A leitura deste Manifesto de Chiara Bottici [1], no final de 2021, foi uma lufada de ar fresco no panorama do feminismo anarquista carente de ideias, muito menos de construção de movimentos sociais, neste país. Não subestimo, longe disso, todos os esforços que são feitos para construir uma proposta feminista a partir do anarquismo, tudo é útil, e ainda mais nestes tempos. No entanto, temos que reconhecer como é difícil e lento fazê-lo: às vezes por falta de ideias, às vezes porque o ativismo em outros campos deixa pouco tempo para a criação de sólidos grupos anarco(a)feministas com continuidade no tempo e, finalmente, muitas vezes porque os confrontos dominam o espaço feminista e anarquista e o tempo e a energia são desperdiçados neles.
Além da leitura do Manifesto, participei de uma conferência em Barcelona (em 7 de março de 2022) na qual a autora sintetizou suas ideias, o que ela explica em um livro [2] que acaba de sair e que estou lendo atualmente.
Por que um Manifesto? A necessidade de um Manifesto aqui e agora é dada pela existência de órgãos de gênero que são explorados e dominados em todo o mundo, não porque seja proposto como um plano que pode ser dado de uma vez por todas e aplicado em todos os contextos. Este último estaria em flagrante contradição com o anarquismo que permeia este Manifesto e que deve estar aberto e em constante desenvolvimento, como diz a autora.
Por que Anarcafeminista? O anarquismo significa que não há arquétipo (que não há lei, nenhum princípio único que explique a opressão da mulher) e o conceito anarcA é feminizado para dar visibilidade à faceta especificamente feminista dentro da teoria e prática anarquista.
Conteúdo do Manifesto (de acordo com a ideia de que o Manifesto está aberto e em constante desenvolvimento, deve ficar claro que este não é um resumo do Manifesto, eu o fiz meu e o cortei a meu gosto).
A autora parte da existência de uma androcracia global. Embora o patriarcado, que significa a lei do chefe de família masculino, tenha sido derrubado em muitos contextos, o poder dos homens sobre o “segundo sexo” (um termo que ela toma emprestado de O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir [3]) é mantido através da morte, do Estado, do capital e do imaginário. A estes quatro instrumentos da androcracia Bottici dedica sete dos nove capítulos que compõem o seu Manifesto.
Em relação à morte (capítulo 1), a autora aponta a existência de um verdadeiro generocídio global contra pessoas percebidas como mulheres.
O segundo instrumento da androcracia é o Estado (capítulos 2 e 3) e sua dimensão de gênero. O Estado sempre foi uma ferramenta de uma minoria (onde quase não há mulheres) que governa a maioria.
O capital (capítulo 4) é o terceiro instrumento da androcracia, precisa da divisão de trabalho por gênero, para que possa obter a extração de mais-valia do trabalho assalariado produtivo e também do trabalho reprodutivo não remunerado. Ela é sustentada pela expansão do lucro e, portanto, o capitalismo também precisa extrair recursos naturais livres do meio ambiente. Para este fim, ocupou terras estrangeiras através do colonialismo e dividiu a população mundial em diferentes raças, dando à raça branca o papel de suprema.
O imaginário (capítulos 5, 6 e 7) [4] é o quarto e mais filosófico instrumento da androcracia, e um que ainda tenho que digerir. A autora assinala que “mulheres” não é nem uma essência eterna nem um objeto predestinado. As mulheres não são objetos, mas processos (o lugar de se tornar); elas não são coisas, mas relações sociais. Partindo de ideias da filosofia da transindividualidade, a autora argumenta que os corpos nunca são processos completos que sempre excedem os limites individuais: não existe uma individualidade que não seja ao mesmo tempo uma transindividualidade, ou seja, um processo de individuação que ocorre em três níveis:
- inter (os corpos nascem de um encontro interindividual, como o de um esperma e de um óvulo).
- supra (os corpos são moldados por forças supra individuais, tais como sua localização geográfica no capitalismo global racializado).
- intra (os corpos são construídos por elementos interindividuais, tais como o ar que respiramos e os hormônios que ingerimos quando comemos).
Os corpos das mulheres, como todos os corpos, são corpos no plural porque são processos, processos constituídos por mecanismos de afetação e associações que ocorrem nos três níveis mencionados acima. Moléculas que inalamos, átomos que comemos, bactérias e outros indivíduos que habitam nosso corpo, são parte de nosso ser trans-individual (isto não significa o abandono do indivíduo ou de distinções).
O trans-individual é um prisma através do qual se pode compreender a individualidade da mulher:
1) Ecologia e feminismo não são separados, uma vez que o meio ambiente é constitutivo de nossa individualidade.
2) As construções do imaginário coletivo, como gênero, raça e classe, são conceitualizadas desde o início como constitutivas de nossa individualidade. O aparato imaginário que sustenta a androcracia global infiltrou-se até mesmo no próprio processo de se tornar uma mulher. Os corpos das mulheres estão sujeitos a um processo de disciplina, cujo objetivo é: governar os corpos e incutir em nós a ideia de que nossos corpos precisam ser governados.
3) Quando os corpos das mulheres são teorizados como processos transindividuais, podemos falar de “mulheres” sem incorrer em essencialismos ou culturalismos. Não há lugar para a oposição sexo (natureza) e gênero (cultura). Além disso, esta abordagem nos permitiria incluir todos os tipos de mulheres, não apenas as mulheres cis.
Imagens e rituais de saúde, beleza e cuidados são um dos enclaves mais poderosos para o exercício das “tecnologias androcráticas do eu” [5]. Eles criam sujeitos dóceis tanto através de regras do exterior quanto através da participação voluntária na submissão.
Embora transindividualidade não signifique transgênero, no entanto, o processo de transgenerização é uma das formas possíveis de individuação e individuação e não uma anomalia.
O que o anarcafeminismo levanta? (Capítulos 8 e 9 e trechos dos capítulos anteriores).
A autora assume que o anarquismo é um método, não um plano que pode ser dado de uma vez por todas e aplicado em todos os contextos. Isto não significa que não possa haver programas limitados no tempo e para locais específicos. Nesta base, analisemos as contribuições do anarquismo ao feminismo, ou em outras palavras, o que se entende por anarcafeminismo.
O anarquismo não é a ausência de ordem, mas a busca de uma ordem social sem um ordenador e, portanto, desenvolve um feminismo sem arquétipo, ou seja, sem hierarquias ou governantes. Deste ponto de vista, o anarcafeminismo questiona processos de normalização que levam à exclusão e ao estabelecimento de hierarquias, inclusive aquelas baseadas no gênero e no sexo.
Não é possível combater uma forma de opressão sem combatê-las todas ao mesmo tempo, isto leva a uma interseccionalidade, pois todas as formas de opressão habitam a mesma casa, que é a crença de que algumas pessoas se consideram superiores a outras, e esta superioridade justifica sua dominação.
A liberdade é o fim e é uma contradição pensar em alcançá-la através de qualquer outra coisa que não seja a própria liberdade. A liberdade é indivisível e, portanto, o feminismo significa a libertação de todos os gêneros, desta perspectiva a luta é por um mundo além da oposição entre homens e mulheres, além do feminismo.
Pense globalmente, aja localmente. A luta, que tem que ser global, tem que enfrentar o legado do colonialismo e do sistema racial na produção do conhecimento (conteúdo decolonial).
O anarcafeminismo é ecofeminista, é ecoafetividade (ecologia como co-afetividade). É a capacidade de afetar e ser afetado por cada ser, o que põe em questão qualquer hierarquia entre os seres, assim como os limites que os separam. A noção de afeto é central para uma “política de renaturalização”, onde a natureza é trazida de volta ao centro do pensamento e da ação política. Uma abordagem anarcafeminista da ecologia é “sem” natureza em sua forma alienante, mas “através” da natureza, no sentido de uma única substância transindividual infinita.
A partir destas abordagens…
Comece sua revolução agora, exerça seu poder hoje. Tomar o poder do Estado é reproduzir a estrutura de poder a ser desafiada, então basta fazê-lo: nenhuma rebelião é pequena demais e as revoltas não são exclusivas. Ser um “pirata de gênero” [6]: resistir às normas de gênero, brincar com elas, deixar de cumpri-las, desobedecer, boicotar, combater o capitalismo… Estas ações são a prefiguração de um mundo diferente.
Laura Vicente
[1] Chiara Bottici (2021): Manifiesto Anarcafeminista. NED Ediciones, Espanha.
[2] Chiara Bottici (2022): Anarcafeminismo. NED Ediciones, Espanha.
[3] Entretanto, ela entende por “segundo sexo” todos aqueles excluídos do “primeiro sexo”, basicamente homens cisgêneros.
[4] Imaginário (ou Imaginal, no original) é entendido como o caráter das sociedades contemporâneas que, no primeiro aspecto, são vivenciadas na vida cotidiana com base nas singularidades estéticas dos vínculos entre os indivíduos e, em segundo lugar, são responsáveis por uma indistinção entre as imagens e o que se pode chamar propriamente de social. E. Marcos Dipaola (2019): “Producciones imaginales: lazo social y subjetivación en una sociedad entre imágenes”. Ediciones Complutense. https://revistas.ucm.es/index.php/ARIS/article/view/59483
[5] “Tecnologias do eu” é o título de um seminário dado por Michel Foucault no qual ele descreve as tecnologias do eu como aquelas que “permitem aos indivíduos realizar, por seus próprios meios ou com a ajuda de outros, um certo número de operações em seu próprio corpo e alma, pensamentos, comportamento e forma de ser, a fim de se transformarem com o objetivo de alcançar um certo estado de felicidade, pureza, sabedoria, perfeição ou imortalidade”. Citado por Chiara Bottici, Manifesto Anarquafeminista, p.64.
[6] Paul B. Preciado (2020): Testo yonqui. Sexo, drogas e biopolítica. Anagrama, Barcelona, p. 55.
Fonte: http://pensarenelmargen.blogspot.com/2022/04/el-manifiesto-anarcafeminista-de-chiara.html
Tradução > Liberto
agência de notícias anarquistas-ana
sol em plenitude
uma rã pula — em versos
barulho de Vida
Roséli
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!