Por Sandra Faustino | 10/12/2021
Quando a administração colonial francesa chegou a Madagascar no século XIX, dividiu a população em “tribos”: entre elas estavam os Tsimihety, que recusavam aliar-se a qualquer monarquia. Os Tsimihety mantiveram durante muito tempo a reputação de “mestres da evasão”: de cada vez que os colonos franceses enviavam delegações para contatá-los, encontravam aldeias completamente abandonadas – os Tsimihety tinham-se mudado. Uma outra “tribo”, os Sakalava, fiéis à dinastia Maroantsetras, ignoravam os seus descendentes vivos e continuavam a adornar e reconstruir os túmulos dos antigos reis, “fossilizando” o poder e negando-o a quem pudesse exercê-lo em vida.
Este é um dos relatos que compõem Fragmentos de uma antropologia anarquista, uma publicação que reúne “pensamentos, esboços de potenciais teorias e pequenos manifestos”, escritos por David Graeber. Graeber foi um antropólogo e professor, implicado no movimento Occupy Wall Street, aliado de processos revolucionários como o de Chiapas ou Rojava, e anarquista – embora recusasse o rótulo exótico de “antropólogo anarquista” nos meios universitários. Nesta publicação, Graeber pergunta: Porque não existe um corpo de antropologia anarquista? E porque há tão poucos anarquistas na academia?
Graeber foca-se numa questão de design: como é que as sociedades sem estado “desenham” o seu sistema de poder? E como é que esse desenho permite a recusa do estado?
Para responder a estas perguntas, Graeber começa por mapear o lugar da teoria anarquista na disciplina da antropologia. Claro que existe um corpo de teoria anarquista – Bakunin, Kropotkin, Goldman, de Cleyre – mas nenhuma corrente é representada através de um -ismo, à semelhança, por exemplo, do marxismo. O pensamento anarquista tem-se debruçado sobretudo sobre questões éticas da sua prática e pouco sobre definições conceituais, como “mercadoria” ou “classe”. Para além disso, as autoras e autores anarquistas não escrevem como quem inventa algo novo: os -ismos do pensamento anarquista são, por isso, criados a partir da prática: anarco-sindicalismo, anarco-comunismo, anarco-feminismo, e por aí fora.
Graeber relembra também alguns “clássicos” da antropologia que tiveram influência no pensamento anarquista. Por exemplo, o antropólogo francês Pierre Clastres que, através da documentação detalhada de povos amazônicos, em A sociedade contra o estado (1974), tornou evidente que a antropologia ocidental partia sempre do princípio que as sociedades sem estado não eram sociedades e que, portanto, não mereciam ser estudadas enquanto sistemas políticos. Graeber relembra também Marcel Mauss, antropólogo, fundador da “sociologia francesa” e autor da “teoria da dádiva” (1925), que foi uma das mais importantes críticas à disciplina da economia e ao argumento de que o dinheiro é necessário para resolver o “problema” da troca. Sobre a história do dinheiro, Graeber publicou, em 2011, um dos mais importantes trabalhos da antropologia contemporânea: Dívida: os primeiros 5.000 anos.
A proposta de Graeber para uma “antropologia anarquista” é, por isso, cuidadosa mas otimista. Reconhecendo o passado problemático da antropologia, aliada do processo de colonização, Graeber defende que nenhuma outra ciência social conhece tão bem sociedades sem estado e economias sem mercado. Na segunda parte da publicação, Graeber comenta excertos da “antropologia anarquista que quase já existe”, a partir da pesquisa de várias autoras e autores, incluindo da sua própria pesquisa em Madagascar. Graeber foca-se numa questão de design: como é que as sociedades sem estado “desenham” o seu sistema de poder? E como é que esse desenho permite a recusa do estado? Ao olhar para a “história moderna”, e para os contextos insurrecionais onde estamos habituadas a falar de “teoria anarquista”, as práticas “organizadas” que recusam o estado estão vivas: a ação direta, o consenso, a mediação. Graeber deixou-nos também trabalhos onde documentou detalhadamente estas práticas, como Ação direta: uma etnografia, um trabalho construído a partir da sua própria experiência nos Estados Unidos. David Graeber morreu em setembro de 2020.
Fonte: https://www.jornalmapa.pt/2021/12/10/fragmentos-de-um-antropologo-anarquista/
agência de notícias anarquistas-ana
nas ramagens embaciadas
o sol
abre frestas
Rogério Martins
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!