barcelona, geralmente mais reivindicada no estrangeiro, supôs uma das maiores experiências de vanguarda educativa na Espanha e o tornou inimigo das classes dirigentes, o que o levou a uma condenação e fuzilamento por uns atos que não cometeu
Por Pau Rodríguez | 06/12/2020
A noite de 13 de outubro de 1909 milhares de pessoas protagonizaram violentos distúrbios em Paris, frente à embaixada espanhola. Esse dia e os seguintes também se registraram protestos em Bruxelas, Milão, Lisboa… Uma autêntica onda de solidariedade internacional, sobretudo desde círculos anarquistas e livre pensadores, contra o fuzilamento em Barcelona de um pedagogo.
Francesc Ferrer i Guàrdia, de 50 anos, havia sido conduzido essa manhã de outubro até o fosso de Santa Amalia, na prisão de Castillo de Montjuïc. Frente ao pelotão que iria executá-lo, se negou a ajoelhar-se. Tampouco quis dar as costas. Justo antes de receber a descarga de balas, proclamou: “Sou inocente! Viva a Escola Moderna!”
Sua execução, após uma condenação como bode expiatório da revolta da Semana Trágica em Barcelona, provocou a ira da imprensa estrangeira, dos seguidores de suas teorias pedagógicas e dos movimentos anarquistas. Um impacto muito maior que o que desatou na Espanha, onde Ferrer i Guàrdia havia ganhado demasiados inimigos.
Mais de 100 anos depois, e apesar de que foram muito poucos os que o reivindicaram durante anos, a obra de Ferrer i Guàrdia permanece como uma das experiências pedagógicas mais vanguardistas e revolucionárias da história da Espanha e Catalunha. Um projeto educativo, o da Escola Moderna, que supunha nas aulas a mescla de sexos e de classes sociais – algo inédito –, o fomento da autonomia e a liberdade dos alunos em detrimento do castigo, e a aposta pela ciência, a razão e o laicismo como resposta à influência do poder da igreja. Tudo isso a serviço da transformação da sociedade e da emancipação da classe obreira.
Tão inovadoras eram algumas de suas propostas que hoje, em um sistema educativo que nada tem que ver com o de princípios do século XX, seguem sem resolver-se. “Alguns termos mudaram, e o que então era mesclar as classes sociais agora chamam de combater a segregação, mas o debate segue sendo o mesmo”, aponta o pedagogo e historiador Jaume Carbonell. “E quanto ao laicismo, está bastante assumido que a escola é não confessional, mas para que seja totalmente laica teria que abolir o Concordato da Santa Sede”, acrescenta.
Que foi a Escola Moderna?
A Escola Moderna foi a obra máxima do pedagogo Ferrer i Guàrdia após uma agitada vida de ativismo político que começou com o republicanismo, de adolescente, e que o levou a viver durante anos exilado em Paris, onde se voltou para as teses mais anarquistas e livre pensadoras, e onde entrou em contato com diversas correntes educativas.
“Ele absorvia como uma esponja e bebia daqui e dali, de forma sincrética e pouco sectária, do humanismo franco maçônico ao vitalismo, de Kropotkin a Paul Robin”, resume Pere Solà Gussinyer, catedrático emérito de história da educação da Universitat Autònoma de Barcelona (UAB) e autor de várias publicações sobre essa figura. Uma das mais chamativas foi sua experiência com o francês Robin, outro pedagogo anarquista, que desenvolveu durante anos em um orfanato em Cempuis um projeto coeducador, laico e emancipador que cativou Ferrer i Guàrdia.
Em sua volta à Barcelona, e graças em parte a uma herança de uma antiga aluna francesa, Ferrer i Guàrdia fundou a Escola Moderna. Abriu as portas em 1901, em um edifício da rua Bailén, no bairro do Eixample.
Naquele contexto, as ideias de Ferrer i Guàrdia conectavam com os movimentos crescentes na cidade de sindicalismo libertário e a proliferação de ateneus populares. Sua escola se opunha ao sistema educativo do momento. “Havia nesse momento um ensino primário de muito baixa qualidade, com elevadas taxas de analfabetismo, sobretudo feminino, e um ensino secundário muito mediatizado pelo clero, com pouquíssimas exceções”, sustenta Solà i Gussinyer.
Frente à doutrina da igreja e a uma escola estatal muito tradicional, a Escola Moderna oferecia a seus alunos um ensino que poucos haviam proposto antes na Espanha ou Catalunha, os mais conhecidos a Institución Libre de Enseñanza em Madrid (com os quais manteve algum contato). Entre seus pilares, além da coeducação – de sexo e classe – e o laicismo, estavam a supressão dos exames e os castigos, o contato com a natureza, a higiene ou a aprendizagem ativa, a partir da prática.
Visitas à fábrica
Vicenç Molina, historiador, mestre e membro da Fundación Ferrer i Guàrdia – situada em Barcelona –, assinala outras particularidades. “Uma que pertencia à estrutura medular da atividade didática da Escola Moderna consistia em ir visitar com os meninos e meninas fábricas têxteis e oficinas, algumas vezes por mês”, expressa. A realidade social foi material educativo primordial para este pedagogo. Deixou escritos seus Princípios de moral científica, que começam com uma carta ao professorado: “Cada mestre tem que utilizar as notícias que, quase sem comentário, se dão nos diários, ora um homem falecido por fome, ora de outro esmagado pela queda de um andaime […] São inumeráveis os fatos que podem servir de exemplo para que os meninos se convençam bem da realidade das injustiças sociais”.
Também destacou a atividade da Escola Moderna por suas sessões dominicais de formação de adultos, com conferências nas quais participaram Santiago Ramon e Cajal ou Odón de Buen. Ou toda a atividade da editora (do mesmo nome que a escola) com a qual acompanhou a educativa, e que considerava igualmente importante.
Apesar de seu legado, a Escola Moderna criada por Ferrer i Guàrdia foi uma experiência muito breve, de 1901 a 1906. Seu modelo foi replicado por dezenas de escolas durante esses anos e em tempos posteriores, não só na Catalunha, mas também por toda Europa e até na América Latina, mas a experiência da rua Bailén acabou tão somente cinco anos depois de começar. De forma abrupta e definitiva.
A Escola Moderna foi fechada de forma oficial devido ao processo de Ferrer i Guàrdia pela tentativa de regicídio em maio de 1906 contra Alfonso XIII no dia de sua boda com Victoria Eugenia. Mateo Morral, o anarquista que lhes lançou uma bomba, era o bibliotecário da Escola Moderna.
Ferrer i Guàrdia acabou absolvido, mas não o deixaram voltar a abrir a escola. Entre seu ativismo político, seu enfrentamento com a igreja através da escola e aquele último, havia se convertido em “o inimigo número um da monarquia, do exército, da igreja, da direita espanhola e da burguesia catalã”, assinala Solà i Gussinyer. “Queriam destruí-lo e o conseguiram”, acrescenta.
Saiu do país e passou pela França e Bélgica – onde presidiu a Liga Internacional para a Educação Racional – até que em 1909 voltou a Barcelona. Seu regresso foi justo antes da revolta da Semana Trágica na cidade. E o acusaram de ter sido um de seus instigadores. O julgamento, segundo os historiadores, não chegou a provar nada disso, mas ainda assim o condenaram à morte e acabaram fuzilando-o no Castillo de Montjuïc. “A montagem contra Ferrer i Guàrdia não se explica sem o medo que despertou nas classes dominantes, em parte devido à Escola Moderna”, resume Carbonell.
Um legado pouco reivindicado
Todos os historiadores consultados asseguram que a Escola Moderna influiu de uma ou outra forma nas correntes de renovação pedagógica que proliferaram ao cabo de poucos anos na Catalunha e Espanha, e que culminaram de alguma forma com a escola da Segunda República. “Muito do que tenta fazer Marcel·lí Domingo [ministro de Educação republicano] e a renovação pedagógica está inspirada em aspectos de Ferrer i Guàrdia, mas mais por sua obra prática que por suas posturas políticas”, argumenta Vicenç Molina.
“A linha de Ferrer i Guàrdia tem muitos pontos de contato com a Escola Nova, tudo o que tem que ver com a vinculação com o meio, o respeito à criança, a autonomia…”, enumera Carbonell. Sua figura, no entanto, foi muito menos reivindicada que a maioria de grandes pedagogos como Montessori ou Decroly.
A principal razão de que não se reivindicasse foi o ódio visceral que despertou entre todos os setores poderosos espanhóis e catalães mas não só, também entre alguns círculos progressistas. Mas Molina assinala outros: “É possível que fosse uma figura bastante antipática e inflexível, talvez não na escola mas sim em seus textos, com uma retórica empolada”. Tampouco gostou o catalanismo posterior, que não houvesse optado pelo catalão como língua da escola, mas pelo castelhano, idioma que considerava mais universal (e que teria desejado substituir pelo esperanto).
Uma simples comparação entre duas estátuas que homenageiam sua figura, a de Bruxelas e a de Barcelona, exemplificam esse legado. Na capital belga erigiram o monumento a Ferrer i Guàrdia já em 1911, o que provocou um conflito diplomático com a Espanha. Na Bélgica, Ferrer i Guàrdia foi durante anos uma figura venerada como mártir do livre pensamento. Em Barcelona, no entanto, ainda que durante a Segunda República deu nome à atual Plaza Urquinaona, não foi até 1990 que a municipalidade de Pasqual Maragall lhe erigiu uma estátua. Em suas memórias, o então prefeito explicou: “Encomendei uma cópia para pô-la em Montjuïc, mas essas coisas as queria fazer de acordo com a oposição e Convergência protestou, disse que aquilo era maçonaria […]. A oposição me obrigou a pôr a escultura em Montjuïc, mas em um lugar onde não se vê”.
Tradução > Sol de Abril
agência de notícias anarquistas-ana
cai, riscando um leve
traço dourado no azul
uma flor de ipê!
Hidekazu Masuda
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!