Quer a memória seja “cívica” ou uma “cultura”, o problema é a incompatibilidade irredutível entre “políticas de memória” e o “direito à memória”.
O projeto de lei sobre “memória democrática”, apresentado pelo governo de “coalizão progressista” para “reparar e reconhecer a dignidade das vítimas”, abriu um interessante debate sobre o objetivo das “políticas públicas de memória democrática” no atual contexto político espanhol.
Uma questão controversa que levou os historiadores Jorge Marco e Fernando Hernández Holgado a se pronunciarem em dois artigos recentes: no primeiro para “uma nova memória cívica”(1) que dá “um novo significado” aos discursos do franquismo e os coloca “em um novo marco narrativo”, e no segundo para uma “cultura da memória”(2) que “não silencia ou instrumentaliza as memórias” e promove o “reconhecimento das vítimas”.
Bem, embora eu pudesse compartilhar estes dois pronunciamentos, o problema é que eu não só considero sua implementação institucional utópica no contexto da atual batalha política sobre as “políticas públicas de memória democrática” e o enraizamento na “batalha de narrativas”, mas também contraproducente esperar dessas “políticas” a implementação cidadã da “memória cívica” e da “cultura da memória”. Como esperá-lo num contexto em que os Pactos de Transição “amarrados e bem amarrados” ainda prevalecem, e em que os Poderes de fato que a Democracia herdou da Ditadura ainda estão tão presentes devido à falta de uma ruptura institucional com ela?
Naturalmente, o fato de não compartilhar estes pronunciamentos não é um obstáculo para considerar pertinente a argumentação que levou à sua formulação. E ainda mais quando compartilhamos com os autores a mesma “insatisfação” com os argumentos que estão sendo apresentados em relação a este projeto de lei e também concordamos com a necessidade de “reconhecer as complexidades do passado e as diferentes lógicas de violência que operaram na guerra espanhola”. Não apenas para dar aos discursos do franquismo “um novo significado e colocá-los em um novo quadro narrativo”, mas também para que a “memória cívica” e a “cultura da memória” não ignorem os “aspectos desconfortáveis do passado” e sejam a expressão de uma “memória verdadeiramente inclusiva” e “proativa na defesa do patrimônio democrático material e imaterial da luta contra a ditadura”.
Mas considerar a diferença entre as duas propostas como sendo relevantes e puramente semânticas não significa que compartilhamos seu propósito de apresentá-las como a base das “políticas públicas de memória democrática”. Um propósito – estabelecer o que deve ser feito hoje em “termos de políticas de memória” – que me parece contradizer a vontade e a necessidade de colocar o “direito à memória” na “esfera pública e cidadã, não na esfera institucional”. Vontade e necessidade que eu compartilho.
“Políticas de memória” e “o direito às memórias”
É por todas estas razões que considero necessário ir além da proposta de uma “política pública de memória”, que hoje se autodenomina “democrática”, para demonstrar a incompatibilidade irredutível entre as “políticas de memória” e o “direito à memória”. E que devemos fazê-lo porque é óbvio que o objetivo das atuais batalhas políticas entre a “direita social, midiática e política” e a “esquerda social, midiática e política” não é garantir o “direito à memória”, mas impor a narrativa memorialista de cada um a partir das instituições do Estado.
Além disso, não é sequer possível, em tal contexto e com o peso da Transição que impôs uma “reconciliação nacional” cheia de “silêncios, esquecimento e impunidade”, acordar uma “política de memória” que concilie as “duas memórias”: a de uma “apologia memoriale” das vítimas na zona republicana e a de uma “damnatio memoriae” das vítimas durante o regime de Franco. Como evidenciado pela reação da “direita social, midiática e política”, à apresentação do Projeto de Lei do Governo de “coalizão progressista”, e as medidas tomadas pelos governos regionais nas mãos de PP, VOX e Ciudadanos contra os símbolos memorialistas republicanos.
É, portanto, insensato pensar que a “direita” ou a “esquerda” – que são as únicas que podem impor “políticas de memória” – desistirão de impor sua própria narrativa e seus próprios interesses. E ainda mais sabendo que as políticas de memória “dosam adequadamente o passado à maior glória daqueles que agora governam”, como reconhece o autor do artigo no qual é proposta uma “cultura da memória”.
Sob tais condições, como promover a “memória cívica” e a “cultura da memória” e pensar como “políticas de memória”?
Especialmente quando, apesar de defender – seguindo o filósofo Reyes Mate (3) – “a criação de uma ‘cultura da memória’, essencialmente cívica mas apoiada por uma ‘estratégia teórica e institucional'”, reconhece-se que o principal obstáculo para garantir o “direito à memória” e apoiar “as atividades dos coletivos memorialistas” é “a politização do debate sobre a memória na forma de uma ‘batalha cultural’ de uns contra os outros”. Uma batalha que só pode ser superada “na esfera pública e cidadã”, confrontando “as diferentes memórias das testemunhas da guerra e da ditadura” através da recuperação do passado por “associações memorialistas e grupos de cidadãos interessados na lembrança” e “através de um diálogo científico contínuo” entre essas “memórias”.
Naturalmente, pode-se desejar que “políticas públicas de memória democrática” coletem e canalizem “as aspirações da sociedade civil”, incentivem “a participação cidadã e a reflexão social” e reparem e reconheçam “a dignidade das vítimas de todas as formas de violência intolerante e fanática”; mas a realidade da política e o comportamento de todas as instâncias de poder, ao longo da história e da humanidade espanhola, mostram como é utópico tal desejo e nos lembram que as “políticas de memória” sempre responderão aos interesses daqueles que detêm o poder. Portanto, não há outra alternativa senão enfrentar todas as tentativas de impor uma “memória”, admitir a existência de “memórias” e defender o “direito à memória”. Pois, além do fato de que “conflitos entre memórias não devem nos assustar”, o que deve nos importar não é vencer a “batalha das memórias”, mas contribuir para nos aproximar da verdade histórica desse passado, para que os cidadãos possam se apropriar dele de forma crítica e pró-ativa.
Octavio Alberola
Notas:
3.- http://www.pensamientocritico.org/manrey0316.htm
Fonte: https://acracia.org/politicas-de-memoria-y-derecho-a-las-memorias/
Tradução > Liberto
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Jandira Mingarelli
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!