Está se tornando cada vez mais comum novas histórias sobre níveis recordes de insatisfação e desconfiança de governos e instituições. Uma das mais recentes veio de uma pesquisa da Harvard Kennedy School com jovens estadunidenses entre 18 e 29 anos, na qual mais da metade dos respondentes acreditavam viver em uma democracia falha. Enquanto muitas pessoas podem se referir a instituições específicas quando expressam insatisfação sobre o estado do mundo, como governos, corporações, forças militares e polícia, cada uma dessas instituições são apenas uma parte de um sistema maior que almeja o controle de todos os aspectos de nossas vidas — o Estado.
O livro recente de Eric Laursen, The Operating System: An Anarchist Theory of the Modern State, produzido pela Agency e publicado pela AK Press, provém uma visão geral acessível e fascinante do desenvolvimento do Estado moderno, desenhando uma equivalência provocativa entre o Estado e um sistema operacional de um computador, ambos buscando o controle de nossa existência. A Agency recentemente produziu também um curta animado que captura alguns dos elementos centrais do livro de Eric. Conversamos com Eric para entender como o Estado moderno funciona e por que precisamos nos mover para além dele.
Agency: Seu livro recém-publicado se chama The Operating System: An Anarchist Theory of the Modern State. Por que o Estado? O que lhe inspirou a enfrentar um assunto tão monumental neste momento?
Eric Laursen: Principalmente o fato de que não foi feito antes. Eu me identifiquei como anarquista por basicamente minha inteira vida adulta e, antes, estava impressionado pelo fato de que os assim chamados “clássicos” anarquistas – Kropotkin, Bakunin, Goldman etc. – nunca analisaram de forma extensiva o que é o Estado. Tinha minhas próprias ideias e me vi concordando com seu argumento básico de que derrubar o capitalismo é impossível sem, ao mesmo tempo, derrubar o Estado, mas eu precisava compreender melhor qual era a relação entre os dois e muito pouco no corpo de escritos e teorias anarquistas — ou também em teoria marxista — explicou isso para mim de modo satisfatório. Então estive pensando sobre isso por bastante tempo. Meu novo livro é na verdade o resultado de anos matutando sobre isso, e então se aprofundando bastante sobre o assunto há cerca de dois anos.
A outra razão pela qual decidi escrever este livro é que senti que estávamos alcançando um ponto crítico na relação da humanidade com esses sistemas: o capitalismo e o Estado. Foi decisão deles, nos últimos 200 anos, construir uma economia massivamente dependente do uso de combustíveis fósseis. Foi decisão deles impor o modelo de economia neoliberal no mundo em desenvolvimento, enfraquecendo as economias locais e ordens sociais e levando a vastos deslocamentos populacionais pelo mundo. Foi decisão deles aplicar o neoliberalismo também no mundo desenvolvido, o que levou ao crescimento da desigualdade econômica, o esvaziamento das comunidades e um setor financeiro massivamente inchado que essencialmente tornou a economia um cassino.
É urgente que entendamos melhor a dinâmica que criou essas crises, que são globais e existenciais, e isso é sinônimo de entender a relação entre o Estado e o capitalismo.
Agency: Por que um sistema operacional de computador é uma boa analogia para o Estado?
Eric: Porque um sistema como Windows ou iOS, assim como o Estado, ambiciona a supremacia: ser aquele que tudo vê, que tudo sabe, sempre presente em nossas vidas para construir uma monocultura global, o que então se vende como uma utopia. Isso não é uma coincidência, uma vez que sistemas operacionais de computadores são um produto do Estado, desenvolvido através de uma colaboração intensa entre o público e o privado nas décadas que seguiram a Segunda Guerra Mundial. Como o Estado, são um dos desenvolvimentos que definem o mundo moderno que começou há um pouco mais de 500 anos e incorporam muitas das ambições do Estado em si.
Deixe-me explicar o que quero dizer com isso. Já houveram todos os tipos de Estados na história humana, voltando às dinastias egípcias, ao Império Romano, ao Império Chinês, e assim por diante. Mas o Estado moderno é algo muito particular que ascendeu na Europa pelo final do século XV. O que o torna diferente é que, nesses novos Estados — inicialmente França, Inglaterra e Espanha —, os monarcas tentaram criar um regime unitário que utiliza comércio e finança como uma ferramenta para obter e ampliar seu poder. Não era mais apenas sobre exércitos e tributos e taxações, era sobre as mercadorias que você produzia, o tamanho do mercado para elas e a influência que concediam a você para derrotar seus inimigos e expandir seu poder, interna tanto quanto externamente. É por isso que eu digo que o Estado foi o capitalista original e ainda é o maior deles.
Mas, para usar essa nova arma efetivamente, os governantes precisavam exercer um controle muito maior nas vidas de suas populações. Todos os aspectos delas. Isso significava, como o Estado moderno desenvolveu, um maior controle sobre onde vivem, quantas crianças têm, qual religião seguem, quais ocupações exercem, o que pensam e no que acreditam. Com o passar dos séculos, isso significou mais rastreamento, mais vigilância, mais regulação, mais engenharia social, mais eficiência, e significou absorver mais de suas tradições na infraestrutura do Estado, ou então destruir essas tradições, caso elas estivessem em seu caminho. E isso significou imperialismo e colonização, enquanto o Estado tentou absorver mais partes do mundo em seu modelo econômico e político. O Estado em si é uma exportação colonial — talvez a requisição de materiais que teve mais sucesso de vendas na história mundial.
Sistemas operacionais de computador têm a mesma ambição: prover uma estrutura para cada parte de nossas vidas digitais. Nós nos tornamos “cidadãos” do Windows, “cidadãos” do Mac iOS. Esses se tornam a cultura profunda dentro da qual vivemos mais e mais de nossas vidas — e Mark Zuckerberg e sua gangue têm seu jeito com o “metaverso” em sua completude.
Como esses sistemas, o Estado quer que nos sintamos completamente em casa, aceitando uma forma de existência insustentável — construída na extração e consumo de combustíveis fósseis — que explora milhões de pessoas em regiões pobres e em desenvolvimento e põe em perigo a nossa própria existência, de forma que não conseguimos concebê-la fora desse sistema.
Agency: Em The Operating System você discute a questão de Grupos Identitários de Base estarem no centro do poder de todo Estado. Você pode dar alguns exemplos desses Grupos e de como eles concentram seu poder no Estado?
Eric: Bem, sempre houve algo de artificial sobre esses Grupos Identitários de Base. Vou dar um exemplo: o que é conhecido nos Estados Unidos como “pessoas brancas” é, na verdade, um grupo bem díspar, por classe, por origem étnica, por riqueza. Mas somos ensinados a pensar em pessoas brancas como uma casta privilegiada, os estadunidenses “reais”, os mais merecedores do privilégio de se considerarem estadunidenses — como a “nação” que o Estado supostamente incorpora —, mesmo que a branquitude seja um conceito inventado, que pode ser esticado para incluir novos grupos quando necessário.
Todo Estado tem sua versão de um Grupo Identitário de Base, voltando às origens do Estado moderno. O que realmente significa é um grupo em que o Estado depende como sua base de suporte, que encoraja a se identificar mais intimamente com o próprio Estado e é a reserva da qual ele obtém cada nova iteração de sua liderança. O problema com a noção de um Grupo Identitário de Base é que ela inevitavelmente exclui alguém – na verdade, um monte de pessoas. Todo o resto forma uma subclasse que está eternamente batendo na porta do privilégio, mas nunca entra; o resultado é que o preço do Estado é o racismo, o sexismo e a discriminação da identidade de gênero, porque mulheres e não-binários são apenas provisionalmente parte do Grupo Identitário de Base. O capital, é claro, precisa de uma subclasse que o auxilie a manter um baixo custo de mão de obra, então essa disposição também serve aos interesses dos negócios e financeiros. O que quero estressar é que esses não são problemas que o Estado pode nos ajudar a resolver, são endêmicos a ele, parte de sua lógica interna.
Agency: The Operating System discute como o Estado frequentemente falha em contemplar até mesmo as necessidades mais básicas das comunidades. Há áreas específicas que você pensa que o Estado falha particularmente em relação a essas necessidades?
Eric: Acabei de mencionar uma delas — o racismo — e isso inclui a perseguição e eliminação dos grupos indígenas remanescentes no mundo e de suas culturas. Mas há tantas outras. Uma outra, é claro, é a pobreza. O Estado não é apto a eliminar a pobreza, apesar de todos os seus recursos —que em teoria seriam suficientes para fazê-lo — e apesar das ideologias otimistas que liberais e conservadores tacitamente aceitam. O Estado sempre foi orientado a buscar o crescimento econômico tão rápido quanto possível, já que essa é a base do poder no mundo moderno e, porque depende do capital para isso, é inevitavelmente sujeito a ciclos de retração e expansão e deixam seres humanos às margens, requerendo a segurança de perpetradores “grandes demais para cair”. E isso desconsidera o quanto o sistema prejudica o meio ambiente. O que, é claro, é um outro problema é que pagamos um preço espantoso pelo crescimento e manutenção do sistema baseado no Estado e, à medida que as mudanças climáticas se aceleram, esse preço se torna devastador. Então, quero enfatizar uma outra coisa: que o Estado não é capaz — não tem incentivo — para resolver o problema do aquecimento global, ou mesmo revertê-lo. Apenas não tem o incentivo para fazê-lo, porque isso tiraria a atenção de sua busca por rápido crescimento econômico.
Agency: Parece que a maioria das pessoas naturalizam a existência do Estado, como se fosse algo dado e não houvessem alternativas que não sejam aterrorizantemente brutais. Você tem alguma opinião sobre como agentes do Estado conseguiram criar tanto medo de sociedades sem Estado?
Eric: Sim! O Estado impõe sua visão da sociedade por meio de uma combinação de poderes mais agressivos e mais suaves, e ao cultivar a lealdade do Grupo Identitário de Base. Vimos isso recentemente, é claro, na maneira que Trump apelou à autopercepção de estadunidenses brancos como os “estadunidenses reais,” as “pessoas normais,” e como a campanha do Brexit no Reino Unido encorajou pessoas brancas na Grã-Bretanha, as de ascendentes anglo-saxões, a adotar uma percepção muito exclusiva do que significa ser “inglês.”
Mas há um problema. A fé no governo está em uma baixa histórica na maioria das assim chamadas economias avançadas. Então o Estado encoraja o Grupo Identitário de Base a se identificar intimamente com duas instituições em particular: os militares e as forças policiais. São vistos como os protetores desses grupos contra os outros “elementos” que os ameaçam, em seus papeis de guardiões dos melhores valores sociais, como uma espécie de força que mantém o mundo unido por um grupo de pessoas cuja lealdade ao Estado é comprada com encorajamentos constantes que os fazem sentir em conflito.
Quando todo o resto falha, é claro, há o poder brutal: o tipo a que pessoas de fora do Grupo Identitário de Base estão mais suscetíveis a sentir a força. Recentemente, vimos os militares adotarem formas mais impessoais de matar e a política adotar mais técnicas militares para manter a ordem. Nos Estados Unidos, vimos a população carcerária expandir ao ponto em que literalmente não há mais espaço onde colocá-la. Mas até o poder bruto tem seu aspecto “suave”: o esforço para assegurar ao Grupo Identitário de Base que está sendo protegido e cuidado.
Ambos o poder suave e o agressivo são parte do processo desde os primórdios da era moderna. Mas, como todo o resto do Estado, as ferramentas e técnicas se tornaram mais sofisticadas e mais abrangentes com o tempo. Esses poderes estão por toda parte hoje em dia, em formas que nunca estiveram no passado.
Agency: Se um sistema operacional é uma analogia para o Estado, qual seria a analogia digital para sua ideia de alcançar uma sociedade anárquica?
Eric: Já temos uma, em sistemas de fonte aberta, como o Linux, pelo menos em sua forma ideal. Mas o problema com o digital é o mesmo, de verdade, que com qualquer outra instituição ou produto do Estado: o mundo digital foi concebido e orquestrado por uma colaboração entre o governo e o setor privado que é central no Estado. Ele foi construído para alcançar os objetivos dessa parceria, não para nos libertar ou criar uma comunidade global, como alguns barões da tecnologia gostam de afirmar. Então é uma questão de saber como forjar a cultura digital que queremos, ao invés de permitir aos barões da tecnologia que nos canalizem à produção de valor econômico. Enquanto o Estado existir, tentará frustrar nossos esforços para isso, nessa área tanto quanto em tantas outras, para que aceitemos a visão do Estado, uma visão especulativa, intrusiva e dominadora do futuro digital. Não temos que fazer isso, mas reivindicar uma cultura digital de fontes abertas será equivalente a uma revolução social online.
Agency: O que você quer que os leitores tirem do seu livro?
Eric: Isso depende do leitor. Se você é anarquista, espero que a minha contribuição lhe encoraje a refletir e elaborar suas próprias ideias sobre o Estado. Como anarquistas, somos idealmente adaptados a analisar e compreender essa coisa porque o anarquismo é a única corrente de pensamento político que não aceita o Estado como um fato dado (sic). Somos os únicos que não automaticamente procuram por formas de resolver os problemas do mundo através do Estado, que não assumem que uma sociedade complexa precisa do Estado para se organizar (sic).
Se você não é anarquista, espero que o The Operating System provenha um novo olhar sobre a forma em que o Estado nos organiza e articula alguns dos problemas inerentes ao sistema que impõe. E espero que encoraje quem não é anarquista a pensar mais amplamente sobre soluções aos problemas que a Terra e seres humanos encaram. Somos ensinados a pensar que qualquer solução coletiva aos nossos problemas que não inclua o Estado e o capital é uma forma impossível de utopismo; na realidade, o Estado e o capital são nossas únicas barreiras.
Agency: O que precisa mudar na sociedade em relação à forma em que as pessoas pensam sobre o Estado?
Eric: Para começar, estamos acostumados a pensar sobre o governo e o capital como duas coisas separadas, geralmente existindo em tensão um contra o outro. Há tensões, é claro, mas o que tentei demonstrar é que são na verdade duas partes de um único sistema que está equipado com todos os recursos da Terra — incluindo as vidas humanas — em uma missão incansável de construir riqueza: o resto não importa.
Mas é também sedutor, provém humanos com um modelo completo para vivermos nossas vidas. Por que se preocupar em pensar para além do Estado, quando ele faz que seja tão fácil para nós apenas aceitarmos o sistema como é? Mas isso, é claro, é exatamente o porquê de termos que aprender a pensar além dele. O Estado não é apenas um obstáculo ao tipo de sociedade que gostaríamos de ter, é o que temos ao invés dela.
Já sabemos o que temos que fazer e, até certo ponto, já estamos fazendo: identificar nódulos de resistência e formar redes entre eles para que possamos nos reconhecer e organizar em torno de suas convergências; por exemplo, o Standing Rock e o MST no Brasil, a revolta dos fazendeiros na Índia e o Black Lives Matter, a luta guerrilheira da Greta Thunberg contra a cúpula do clima e a luta para abolir a polícia. Um dos aspectos mais comuns da história do Estado moderno, por exemplo, tem sido uma guerra infindável contra os povos originários e comunidades de minorias políticas. Sua luta pela existência é uma luta de todos que não querem que o Estado alcance sua visão monocultural. Então isso é absolutamente crítico — como é fazer todas essas conexões e alianças.
>> Eric Laursen mora no Massachusetts. É um organizador anarquista, escritor e estudioso. Eric esteve ativo em movimentos contra a guerra e o imperialismo e para justiça econômica global por muitos anos e é um organizador da New York City Anarchist Book Fair. É autor do novo livro The Operating System: an Anarchist Theory of the Modern State (AK Press).
Tradução > Sky
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Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!