[Mianmar] Das barricadas à guerrilha urbana: a resistência armada à Junta Militar birmana

Por Àngel Marrades | 07/06/2021

Durante três meses, desde fevereiro até abril, as principais cidades de Mianmar estiveram envoltas nas mobilizações massivas como forma de rechaço ao Golpe de Estado militar. À medida que a repressão foi aumentando para pôr ordem à vida econômica anterior ao golpe, e completar assim seu propósito, os manifestantes improvisaram armamentos, como rifles, estilingues, catapultas, escudos ou molotovs, e barricadas para se defender dos assaltos militares. Nas regiões industriais e bairros marginais da periferia foram onde a resistência foi mais dura, e onde o Tatmadaw (Forças Armadas de Mianmar) desatou vários massacres impondo pena de morte. No total, ao menos 800 manifestantes foram assassinados. Esta dura repressão infringiu um duro golpe à resistência, fazendo-a retroceder do espaço público, mas também a fez adaptar e avançar.

Durante o mês de maio, a estratégia da resistência mudou enormemente: quem ainda protesta o faz agora com protestos rápidos ou flash que buscam demonstrar que a oposição ao golpe ainda está presente. Porém, já não interrompem a via pública nem pressupõem uma ameaça às artérias econômicas do Estado. Apesar de que os militares conseguiram impor, mediante o terror, certa “volta à normalidade” e reclamar o espaço público, em seu lugar uma rede clandestina de células começou uma guerrilha urbana no centro do país. Isto pressupôs, também, uma mudança no comportamento e das mensagens de resistência, que agora não apela à organismos internacionais, à comunidade internacional ou à ASEAN (Associação das Nações do Sudeste Asiático), cujas bandeiras queimam, mas que reivindicam à luta armada das Organizações Armadas Étnicas e do Governo da Unidade Nacional.

Desta maneira, a bacia de Irrawaddy, que constitui o coração geopolítico da construção nacional birmana ao redor da etnia majoritária Bamar, está seriamente ameaçada pela primeira vez nos 70 anos do conflito civil interno. Com a guerrilha urbana principalmente em Rangún, capital econômica do país, mas também cidades como Mandalay, Bago, Naypytaw ou Magway, a junta Militar viu seriamente contestados seu controle do território e sua capacidade de proporcionar uma segurança interna que permita reativar a economia do país. Dois são os planos dos militares neste sentido em junho: o início do ano escolar e a reabertura do setor industrial, especialmente o têxtil.

Sobre a abertura das escolas, o Movimento de Desobediência Civil conseguiu organizar um extenso boicote, no qual se calculou que 90% dos estudantes participaram, segundo cifras da federação de professores. O Tatmadaw só deu cifras de Rangún, nas quais assegurou que 40% dos estudantes foram às aulas. O único lugar onde realmente pode se dizer que o boicote “fracassou” foi no Estado de Rakhine, onde não houve boicote. Isto se deve não à capacidade da própria Junta, mas ao projeto nacional arakanês que se negou a apoiar desde um início ao Movimento de Desobediência Civil, e onde não houve nenhuma manifestação contra o golpe. Em Rakhine, pelo contrário, está se construindo um movimento nacional próprio que, ainda que não apoia o golpe busca tomar maior autonomia do projeto nacional birmano.

Junto ao boicote escolar, estas novas células que organizam uma guerrilha urbana estão tentando alterar e sabotar os planos de Tatmadaw. Durante o mês de maio, realizaram mais de 100 ataques documentados, desde bombas a assassinatos seletivos. Por outro lado, a Rádio Free Asia informou mais de 300 atentados com bombas contra escritórios governamentais, escolas, universidades ou postos de gasolina. A experiência de Ko Min Wai, um manifestante que se uniu a esta resistência clandestina e a quem Frontier Mianmar fez uma entrevista, nos serve de exemplo da evolução do apoio aos protestos pacíficos à revolução armada: “Não podemos protestar na rua porque o exército e as forças de segurança nos disparam com balas. Mas devemos nos rebelar contra a Junta, então escolhemos a revolução armada”. Min Wai, como muitos outros, abandonou a cidade para receber instrução militar da resistência longe das cidades, em acampamentos estabelecidos por desertores do exército, do Governo de Unidade Nacional (NUG), guerrilhas criadas na periferia ou as Organizações Armadas Étnicas (EAOs). Depois de ter um treinamento básico em manipulação de explosivos e outras táticas insurgentes, voltou a Rangún para formar parte desta guerrilha urbana.

Outro exemplo que nos serve é a entrevista à Thurain, um dos membros de um grupo de resistência clandestino, que descrevia sua rede como um grupo de 50 membros que colabora com outras oito células na área de Rangún. Esta estrutura tinha um propósito imediato e outro a longo prazo. O primeiro consistia em fortalecer a própria organização, para isso o primeiro e mais importante era garantir a segurança da própria resistência, sua clandestinidade. Este propósito tinha duas tarefas:

“Sua principal missão neste momento é evitar que os militares e a polícia tomem o controle dos escritórios de administração dos distritos, estes escritórios mantém listas ativas dos civis que vivem dentro de suas jurisdições, órgãos de governo locais que tem uma enorme influência nas vizinhanças que supervisionam. Segundo as leis birmanas, estes escritórios mantém listas ativas dos civis que vivem dentro de suas jurisdições, realizam um rastreio de suas residências e mantém uma ampla informação demográfica de cada pessoa e casa. Estas informações revelam quem vive e onde, digamos, um apartamento em particular é a casa de uma mãe, um pai e três filhos. A informação inclui as idades, a origem étnica e a religião de cada pessoa na casa. (…) se os militares e a polícia tem acesso a esta informação, podem rastrear e monitorar a população e frustrar e perseguir de maneira mais efetiva aos membros da oposição política e a resistência (…). Vários escritórios foram incendiados para evitar que tenham acesso aos registros”.

A tarefa seguinte como parte deste esforço foi de caçar os colaboracionistas. Acabar com os informantes do exército é essencial para assegurar a liberdade de movimento da guerrilha e sua capacidade para fazer outro tipo de ataques, como atentados à bomba contra postos da polícia, postos militares ou o assassinato de outras figuras relevantes. Mas estas tarefas ajudam também ao segundo objetivo a longo prazo das células, a preparação para um conflito armado aberto em que deverão instigar um levantamento civil contra a Junta Militar. Para este propósito, já começaram a armazenar armamento em lugares seguros das cidades mediante contrabando, com a ideia de que o Governo de Unidade Nacional consiga conformar um Exército Federal com a força para enfrentar o Tatmadaw nas ranhuras centrais e do delta de Irrawaddy. Mas para uma tarefa dessas dimensões a resistência necessita de armamento e veículos que permitam uma guerra de movimentos, e não de guerrilhas, ou conseguir abrir uma brecha o suficiente profunda dentro do próprio Tatmadaw.

O primeiro obstáculo hoje é que o Governo da Unidade Nacional (NUG) não tem sequer controle militar sobre suas próprias guerrilhas, as Forças de Defesa Popular (PDF), nem tampouco conseguiu criar uma coordenação política e militar robusta com as Organizações Armadas Étnicas (EAOs). Isto ilustra o The Frontier Mianmar, a quem o porta-voz da União Nacional Karen disse que havia advertido ao NUG que os grupos não afiliados podem se converter em uma responsabilidade: “Aceitamos que o povo tenha respondido com uma revolução armada para se opor à injustiça, e que tem direito à autodefesa. Mas muitos grupos que não estejam sob um mando unificado será um problema de longo prazo”. Este mesmo meio na entrevista da Min Wai informou sobre ao menos 10 grupos guerrilheiros urbanos operando nas principais cidades do país. E apesar de que muitas destas guerrilhas, tanto urbanas como da periferia (as PDF), se aderiram nominalmente ao mando político do NUG e aceitaram que seu código de conduta militar tem total independência para decidir, em último termo, tanto objetivos como táticas Min Wai dizia: “O exército estendeu forças nas escolas e universidades, e abriu fogo desde esses lugares”, e agregou que seu grupo estava seguindo as regras que aprendeu quando estava sendo treinado.

À espera de uma futura insurreição, as guerrilhas urbanas deverão navegar entre o Movimento de Desobediência Civil, a política sindical e a coordenação política com o resto de grupos armados. Enquanto a Junta Militar deverá lidar com a continuação de manifestações esporádicas, as greves, os atentados e ataques guerrilheiros, e o forte desgaste social em uma economia esgotada com uma crescente pressão financeira.

Fonte: https://www.descifrandolaguerra.es/de-las-barricadas-a-la-guerrilla-urbana-la-resistencia-armada-a-la-junta-militar-birmana/

Tradução > Caninana

Conteúdos relacionados:

https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2021/05/24/peticao-internacional-de-solidariedade-com-o-movimento-de-desobediencia-civil-de-mianmar-cdm/

https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2021/05/07/finlandia-juntos-contra-o-golpe-militar-solidariedade-com-mianmar/

https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2021/04/21/grecia-solidariedade-com-aqueles-que-lutam-contra-o-golpe-em-mianmar/

agência de notícias anarquistas-ana

Noite na cabana —
Um grilo na prateleira
Procura por algo.

Issa