Publicado pela Antígona, a autobiografia de Emma Goldman (1869-1940) Viver a Minha Vida chegou aos leitores portugueses na íntegra em Outubro último. com tradução e prefácio de Luís Leitão.
Dividida em dois volumes veio a lume pela primeira vez em 1931, embora segundo a autora à época, a um preço elevado para o público a que se destinava: os proletários.
São sempre os proletários aqueles a quem Goldman se destina, a quem quer dar voz e devolver a dignidade.
Mas por estranho que pareça, talvez devido em parte aos efeitos nefastos da Grande Depressão, por melhores que tenham sido as críticas, as vendas não foram significativas. Daí, só em 1960 a Dover Publications ter editado em fac-símile a primeira edição americana.
Oriunda de uma família judaica severa e hostil de Kovno, Lituânia, na altura sob a alçada do Império Russo, Goldman emigra aos vinte anos com a irmã mais velha no vapor Elbe rumo aos Estados Unidos, “a terra dos homens livres e a pátria dos bravos”.
Mas quando lá chega confirma com os seus próprios olhos que a Terra Prometida não era o sonho de pátria que idealiza, mas sim o lugar onde é levada a tomar junto de Alexander Berkman, o seu Sasha, as dores dos anarquistas de Chicago que lutavam pelas oito horas laborais. Essa luta pacífica que pouco depois deu lugar à tragédia de Haymarket seria o seu escudo revolucionário e serviria de base para fundamentar aquele que seria o seu primeiro comício público. Goldman nesse comício tornar-se-ia a primeira mulher oradora do movimento anarquista alemão na América.
Toma então como sua a causa destes oito trabalhadores, que acabaram injustamente condenados e enforcados em 1887 e quando morre exige ser enterrada junto deles. George Bernard Shaw após esta tragédia enviou um telegrama para o Supremo Tribunal do Illinois com a seguinte frase: “Se o estado do Illinois precisava de perder oito cidadãos, teria sido melhor que se tivessem perdido oito membros do vosso tribunal.” De nada terá valido este telegrama, muito provavelmente até piorou a situação. Mas não foi esta única causa que Goldman defendeu, a ela se somaram outras tantas cruciais como a de Homestead por exemplo, a recolha de fundos para a libertação de presos políticos russos, de Sacco, Vanzetti, a formação de uma imprensa clandestina de literatura anarquista na Rússia ou ainda a montagem de um atelier de costura cooperativo concebido para promover conferências, organizar peças de teatro, e angariar fundos monetários para a propaganda.
“Um grande ideal, uma fé ardente, uma determinação em dedicar-me à memoria dos meus camaradas martirizados, em tornar minha a sua causa, em dar a conhecer ao mundo as suas admiráveis vidas e as suas heróicas mortes.”
Igualmente heróica e admirável também acabou por ser a sua vida. Neta de uma contrabandista, reprimida e maltratada na infância pelos pais e rejeitada pela família depois de se divorciar pela segunda vez do mesmo marido, nunca lhe faltou coragem para partir à desfilada ao combate do catecismo capitalista. Formou-se em costura e enfermagem. Posou nua para um retrato de um pintor anarquista, encabeçou com Sasha, um atentado contra Henry Clay Frick, o inflexível presidente do monopólio do sector siderúrgico americano e viu-se afastada do seu companheiro durante os catorze anos em que este esteve preso. Em 1917 também ela é presa em Blackwell’s Island durante dois anos, agora com Sasha, e em 1919 são os dois deportados para a Rússia bolchevista. É na prisão que conheceu “de perto as profundezas e complexidades da alma humana”, que se confrontou com a fealdade e a beleza. “Ao enviar-me para a Penitenciária de Blackwell’s Island o estado de Nova Iorque não poderia ter-me prestado melhor serviço!”.
Sabemos que pagou a peso de ouro o vermelho anárquico da bandeira que envergou, e que nunca baixou a cabeça ao longo do seu percurso tão alcantilado e doloroso, porém, recuemos agora até à sua chegada à América.
Goldman arranja o primeiro emprego a cozer sobretudos dez horas e meia por dia por dois dólares e cinquenta por semana, ela que já trazia de Vassilevky Ostrov um longo curriculum a costurar luvas e xailes. Tempos mais tarde divide o tecto com dois dos três homens que mais a haviam de a fascinar. Sasha, destemido, guerreiro, possessivo e de pés bem assentes na terra, e Fedya, o amigo artista, pintor, meigo e sensível. Dois homens igualmente anarquistas, atraentes, jovens, mas inteiramente diferentes.
Johan Most, o homem-ídolo, editor intransigente do jornal anaquista Die Freiheit, seu mestre e guia, bastante mais velho completará platonicamente esta trilogia amorosa. Mas sem dúvida, dos três, seria Sasha o grande companheiro de toda a sua vida. Quem a ajudou a rever este livro, quem lhe deu a conhecer Nova York e as irmãs Minkins, duas russas judias que se tornariam suas amigas inseparáveis. Por ironia, Most que se apaixonou por Emma, viria a casar e a ter um filho de uma das duas irmãs e viria a ser opositor de Sasha.
De qualquer maneira, Goldman esteve sempre dividida entre estes homens. Entre estes e outros que depois se somariam. Porém, entre ataques de fúria, desejo, divergências várias, ciúmes, amor e ressentimentos, nas suas entrelinhas percebemos claramente que talvez nunca tivesse sabido em nenhum deles distinguir a atracção pelo homem e pelo revolucionário.
Percebemos também o quanto isso lhe custou por diversas vezes a quebra do seu ânimo. Mas de uma coisa podemos estar certos, as suas dúvidas nunca custearam o ofício talhado e rigoroso da sua escrita. E também nós, ao lermos a sua vida, muitas vezes não saberemos distinguir a atração que sentimos pela mulher e pela revolucionária, porque as duas se fundem em grande parte a todo o momento.
Heróica, anarquista, contestatária. Livre, culta, ateia. Preferia rosas na mesa, a diamantes no pescoço. É esta a “mulher mais perigosa da América”. Quem a apelidou desta forma foi Edgar Hoover, o homem que a quis ver à força longe de solo americano. Ao certo, não saberemos se foi ou não a mais perigosa, mas estamos mais do que convencidos, de que foi a que mais ideais defendeu e das que mais se viu perseguida pelas autoridades.
Perseguir e ser perseguida, é esta a dupla face da sua lâmina. Uma lâmina afiada pronta a rasgar convenções monopolistas, cruéis, desiguais e incapacitantes. Fossem elas quais fossem. Sociais, ideológicas, económicas ou morais.
A caridade, o antimilitarismo, a liberdade de expressão, a emancipação feminina, as artes, o teatro, a dança, o controlo de natalidade, a homossexualidade são temas que faziam parte do seu espólio discursivo. Um discurso que ainda nos dias hoje se mantém actual. “A ignorância é o factor mais violento de uma sociedade.”
Podemos ler nos seus agradecimentos uma nota que merece especial atenção. É que estas memórias foram escritas de cabeça, isto é, sem moletas factuais e históricas a ampará-la. Isto porque Goldman escreveu este livro em Saint-Tropez numa casa alugada pela amiga Peggy Guggenheim, longe dos seus livros, da colecção de sua autoria da revista Mother Earth publicada mensalmente entre 1906 e 1917, de documentos e notas cruciais confiscados pelas ferozes e implacáveis rusgas do departamento da justiça americano. Então como conseguiu escrever a vida que viveu tão fidedignamente?
Pois bem, Goldman lembrou-se de contactar todos os seus amigos, camaradas políticos, historiadores, a sobrinha Stella Balantine e confidentes com quem se tinha correspondido para poder conseguir reunir os dados necessários à sua missão.
Dura, crítica, comovente, justa. É assim que a vamos encontrar nestes cinquenta e seis capítulos.
Esperança num mundo menos desumano; a resistência à guerra; o colectivismo social; a luta pelo despertar das massas; discursos políticos tumultuosos; manifestos; oradores exímios; conferências várias; greves laborais; combate à exploração; aos castigos corporais nas escolas. A atmosfera pesada dos sindicatos e do jornal Freiheit; os métodos de propaganda; o patriotismo exacerbado; um pêndulo revolucionário inflamado, são parte do que podemos encontrar nestas mil páginas. Mas perguntar-se-á o leitor como é que tanta agitação e tantos conflitos laborais poderão trazer a esta autobiografia tamanha grandiosidade?
Porque Goldman entre tanta retórica combatente e propagandista consegue imprimir uma textura calorosa, íntima e cativante. Porque em nenhum momento os seus relatos e as suas referências se tornam mecanicistas, repetitivas, baças ou a sua inspiração desvanecida.
A sua linguagem imagética revela-se magnetizante e fresca e por isso a cada passo nos vemos a seu lado a ouvi-la cantarolar as suas músicas em alemão ou russo pelo Central Park ou a comungar os versos dos seus poetas revolucionários: Freiligrath, Herwegh, Schiller, Heine ou Borne.
Mesmo que muitos desses versos e muitos desses poetas, nomes de camaradas seus e outros artistas sejam desconhecidos pela maioria dos portugueses, eles emanam algo de eletrizante e misterioso ao mesmo tempo.
A imagética da sua linguagem resgata-nos para perto de si a cada descrição. Faz-nos estar a seu lado em cada comício, junto a si às cavalitas do camponês Petrushka, na perigosa travessia das águas geladas do Nemen a bater o dente de frio com o irmão mais novo ao colo, ou em plena Rua 14 no meio de prostituas, na noite em que desesperada financeiramente depois de ter costurado a sua própria lingerie e espartilho, se decidiu tornar uma delas para ajudar financeiramente Sasha na sua Causa. “Enquanto me atarefava a preparar a minha toilette, pensava em Sasha. Que diria ele? Aprovaria o que estava a fazer? De certeza que sim. Ele sempre insistira que os fins justificam os meios, que o verdadeiro revolucionário não recua perante nada quando se trata de servir a sua causa.”
Goldman acabou por não se prostituir. O único homem que a abordou nessa noite de 16 de Julho de 1892, ‘um salvador de almas’, gentil e delicado mandou-a para casa depois de lhe dar 10 dólares e dizer que não via nela “nenhuma queda para a prostituição”.
Estas são apenas algumas das muitas passagens marcantes que delinearam o percurso da criança que nunca teve uma boneca à mulher a quem nunca faltaram missões, garra e coragem.
Ally Fogg escreveu num artigo publicado no The Guardian a respeito de Goldman, que o que mais o alarmou nas memórias desta feminista e nos seus discursos foi o facto de Goldman não ter tido pudor em mudar de atitude ou de opinião quando assim o achou necessário. Fogg confessa que “Com uma carreira política de mais de 50 anos, não é difícil encontrar posições das quais possamos discordar. Mas as suas próprias opiniões mudaram, principalmente sobre o valor da violência política. Não há vergonha em tais reviravoltas. Talvez a sua observação mais importante seja a que vem no seu primeiro volume: ‘O anarquismo é uma força viva nos assuntos da nossa vida criando constantemente novas condições. Os métodos do anarquismo, portanto, não incluem um programa blindado a ser executado em todas as circunstâncias. Os métodos devem crescer a partir das necessidades económicas de cada lugar e clima, e das exigências intelectuais e temperamentais do individuo.'”
Venerada por uns, odiada e acusada de blasfema, herética, pecadora por outros. Devíamo-nos questionar, tal como o historiador e activista Howard Zinn (1922-2010) o fez porque é que não estudamos esta mulher na escola. Porque é que ela e episódios como a tragédia de Haymarket não vêm nos nossos manuais escolares de história quando esta mulher foi das personalidades mais importantes e carismáticas do século XX.
Nesta autobiografia revivemos a sua vida cadenciada por altos e baixos. São muitos os momentos de alegria, ansiedade, ira, excitação, porém, nenhum momento da narrativa é sensacionalista, muito menos febril, isto é, não há picos de intensidade ao longo destes capítulos porque todo o seu encadeamento é fluído e estruturado. Cada palavra é em si mesma inevitável e agitadora.
Goldman dividia os homens em duas categorias, os ‘vulgares e os idealistas’. Quando se encontrou com Lenine, este alegou-lhe que a América dividia os anarquistas também em duas categorias: os filosóficos e os criminosos.
Esta autobiografia transporta-nos para um destino longínquo. Lugares que não conhecemos, onde o dramatismo jamais abriu valas. Lugares onde os leitores que se propõem a esta viagem estão também divididos em duas categorias. Os que pernoitam nesses lugares mesmo sentindo que por vezes estes se estilhaçam debaixo dos seus pés, e aqueles que só os atravessam ao largo. De passagem.
Fonte: https://sol.sapo.pt/artigo/760139/emma-goldman-a-anarquista-genial
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arco-íris ausente.
Rosa Clement
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!