O professor e ativista publica ‘Decrecimiento’, um livro no qual resume sua “proposta fundamentada” para evitar o colapso ecológico e reverter os estragos do capitalismo.
Por Manuel Ligero | 04/05/2021
Sempre houve pessoas na história que foram rechaçadas, vilipendiadas e inclusive executadas por revelar a verdade. O assunto é tanto mais desagradável quando chocam religião e ciência. Giordano Bruno, Miguel Servet ou Galileo Galilei são exemplos bem conhecidos.
No Ocidente, no século XXI, há uma nova religião que, sem fogueiras, está tão pouco disposta a que se questionem seus dogmas como as antigas igrejas cristãs. Trata-se da religião imposta pela economia capitalista e os mercados. Milhões de vidas humanas são sacrificadas a cada ano no altar dos mercados. O objetivo, sempre, é crescer. E não crescer, ou não crescer o suficiente, provoca um rastro de vítimas em todas as espécies do planeta. Antes de deixar de crescer, o capitalismo parece disposto a extinguir a vida na Terra. O deus que se esconde detrás desta loucura, tão sádico e implacável como o do Antigo Testamento, tem um nome: Produto Interno Bruto (PIB).
Carlos Taibo (Madrid, 1956), conforme o descrito anteriormente é um herege. Como ativista e como professor de Ciência Política na Universidade Autônoma de Madrid denunciou os excessos do sistema assinalando o que deveria ser óbvio para qualquer economista: onde não há não se pode tirar. “Se vivemos em um planeta com recursos limitados não parece que tenha muito sentido que aspiremos a seguir crescendo ilimitadamente”, afirma no início de seu livro “Decrecimiento” (Alianza Editorial, 2021). Sua “proposta fundamentada” para fazer frente à emergência climática é uma mudança radical de paradigma: há que decrescer.
Para entender a perversão que se esconde atrás deste sistema econômico é adequado ter em conta que o PIB é “um índice que considera a contaminação como riqueza”. Queimar combustíveis fósseis incrementa o PIB. Cortar uma árvore incrementa o PIB. A obsolescência programada que exige a exploração de mais e mais recursos naturais incrementa o PIB. Há que parar esta roda infernal e há que fazê-lo já.
Para explicar esta pressa, Taibo, que em livros e conferências gosta de citar seus mestres e colegas dentro do movimento decrescentista (Serge Latouche, Nicholas Georgescu-Roegen, Ivan Illich, André Gorz…), costuma recorrer a uma lição de Cornelius Castoriadis que poderíamos chamar “a parábola do filho enfermo”. Diz assim: “Se a um pai comunicam que é muito possível que seu filho tenha uma gravíssima enfermidade, a única reação plausível do progenitor consistirá em colocar seu descendente nas mãos dos melhores médicos, para que determinem se o diagnóstico é correto ou não. O que esse pai, ou essa mãe, ao contrário, não poderá fazer será argumentar dizendo: ‘Bem, se é possível que meu filho tenha uma gravíssima enfermidade, também é possível que não a tenha, com o que parece justificado que eu fique de braços cruzados’. Esta é, no entanto, a atitude que a espécie humana parece ter assumido com relação à crise ecológica”.
Não crê que o problema é precisamente esse, que não vemos o planeta como um filho ou alguém amado, como se estivéssemos por cima dele ou fora dele? Ainda a risco de simplificar em excesso, não é o “marco cultural” imposto pelo capitalismo o pior inimigo nesta crise climática?
Assim é. Ou, para dizê-lo de outra maneira, o capitalismo conseguiu colocar dentro de nossa cabeça um punhado de ideias das quais é difícil, muito difícil, livrar-se. Ideias que, claro, geram as condutas correspondentes em terrenos como os da competitividade, da produtividade, do consumo e do crescimento econômico. Nós habitantes do Norte rico topamos com enormes problemas para sair desse mundo. As circunstâncias são diferentes em muitas áreas dos países do Sul nas quais subsistem com força culturas pré-capitalistas muito mais marcadas pela lógica do apoio mútuo e muito menos fetichizadas pela identificação entre consumo e bem estar. Uma identificação simplista onde existam.
Nossa relação com o planeta não se caracteriza precisamente pelo amor e os cuidados. O demonstra a crise climática e o esgotamento das matérias primas energéticas. Mas é que esse marco cultural nos dificulta também entender o que significa a exploração cotidiana de milhares de milhões de seres humanos em um cenário lastrado pelo trabalho assalariado, pela mercadoria e, naturalmente, pela mais valia.
Por que o decrescimento é a solução mais lógica?
Prefiro apegar-me à ideia de que o decrescimento, que é uma proposta de alcance limitado, constitui um agregado, um complemento. Mas este complemento é imprescindível para qualquer projeto sério de contestação do capitalismo no século XXI. Disse muitas vezes que esse projeto tem que ser por definição decrescentista, autogestionário, antipatriarcal e internacionalista. Eu não sou um decrescentista libertário. Sou um libertário decrescentista: o cerne de minhas percepções é proporcionado pela aposta na autogestão, pela democracia direta e pelo apoio mútuo. Esse é um bom modelo, sobretudo agora. Em um planeta que visivelmente nos deixa, é necessário pôr freio de imediato à locomotiva do crescimento.
E como se decresce?
No Norte opulento temos que reduzir os níveis de produção e de consumo, mas temos que assumir outras muitas iniciativas: recuperar a vida social que dilapidamos, apostar por formas de ócio criativo, distribuir o trabalho, reduzir as dimensões de muitas das infraestruturas que empregamos, estimular a vida local frente à lógica desenfreada da globalização. Definitivamente, apostar pela sobriedade e a simplicidade voluntária.
Em seu livro você põe muita ênfase nesse aspecto: tomar o caminho do decrescimento deve ser uma decisão “coletiva e voluntária”. Mas para isso necessitamos décadas, gerações de pedagogia. Temos tempo para isso?
Tal e como estão as coisas, entendo que a pergunta é legítima. Não há mais que dar uma olhada nos programas, produtivistas e desenvolvimentistas, da esmagadora maioria dos partidos. Ou ao que defende o grosso dos meios de comunicação. Mas creio que há duas dimensões que não devem nos escapar. A primeira já assinalei: a possibilidade de que muitas das respostas que aqui, no Norte rico nos faltam, cheguem de habitantes de países do Sul com populações muito menos corroídas pela lógica mercantil do capitalismo. A segunda sugere que a consciência da proximidade de um colapso geral poderia provocar, também no Norte, mudanças importantes e rápidas na conduta de grandes grupos de população. E já vimos sinais disto. Creio que esses grupos de apoio mútuo que proliferaram no início dos confinamentos, faz um ano, significam que uma parte das pessoas comuns começa a fazer-se as perguntas pertinentes. E friso o de “pessoas comuns”. Não falo de ativistas hiperconscientes de movimentos sociais críticos.
Seu discurso costuma incomodar a esquerda e a direita. Que incomode a direita é lógico, mas como quer convencer a esquerda de que abandone seus velhos postulados? Você critica os nostálgicos da velha normalidade, os saudosos da socialdemocracia do pós-guerra, a industrialização, os sindicatos, o Estado do Bem estar… Muitos desses direitos foram perdidos. Não vale a pena lutar para recuperá-los?
Essa é uma luta muito respeitável, claro que sim, mas no melhor dos casos, é pão para hoje e fome para amanhã. Creio que a figura do Estado do Bem Estar deve vincular-se, e estreitamente, com um momento histórico que ficou para trás: a chamada era do petróleo barato.
Há que renunciar ao passado então.
É que não creio em nenhum projeto que não proponha, com clareza, a vontade de deixar para trás o universo do capitalismo. E isso me obriga a ser profundamente cético. E há razões históricas para sê-lo. Isso que chamamos Estado do Bem Estar obedece a umas fórmulas de organização econômica e social próprias e exclusivas do capitalismo, o que dificulta até extremos inimagináveis a prática da autogestão desde baixo. Não questionam a ordem da propriedade imperante. Bebem de uma filosofia sem vigor, a socialdemocracia, e de um burocratizado sindicalismo de pacto. Já vimos como esta socialdemocracia e este sindicalismo não vieram liberar, como anunciavam, a tantas mulheres que são hoje vítimas de uma dupla ou de uma tripla exploração. E, ademais, não respondem a nenhum projeto de solidariedade com os habitantes dos países do Sul e não exibem nenhuma solução da questão ecológica.
Globalização absurda
Quando Taibo subtitula seu livro com a frase “una propuesta razonada” não o faz vagamente.”En Decrecimiento” há até 26 páginas de citações e bibliografia. O desenvolvimento de exemplos, dados e fontes é enorme. Citemos só alguns.
Os detratores do decrescimento pensam que este nos levará de volta à pré-história. É calculado e, claro, não é verdade. Para salvar o planeta devemos reduzir nossa pegada ecológica e situá-la em níveis não tão longínquos: “A década de 1980 não é a Idade da Pedra”.
Falemos de turismo: “O número de turistas que saem de seu país passou de 25 milhões em 1950 a 1.500 milhões em 2019, com efeitos desoladores. (…) Em Goa, na Índia, um hotel de cinco estrelas consume a água equivalente ao abastecimento de cinco povoados, enquanto o encanamento que a serve cruza numerosas localidades que carecem de água corrente”.
E que dizer da indústria da alimentação? “A alface que procede do vale de Salinas, na Califórnia, se desloca por estrada 5.000 quilômetros para chegar a Washington, com isso consume 36 vezes mais energia – em forma de petróleo – que o que contêm em calorias.Quando a alface chega, enfim, a Londres, consumiu 127 vezes mais energia que a que corresponde às calorias que incorpora”. E ainda nem falamos do uso de fertilizantes tóxicos que se usam em sua produção. A aposta pelos produtos locais e de proximidade, portanto, não é uma extravagância hippie. É uma necessidade e também não supõe um sofrimento insuportável.
Bom, pensemos que deixamos atrás o capitalismo. O quê ocorre com o ócio? Usando um velho dito das lutas obreiras, necessitamos “o pão e as rosas”. Você assinala que “o pão”, graças a formas de produção mais focadas na economia local e das proximidades, não é um problema. Mas o quê ocorre com “as rosas”?
A perspectiva do decrescimento defende o que se costuma chamar “ócio criativo”. Quer dizer, um ócio desmercantilizado que escapa à criação artificial de necessidades. E com isto se consegue outra coisa: evitar a uniformização, que é um processo habitual no mundo do ócio. E mais além dele, também no da cultura.
Então, em um futuro decrescentista não haveria espaço para Netflix, para o futebol, para os grandes concertos?
Parece inevitável que percam peso, claro. A descentralização dos processos de criação deve permitir o ressurgimento das culturas autóctones e os meios de comunicação alternativos frente ao poder exercido pelos conglomerados transnacionais. Nesse contexto, perdem importância as grandes plataformas midiáticas e essas parafernálias que estão tão obscenamente vinculadas com os interesses das elites dirigentes e que, no fim das contas, reproduzem a miséria dominante.
Você usa em diferentes passagens de seu livro um término cunhado recentemente: “convivencialidade”. Creio que é um termo que está começando a ganhar adeptos na França. É uma manobra léxica para deixar para trás o termo “comunismo”, ou inclusive “comunismo libertário”, que é maldito em nosso marco cultural, que parece historicamente tóxico?
O termo convivencialidade foi difundido, faz tempo já, por Ivan Illich. Em minha percepção convêm opô-lo à mercantilização que marca o grosso das regras que nos impõem. E convêm vinculá-lo também com a lógica do apoio mútuo e com a defesa dos bens relacionais frente aos bens materiais. Não tenho nada contra o comunismo, apesar da enorme perversão que marcou seu sistema de “capitalismo burocrático de Estado”. E tampouco tenho nada contra o conceito de comunismo libertário, ou contra o anarcocomunismo. Incomodam-me, isso sim, e muito, as pessoas que no mundo anarquista pensam que o comunismo é, por definição, um projeto intrinsecamente perverso. Em qualquer caso, creio que é mais importante o que colocamos por trás destes conceitos do que sua formulação verbal.
Falemos das mulheres e de sua importância no decrescimento. Falou-se do antropoceno. Logo, para delimitar mais o conceito, se falou de capitaloceno. E você refina ainda mais e fala de androceno. Por quê?
Não o faço só eu. O faz cada vez mais pessoas. Parece evidente que muitas das lógicas que vinculamos com os desastres produzidos durante isso que se chama antropoceno ou capitaloceno têm uma dimensão masculina e se vinculam estreitamente com a sociedade patriarcal e suas regras. Estes conceitos, antropoceno e capitaloceno, arrastam certa dimensão simplificadora, isso é óbvio. Mas creio que, ao mesmo tempo sublinham de maneira mais fina onde temos que buscar responsabilidades. Salta à vista que nem todos os integrantes da espécie humana são responsáveis da mesma forma pelo colapso que se avizinha. A responsabilidade de homens e mulheres não é a mesma.
Você crê, como Pablo Servigne, que o colapso é inevitável e que devemos nos centrar em como será a sociedade depois da catástrofe ou crê que ainda se pode parar o golpe?
Bom, antes de responder a isso teria que perguntar o quê entendemos por colapso e que diferenças terá geograficamente. Mas deixando estes matizes à margem, creio que a postura de Servigne é defensável. O que costumo assinalar é que, conforme a minha intuição, o colapso é inevitável. Assim que o único que podemos fazer a respeito é mitigar algumas de suas consequências mais negativas e postergar um pouco no tempo sua manifestação. E se, creio que agora uma das tarefas mais honrosas é antecipar os aspectos da sociedade pós-colapso desde o horizonte do decrescimento, a desurbanização, a destecnologização, a despatriarcalização, a descolonização e a simplificação de nossas mentes e de nossas sociedades.
Como você enfrenta as críticas de quem tenta menosprezar sua proposta taxando-a de primitivista, ludista e pouco realista?
Prefiro que me atribuam esses adjetivos a passar por frívolo. A frivolidade é uma condição que costuma acompanhar essas críticas. Ademais, essas críticas, o que fazem no fundo é defender a miséria existente. Em qualquer caso, haveria que escavar no sentido preciso desses adjetivos que você invoca. Suspeito que ficaria com muitos dos elementos do que se costuma entender por primitivismo ou por ludismo, que são, no mínimo, duas propostas que merecem atenção.
E com o de “pouco realista”?
Com isso também fico. Sou orgulhosamente não realista na medida em que faço minha a afirmação de Bernanos: “O realismo é a boa consciência dos filhos da puta”. Estes invocam a realidade como se fosse dada pela natureza e fosse, portanto, imutável, quando com toda evidência essa realidade que invocam é o produto da defesa obscena dos piores e mesquinhos interesses.
Para terminar, nos dê alguma receita, alguma chave contra o ecofascismo. Diga-nos por que é imoral enfrentar o desafio climático como um problema demográfico.
Isso é fácil. Já sabemos que o ecofascismo não é um projeto negacionista nem da mudança climática nem do esgotamento das matérias primas energéticas. O ecofascismo parte da certeza de que no planeta sobra gente, de tal forma que, na versão mais suave, se trataria de marginalizar aos que sobram. E na mais dura postularia, literalmente, o extermínio. A música recorda poderosamente a que tocaram os hierarcas nazis. Outra coisa distinta é, claro, que, tendo em conta os limites meio ambientais e de recursos do planeta, assumamos um exercício voluntário de autocontenção como o que postulam no terreno demográfico a maioria das escolas decrescentistas. Como antídotos contra o ecofascismo me remeto ao que já disse antes: decrescimento, desurbanização, despatriarcalização… Tudo isso combinado com a defesa de sociedades assentadas na autogestão, na democracia direta e no apoio mútuo. Cem anos depois da morte de Kropotkin, a leitura de seu livro me parece, por certo, uma recomendação muito sensata.
Tradução > Sol de Abril
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