Mais de uma semana de conflitos na Colômbia, se expõem as condições de miséria e de opressão vividas lá. A resposta das pessoas não poderia ser outra que tomar as ruas e mostrar seu descontentamento, provando uma vez mais que a linguagem da confrontação, o conflito e a violência são os únicos que o poder entende. As mobilizações fizeram com que Iván Duque retirasse o projeto de reforma tributária que motivou a indignação geral em primeiro lugar, mas esta história não acaba aí.
Opus
Ato 1: Crise
A pandemia global se desenhou como a desculpa perfeita para se fazer a um lado do investimento social e se esquecer dos setores da população historicamente excluídos, as negritudes, as comunidades originárias, as dissidências sexo-genéricas, as mulheres, as meninas e os meninos.
O aumento da violência intrafamiliar, os feminicídios, as agressões sexuais e o terrorismo de estado, encabeçado pelo assassinato de centenas de lideranças sociais, entre as quais se encontravam autoridades afro, indígenas e camponesas, delimitava o panorama cotidiano da época em curso.
Além disso, os índices da pobreza, fome, precariedade trabalhista e desemprego crescem. O sistema de saúde se privatiza, aumentam o preço dos aluguéis, dos alimentos, do combustível; por sua vez, aumenta o gasto militar, e como se ainda fosse pouco, sendo este o contexto, se pretende impulsionar uma reforma tributária, com o pretexto de diminuir os efeitos da pandemia na economia, para que a crise, que não é outra que o próprio sistema, paguem as pessoas pobres e mais desfavorecidas.
Cali, conhecida como a cidade dos descolocados, tem vivido de forma desproporcional estes aumentos e privações. Porém, não tem sido uma exceção dentro do estado, e zonas históricas de pobreza extrema como o porto de Buenaventura e cidades próximas a Cali, como Buga, também passam por difíceis e desafiantes condições de vida, que se replicam ao redor do país.
Ato 2: O ódio
São uns assassinos. Usam armas de fogo, assim, qualquer uma. Nós só temos pedras. “La Haine”, filme de 1995.
A reforma tributária foi a gota que transbordou o copo. Se antes a única solução era apertar o cinto, hoje a resposta foi virar a rua de cabeça para baixo e exigir ao governo assassino a retirada de tão infame projeto, conseguindo a princípio, pouco mais que teimosas declarações do mandatário e sua panelinha, mas obtendo com os dias a retirada da reforma proposta e a renúncia do ministro da fazenda.
Dezenas de vidas têm sido ceifadas para conseguir esta meta, também são dezenas os estupros, agressões sexuais cometidas e os desaparecimentos forçados, que com sérias dificuldades e diante um enorme sub-registro foram possíveis registrar. Em suma, tanto as mesmas condições de miséria seguem vigentes, a raiva das pessoas foi crescendo, ao ponto de dirigir legítimos ataques contra postos de polícia e agências bancárias, mobilizar populações afro e indígenas a partir de seus territórios à cidades capitais como Popayán e Cali, e protagonizar bloqueios não apenas em cidades, mas em importantes vias arteriais do sul do país, gerando assim desabastecimento em diferentes regiões colombianas, em uma acidental sincronia a nível nacional, que dizem muitxs, não se via desde a paralisação civil de 1977.
O grupo Anonymous também atacou por meios virtuais, se atribuindo os ataques às páginas do senado, da presidência, a direção de aduanas e do exército, publicando os e-mails e as senhas de mais de 150 contas de membros das forças armadas; nomes, números de celular e documentos de identidade de integrantes da polícia, e as intervenções às comunicações de rádio do Esquadrão Móvel Antidistúrbios (ESMAD), nas que se fala de operações urbanas, se solicita apoio, munições e se menciona a atividade de frota aérea.
Intermezzo
Ato 3: Estado Assassino
Vão voltar, as balas que disparou vão voltar.
O sangue que derramou, irá pagar.
As pessoas que assassinou, não morrerão. Não morrerão!
(Canção tradicional de protestos na Colômbia¹).
Iván Duque, como menino caprichoso, pegou seus brinquedos novos. Helicópteros Black Hawk, os últimos modelos dos lança-cartuchos Venom, que contém fumaça e químicos, entre outras características tecnológicas “não letais” para os corpos antidistúrbios, que com propriedade sem par passeiam junto ao exército pelas ruas das cidades, convertidas em autênticos campos de batalha; onde o eco das botas militares de antes executavam operações de contrainsurgência no monte, hoje rebate sobre o asfalto.
Em um aspecto mais técnico, desde a organização NetBlocks², encarregada de reportar anomalias no acesso à internet a nível global, também se denunciam interrupções do serviço de internet, particularmente em Cali, epicentro dos conflitos, e em momentos em que se vivia uma repressão intensa. Adicionalmente, se reporta “suspeitosa” a desaparição de conteúdos em famosas plataformas virtuais privativas.
Somada à militarização, os tuítes do ex-presidente Álvaro Uribe Véjez, fundador do partido que levou à presidência da Colômbia a Iván Duque, só aumentam a sede de sangue de militares e policiais, a quem felicitava, respaldava em seu acionar e no uso das armas, a ponto que a própria plataforma Twitter teve que censurá-lo.
Contudo, não foi esse seu último trinado, e esta vez, fazendo referência à teoria da revolução molecular dissipada do renomado fascista chileno Alexis López (conceito difundido por ele mesmo na Universidade Militar Nueva Granada em Bogotá em datas recentes), Uribe seguia fazendo apologia à violência estatal, assinalando como terroristas e vândalos a todas as pessoas participantes dos protestos, por quem, ainda, o governo colombiano oferece recompensas de 10 milhões de pesos colombianos (aproximadamente 2.700 mil dólares).
Enquanto isso, as redes sociais se inundam de vídeos aterrorizadores, onde mães descobrem os cadáveres de seus filhos esticados no chão, o pânico toma conta de bairros de Buga, superpovoados por helicópteros Black Hawk, em que se aprecia de forma inequívoca os chocalhos dos metralhamentos e disparos indiscriminados, e outros, onde se denuncia que no pátio de um colégio de um bairro no sul de Bogotá, aterrissou um helicóptero utilizado em operações aéreas na cidade.
Cabe ressaltar que em momentos de tensões tais que abundam as notícias falsas e o oportunismo desenfreado, que busca fazer ver como mentiras os abusos cometidos pelo estado, o exército e a polícia. Porém, os sucessos do que fazemos referência, tem sido comprovados por diferentes agências independentes de notícias que se encontram fazendo coberturas desde diferentes pontos, no lugar dos fatos.
Ato 4: Acordando a revolta
Enquanto a revolução comporta uma estratégia a longo prazo e se encontra imersa no curso da história, a revolta não é só um repentino surto insurrecional, mas uma verdadeira “suspensão” do tempo histórico. E é na suspensão onde se liberta a verdadeira experiência coletiva: “O instante da revolta determina a fulminante autorrealização e objetificação de si como parte de uma comunidade. A batalha entre o bem e o mal, entre sobrevivência e morte, entre sucesso e fracasso, em que cada um está diariamente comprometido, se identifica com a batalha de toda a comunidade: todos têm as mesmas armas, todos enfrentam os mesmos obstáculos e ao mesmo inimigo. Todos experimentam a epifania dos mesmos símbolos”. (Furio Jesi)
Apesar da tentativa de rasgar o tecido comunitário, oferecendo recompensas, denunciando as pessoas presentes nos protestos ou impondo toque de recolher; apesar de não ser uma constante em todo o país, nas trincheiras se viu uma coordenação de bairro e comunitária impressionante para atender às pessoas feridas, informar sobre as incursões policiais e militares nas regiões, e manter por turnos a vigilância comunitária permanente, tudo isso financiado por cotas estabelecidas dentro das mesmas comunidades, cuidando da vida, o contrário do que informam fontes estatais.
No contexto da pandemia, o local tomou mais relevância que a afinidade, pois as distâncias, magnificadas pelas restrições na mobilidade fazem mais complicado o apoio a distância, a solidariedade/sororidade que não se efetua desde o mesmo ponto onde ocorrem as coisas. De maneira que, vizinhxs que provavelmente não tinham contato ou se conheciam, hoje trabalham mão a mão em benefício de sua comunidade, nessa conjuntura repressiva.
Ato 5: O fim das ideologias
Antes, xs vizinhxs religiosxs tomavam distância daquelxs que pareciam ter mais afinidade com as esquerdas, xs pessoas afins das esquerdas, por sua vez se afastavam de quem estava mais em sintonia com ideias de centro ou de direita, e assim, por não falar de pessoas que não parte de nenhuma estrutura partidária ou plataforma política. Estas distâncias eram mais evidentes em tempos de eleições, onde cada grupo em uma casa promovendo uma campanha ou outra, era como uma sutil provocação.
Contudo, hoje sem cores políticas, sem importar essas marcadas diferenças, as pessoas se reúnem nas ruas ao calor das fogueiras que junto à lua, iluminam as barricadas e as organizações de bairros que indômitas se sobrepõem à normalidade que pretende impor a paz social a sangue e fogo.
Conclusão:
A expansão da conflitividade social tornou a guerra mais evidente, que com eufemismos o poder busca ocultar, guerra que amplificada pelo conflito armado interno vivido por décadas, tem sido a constante do país; o que faz que situações deste tipo não se leiam como excepcionais, com a diferença que hoje a guerra de ontem se transfere às metrópoles.
Estes fatos também revelam a vigência dos antagonismos de sempre (civis e atores armados, poderosxs e despossuídxs, etc.). Assim mesmo, apesar de ser em princípio o assunto de classes médias, o acompanhamento de distintos setores (campesinato, negritudes, comunidades indígenas, mulheres, dissidências sexo-genéricas, grêmios como os de transportes, entre outros), tem sido chave para a continuidade da revolta, que com valentia e diante de uma força repressiva dotada de armamento sofisticado e tecnologia para matar, insiste em suas exigências, pela memória dxs mortxs e a dignidade do povo.
No âmbito internacional, houve concentrações solidárias na Europa, Oceania, e América, particularmente América Latina, onde consulados, embaixadas, praças e outros pontos de reunião, se denunciava o massacre cometido pelo estado colombiano.
Hoje, se está à espera de um diálogo entre o governo, pessoas e setores que convocaram as mobilizações. Só o tempo dirá se com esta luta o povo consegue impor suas demandas ao despotismo estatal. Por agora, esta alternativa se coloca como a única saída negociada para o cessar dos conflitos, de maneira que outro ato está por se escrever.
Desmonte do ESMAD agora!
Fim imediato da militarização e da repressão!
Notas da tradutora:
[1] Original em espanhol: Van a volver, las balas que disparaste van a volver. La sangre que derramaste, la pagarás. La gente que asesinaste, no morirá. ¡No morirá!)
[2] NetBlocks é uma plataforma global que monitora a liberdade na internet com a intersecção entre direitos digitais e cibersegurança. Em 5 de maio, a plataforma publicou dados sobre a interrupção da internet na cidade de Cali, e pode ser acessado aqui: https://netblocks.org/reports/internet-disrupted-in-colombia-amid-anti-government-protests-YAEvMvB3.
Tradução > Caninana
agência de notícias anarquistas-ana
Hora do almoço.
Pela porta, com os raios de sol,
As sombras do outono.
Chora
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!