Por Damián Pachón Soto | 09/04/2021
“Em comemoração dos 100 anos da morte de Kropotkin, faço algumas reflexões sobre o legado e a validade do anarquismo clássico”.
“O anarquismo não é caos e desordem, é que ele aposta na construção de outra ordem; não é que ele dispensa o governo, é que ele aposta no autogoverno; não é que o anarquismo rejeite as instituições, é que ele se propõe a criar novas; não é que ele rejeite toda democracia, é que ele opta pela democracia direta e pelo verdadeiro exercício da soberania popular”.
O primeiro a usar a palavra anarquismo foi o pensador francês Pierre Joseph Proudhon, em seu famoso livro O que é Propriedade? de 1840. Proudhon chegou a afirmar que ser governado significa “ser tributado, inspecionado, pilhado, explorado, monopolizado, roubado, espremido, enganado, roubado, em nome e sob o pretexto da autoridade pública e do interesse geral”. Como pode ser visto, aqui já aparece a aversão do anarquismo contra toda autoridade e contra todo governo vertical e hierárquico que se apresenta como o fundamento ou origem da própria ordem social. Isto é o que levou alguns a associar o anarquismo à desordem e ao caos, já que etimologicamente a palavra significa sem princípio, sem origem. E ainda assim, apesar das diferentes manifestações históricas do anarquismo, incluindo o anarquismo cristão, socialista, comunista e feminista, seus princípios e fundamentos filosóficos são muito mais ricos do que pensam as pessoas que não têm formação filosófica ou cultura política. Vejamos.
O anarquismo implica uma oposição a toda autoridade e poder, o que inclui uma rejeição do Estado. O Estado nada mais é do que uma estrutura de poder criada para a moldagem da comunidade. O Estado não é o produto de nenhum pacto ou contrato social como o pensamento liberal propõe, sem qualquer base empírica e histórica. Ao contrário, o Estado é o produto da força. Nisso, a análise anarquista converge com a de Nietzsche que argumentou que “quem pode comandar, quem por natureza é senhor… O que tem a ver com contratos”! Agora, essa rejeição do Estado implica em si mesma uma rejeição da organização partidária, porque estas estruturas só reproduzem hierarquias sociais, substituindo o poder dos que estão na base pelo domínio de um grupo privilegiado no topo, que, de agora em diante, presumem decidir o que é conveniente para a maioria da sociedade, quando na verdade administram seus próprios interesses e negócios. É por isso que a democracia representativa é uma simulação.
A este respeito, foi Mikhail Bakunin quem deixou os melhores parágrafos sobre os fundamentos teológicos da autoridade, e da relação necessária da igreja com o Estado. Neste sentido, ele também era um filho da Revolução Francesa e da expansão democrática moderna, só que através de outros canais. Bakunin disse: “os homens são escravos de Deus, portanto só podem ser escravos da igreja, e como a igreja santifica o Estado, eles também devem ser escravos do Estado”. É por isso que um ponto nodal da doutrina anarquista era, e com grande coerência, não apenas ser ateu, mas ser antiteísta, porque Deus deve ser nomeado para mostrar como ele prostra o homem. Daí Bakunin ter dito: “Se Deus existe, ele é necessariamente o eterno e supremo, o senhor absoluto, e se esse senhor existe, o homem é um escravo: agora, se ele é um escravo, não há justiça, nem igualdade, nem fraternidade, nem prosperidade possível […] sua existência implica necessariamente a escravidão de tudo o que está abaixo dele. …] Enquanto tivermos um mestre no céu, temos um mestre na terra”. A solução: abolir ou destruir o Estado. Se o Estado nada mais é do que um instrumento de uma classe dominante, na qual um certo anarquismo convergiu com a análise marxista, e se a lei estatal “apenas consolida a despossessão do povo trabalhador”, como argumentou Bakunin, não há outra escolha senão destruí-lo. Em geral, era uma questão de não reproduzir as instituições da democracia burguesa com seu classismo e a submissão que ele implica. Por exemplo, o sufrágio nada mais é do que a renúncia de tomar as coisas nas próprias mãos e deixar a responsabilidade para os outros; também não se deve participar de eleições parlamentares, pois estas nada mais são do que a prostituição da chamada soberania popular; nem exercer o voto, nem manter instituições políticas burguesas modernas, pois estas apenas perpetuam a realidade tal como ela é, já que as instituições são reproduzidas não apenas pela força, mas também pelo hábito e pelos costumes, como pensava Abad de Santillán. Basta lembrar aqui o famoso slogan anarquista: “se as eleições pudessem mudar alguma coisa, elas teriam sido abolidas”.
Alguns desses princípios colocaram o anarquismo contra o marxismo. Por exemplo, embora ambos os movimentos estivessem comprometidos com uma sociedade sem Estado e auto-organizada, é claro que os métodos para alcançar isso eram diferentes. O marxismo propôs usar o Estado durante a ditadura do proletariado para fazer uma transição para uma sociedade não-estatal, ou seja, usar o Estado e virá-lo contra si mesmo até que se dissolva, porque como diz Badiou: “o comunismo é na essência uma organização não-estatal da sociedade”. Mas para os anarquistas, o apelo ao Estado e ao partido foi um erro porque encorajou a verticalidade e o autoritarismo sobre a sociedade. Aqui é necessário lembrar a famosa carta de Kropotkin enviada a Lenin em 4 de março de 1920, onde se mostra, no final, que os anarquistas tinham razão nesta crítica, pois a Revolução Russa havia se tornado autoritária e o centralismo do partido acabou substituindo os sovietes e limitando sua participação, enquanto que encorajava a submissão das classes populares ao partido e ao burocratismo. É por isso que ele recomendou: “A Rússia deve retomar todo o gênio criativo das forças locais de cada comunidade, o que, a meu ver, pode ser um fator na construção da nova vida”.
Mas nesta disputa, ou melhor, nesta “questão de método”, há também a mancha do anarquismo, pois em seu desejo de destruir o Estado e as instituições, alguns destes movimentos, especialmente no final do século XIX, derivaram para o terrorismo: destruição dos símbolos de ordem, assassinatos cruéis, morte de inocentes e, como consequência política, uma forte deslegitimação do movimento, embora sua aventura estivesse – e talvez ainda esteja – longe de ter terminado.
Algumas das apostas anarquistas parecem muito interessantes para hoje. Se aceitarmos hoje que o Estado e a lei são funcionais à manutenção dos privilégios e que reproduzem o imobilismo social, e se aceitarmos que o próprio Estado é um escravo do capital e que é tomado por corporações e grupos econômicos, então devemos aceitar que o próprio Estado é um escravo do capital e que é tomado por corporações e grupos econômicos; se concordarmos que os partidos políticos atuais estão mais interessados em sua disputa pelo poder e em suas guerras interligadas do que em representar e administrar os interesses da sociedade; se percebermos que a política e suas eleições, em sua maioria, são uma pantomima, um circo demagógico e um espetáculo que se reproduz a cada quatro anos e que procura apenas mudar de amos, etc., etc., etc., algumas das apostas anarquistas têm um grande potencial emancipatório. Vamos ver.
Uma sociedade sem Estado e sem lei exige um alto nível de desenvolvimento ético. Não é sem razão que o anarquismo tem sido ligado à filosofia kantiana onde a responsabilidade é o correlato da liberdade. Somente uma liberdade responsável, um exercício da autonomia do indivíduo, um alto senso de convivência e responsabilidade social, tornam supérfluo o direito e o normativismo corporificado nas instituições de controle social – em bom grau. Quanto mais ética for uma sociedade, menos lei ela requer; e, por outro lado, quanto mais forte for a lei penal, menor será a auto-responsabilidade. Somente um fortalecimento da ética, liberdade, responsabilidade, tornam possível o sonhado autogoverno e a autogestão da sociedade anarquista.
É por isso que, para favorecer a autogestão da sociedade, seu autogoverno, o anarquismo se voltou ao federalismo em oposição ao centralismo burocrático; em oposição às estruturas verticais, promoveu as relações horizontais: daí a necessidade de tomar decisões de forma conjunta, de apostar na autogestão, na produção coletiva, na solidariedade e na ajuda mútua, como pensou Kropotkin e como ilustrou em seu clássico livro Apoio Mútuo de 1902. Naquele livro, o naturalista russo mostrou que a ajuda mútua e a cooperação foram fundamentais para a evolução e reprodução da existência humana. De tal forma que não foi apenas a seleção de espécies e a competição que determinaram o sucesso das espécies e dos seres humanos na história, como o darwinismo social havia proclamado aos quatro ventos, e hoje seu neuro liberalismo e a psico política que o endossam e o elogiam. Desta forma, era possível apostar em uma sociedade onde as pessoas trabalhariam três ou quatro horas por semana, onde a produção prejudicial seria eliminada e onde o homem teria suas roupas, sua moradia e seu pão de cada dia, e onde poderia multiplicar suas necessidades artísticas e de prazer, aquelas mesmas necessidades cuja satisfação hoje “só são reservadas para um número menor”. Nessas instituições, as federações e assembleias, assim como nos princípios enumerados, reside em parte o apelo do anarquismo, pois o que ele exige é uma grande capacidade de criar formas alternativas de vida além daquelas que conhecemos ou experimentamos na sociedade capitalista de hoje.
Sem dúvida, o excesso de população mundial, a preponderância atual da sociedade urbana, o produtivismo moderno com seu correspondente consumismo exacerbado, etc., apresentam grandes desafios ao anarquismo, mas também é verdade que o anarquismo, no século 20, evoluiu e permaneceu uma opção válida para o futuro. Basta olhar para as propostas de Carlos Taibo em seu livro Repensar a Anarquia para observar a confluência de sua proposta com outras como as de Bem Viver/Viver Bem, apostas de raiz, os movimentos autonomistas e a implementação de práticas e modos alternativos de política e economia. A estas se somam outras propostas mais complexas, tais como a necessidade de decrescimento, a desurbanização da vida e das relações sociais, a re-ruralização, a recomunização, a necessidade de despatriarcalizar as relações sociais e até mesmo o chamado à destecnologia. Para Taibo, tudo isso é necessário se quisermos evitar o “colapso” ou o que outros chamaram de crise civilizatória em andamento.
Deve-se dizer, finalmente, que o anarquismo não é caos e desordem, é que ele aposta na construção de outra ordem; não é que ele dispensa o governo, é que ele aposta no autogoverno; não é que o anarquismo rejeita as instituições, é que ele se propõe a criar outras novas; não é que ele rejeita toda democracia, é que ele opta pela democracia direta e pelo verdadeiro exercício da soberania popular. Quanto ao resto, deve-se dizer que se o discurso cria subjetividades e estas criam identidades ou identificações que se refletem nas formas de vida, diante do panorama atual não é supérfluo chicotear a imaginação política para vislumbrar outros modos de existência. Isto é totalmente possível, porque enquanto houver homens, há história, e a história é o reino das possibilidades no reino da necessidade… A história está sempre aberta à criação. Parte das ideias do anarquismo pode ser incorporada em uma utopia, uma comunidade imaginada, sempre levando em conta a realidade concreta e a evolução da estrutura aberta e dinâmica da realidade, afinal, como disse Wallerstein: “As imagens do futuro influenciam a forma como os seres humanos agem no presente”. E aí reside a chave para a mudança.
Fonte: https://alponiente.com/y-si-el-anarquismo-tenia-razon/
Tradução > Liberto
agência de notícias anarquistas-ana
Ah, o orvalho da manhã –
Completamente invisível
Sobre as flores brancas.
Kakei
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!