Para a grande maioria viver ficou reduzido a respirar, e o Inimigo bacteriano personificou o medo. E não é que não seja imprescindível respirar, é que viver, viver mesmo, precisa de mais. Ao final, a vida não é apenas biológica. Para viver, com tudo o que a vida significa, precisamos do sangue correndo nas veias pela emoção de estarmos ativos. Não é a toa que lutamos contra as prisões, contra a escravidão e contra a exploração, todas elas formas de roubar a vida das pessoas ainda que permitindo elas respirar.
Essa tensão entre sobreviver e viver, no entanto, foi apenas uma das viradas na “nova” normalidade imposta. A tergiversação de práticas subversivas como a solidariedade, que parecer estar sendo esvaziada do seu conteúdo subversivo, e a rapinagem sobre as revoltas que as conduz para o cenário estadista nos demandam algo mais.
Se a guerra como horizonte controla as populações e as ilude com a ideia de estar lutando “juntos” contra algo (no caso o Covid-19, a política humanitária evade o problema da desigualdade social e a “resolve” com a “ajuda” humanitária (filantropia, caridade, “solidariedade”) decepando, com essa jogada chave, o inconformismo com a “normalidade” em que uns possuem tudo e outros nada. Se amortece assim as possibilidades de rebelião, já que se provoca uma idéia falsa de unidade e de “agradecimento”, que conduz para um conformismo. Tratas-se de uma política altamente perigosa porque apazigua, mediante a suposta compaixão do opressor que ajuda ou “se solidariza” com aquele que oprime, quem fica, de alguma forma, “agradecido”, mas sobretudo dependente; e porque é uma política extremadamente hipócrita (os mesmos que oprimem fazem milionárias doações).
Deixamos claro que a solidariedade anárquica não tem nada a ver com isso, ela surgiu como a resposta rebelde diante das desigualdades sociais, das repressões e diante de chamados de afinidades para confrontar os dominadores, práticas antes que nada horizontais e que não evitam o conflito, muito pelo contrário o aguçam. Muito distante de “ajudar” alguém “mais vulnerável” e distante, (prática que já situa o “apoiador” num patamar “melhor” quando não “superior”), a solidariedade é estarmos uns pelos outros numa prática horizontal que nos aproxima em dignidade e cumplicidade.
“Não consigo respirar”… Foram as palavras com as que morreu George Floyd asfixiado por um policial em Minneapolis e não pelo Covid-19, e filmado ao vivo por alguém que decidiu fixar sua morte nas redes “sociais” a maneira de denúncia. Também João Beto, em Porto Alegre, parou de respirar, asfixiado pelas Forças da Ordem. Dois assassinatos que escancararam que a vida tem inimigos permanentes que estão aí antes, durante e depois da pandemia. E que viver, contudo e respirar, depende fortemente da luta contra esses inimigos permanentes e não somente de atravessar uma doença.
Foi esse não puder respirar que ecoou pelo mundo e que não se referia apenas à vida biológica, mas a vida livre, o que detonou, mais uma vez, a beleza das revoltas, do fogo da vingança, da destruição da mercadoria, já que é em nome dessa mercadoria que muitos deixam de respirar: baleados, queimados, congelados, conformados a viver na servidão voluntária.
Nesses impulsos de contestação, a vida continua sendo essa caótica beleza imponderável, uma totalidade (social, política, cultural, territorial, significativa) irredutível às cifras e dados estatísticos, irredutível à existência apenas biológica. Anárquicos como somos não podemos esperar menos do que o fim da ordem imposta (a nova e todas suas versões) porque sabemos de sobra que o capitalismo mundializado e a artificialidade cada dia maior da vida, fazem impossível qualquer melhoria, qualquer reforma, paliativos que desviam as possibilidades da destruição das estruturas existentes.
Já nos lembra disso uma nova constituição no continente, que apagou e apaziguou uma revolta construída com afinco e permanente confrontação. O poder é abutre faminto procurando a carne morta dos rebeldes arrependidos que acreditam ingênuos na mudança social desde a máquina de dominação.
Na encruzilhada atual não se trata apenas de se posicionar contra o fascismo, frase clichê que longe de lutar contra os totalitarismos apenas procura tiranos com mais diplomacia, mas de decidir se queremos respirar ou viver, se nos conformamos com as regras da máscara e os novos experimentos sociais ou tomamos o capuz subversivo que nega a dominação antes durante e depois desta e de qualquer pandemia.
E foi nos protestos nos quais se respira o mesmo ar, cheio de gases, nos quais as mãos se juntaram se passando pedras, se ajudando a pular ou quebrar algum templo da mercadoria, nos quais todos bebem a mesma água e compartilham vinagre e bicarbonato, nos quais o olhar era de cumplicidade e não de medo, que a vida, essa vida que corre, e luta com ferocidade contra a dominação, que aqueles que amam a liberdade quebraram a imposição do isolamento “social”, e encapuzados!
Crônica Subversiva | Primavera, 2020.
C O N T E Ú D O:
PALAVRAS DE INÍCIO:
Entre o capuz e as máscaras
ARTIGOS:
– Covid-19: a Anarquia em tempos de pandemia. Gustavo Rodriguez desde algum lugar do planeta Terra.
– Reflexões sobre a Pandemia do Covid-19. Coletivo Tapuru Punk , desde o Belém do Pará.
A revolta é Reproduzível e Contagiosa. Publicação Madre Tierra, desde Santiago do Chile
As revoltas em tempos de Pandemia. Uma breve cronologia
MEMÓRIA COMBATIVA:
Natalino Rodrigues: Anarquista de ação, um indomável, um padeiro agitador. Armando Guerra.
UMA FLAMEJANTE CLAREZA:
São Carlos: Fogo na liberdade plástica.
Cordisburgo. O pixador sem amnésia!
São Paulo. Fogo da Vingança
De ambos lados da cordilheira, o fogo das barricadas pelos que não recuam!
5G
Fogo nos racistas
PELA TERRA CONTRA O CAPITAL:
Atualização das retomadas:
Despejo do Quilombo Campo Grande
A luta dos Mapuche contra o Estado Chileno
É fogo!
Uruguai. Contra construtora do Trilho do Trem da UPM
RESENHAS:
Belém do Pará: Encontro Punk Amazônia Em Kaos
Como vivimos desde la Anarquía la lucha y los disturbios
por el poder en Bolívia
Foge Cara, Foge! Xosé Tarrío Gonzalez.
Amazônia em Kaos: relatos punks abaixo da Linha do Equador.
Jaddson Luiz S. Silva, Joker Índio, Johnny Hardcore Nihil, Marina Knup, Mauricio Remígio, Valo Velho
Das ruas
KATAKLISMA:
Mônica Caballero e Francisco Solar. Cara a cara com o inimigo mais uma vez
Gabriel Pombo da Silva
Atualizações: Indonésia, Bielorrússia, Rússia. Caso da Rede. Ilya Romanov em Liberdade!
Rebeliões nos Presídios
Link para baixar a publicação:
https://mega.nz/folder/8jJm3RxI#7RICZPTHEadEpUXaqNYcAQ
agência de notícias anarquistas-ana
Também para as pulgas
A noite deve ser longa
E solitária.
Issa
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!