O livro do coletivo “La Pinya” me surpreendeu em primeiro lugar por sua estrutura: parece uma boneca russa, uma matrioska, um contínuo abrir de gavetas onde vamos encontrando uma visão diferente do mesmo processo e construindo uma imagem coletiva e orgânica do projeto. O nome escolhido de “coletivo de educação autogestionária” nos ajuda a compreender o trabalho por trás dele e impede que o projeto seja catalogado como uma simples escolinha, ou um lugar onde as crianças são cuidadas. Na Pinya, fica claro desde o início, todo o grupo é cuidado, adultxs e crianças, lá não se quer que o processo educacional seja delegado a alguns especialistas e sim a decisões coletivas, compartilhando assim a responsabilidade pedagógica assume-se que o ato de educar implica também o educar-se.
A própria estrutura do livro evidencia essa forma de atuação: não há uma única pessoa especialista que escreva melhor que os outros e seja responsável pelo texto, nem há quem conheça o projeto há mais tempo e que por isso se ache no direito de descrevê-lo. Aqui encontramos um coro de vozes, de adultxs e crianças, e uma estrutura dividida de modo a por um lado mostrar as etapas do projeto para nos ajudar a acompanhar o seu desenvolvimento, e por outro trazer ferramentas concretas que podem servir a qualquer pessoa que tenha interesse em educação.
Escrever e compartilhar é um trabalho que não só ajuda o leitor a compreender o trabalho coletivo de muitos anos, mas também é essencial para o andamento do próprio projeto, conforme especificado repetidas vezes no livro. Sendo a Pinya um coletivo vivo, no qual as pessoas continuam a entrar e sair, existe a necessidade de trazer aos recém-chegados o que foi trabalhado até agora, isso é muito importante para não voltar sempre a temas já discutidos: tudo pode ser questionado, mas é preciso saber qual é o processo que levou a essas decisões e como pouco a pouco ajudou a definir as posições que são consideradas fundamentais no projeto. Metáforas muito usadas são, por exemplo, a de passar a “chama pinyera”, isso se dá através de um trabalho que podemos relacionar à construção de um “encanamento” político e pedagógico: a Pinya é água e os canos são a capacidade dxs adultxs de transferir conhecimento. É importante “reconhecer as raízes para continuar crescendo, adaptando-se às necessidades do momento”.
E em termos de raízes, embora existam algumas referências históricas em Ferrer e nas escolas racionalistas, não há uma única linha pedagógica que defina o trabalho, pois são utilizados recursos de diferentes teorias educacionais (uma boa definição do método é Pinyassori). Por outro lado, a Pinya está se afastando gradativamente da definição de “educação livre”, quadro no qual foi inserido inicialmente junto com outros projetos pioneiros porém dos quais vem se diferenciando ao longo dos anos. Uma boa anedota sobre o termo “livre” é a escolha do nome do projeto: que melhor ocasião para colocar em prática essa liberdade do que fazer com que as próprias crianças escolham o nome… Bom, estamos falando de crianças de 3 a 4 anos, a princípio em sua maioria meninas, que quando questionadas sobre o nome da escola, se reuniram para decidir em conjunto como já haviam aprendido em outros projetos horizontais. Tendo duas palavras que gostaram, chegaram a um acordo que foi colocar as duas: “Colar Princesa”… Você já pode imaginar a reação dos adultos… “nós tínhamos entendido que mais do que a liberdade que a democracia capitalista nos oferece, tínhamos que oferecer a elxs ferramentas para remar contra a corrente”.
Pois bem, o trabalho do coletivo é proposto como uma forma de se livrar dos condicionamentos da sociedade em que estamos imersos, tanto na educação dxs pequenxs quanto na relação entre as pessoas. Não reproduzir as diretrizes do patriarcado é um dos objetivos mais claros do projeto e também um dos mais difíceis, considerando como todxs nós as temos introjetadas. Pois bem, o nome “La Pinya” escolhido pelo grupo lembra não só o privilegiado espaço natural da quinta Can Garrofa em que vivem no dia-a-dia, mas também a horizontalidade e capacidades presente na natureza. A linguagem também é importante para não reproduzir padrões, por isso opta-se pelo plural feminino, xs educadorxs são definidxs como acompanhantes, os pais são pamares. A atenção às questões de gênero leva a perceber diferenças entre “Crianças socializadxs como meninos ou meninas” identificando assim os condicionamentos da sociedade.
Esse querer desmantelar os costumes arraigados também resolve dúvidas sobre a não intervenção, ou seja, por um lado, cuida-se do desenvolvimento das atitudes de cada criança, por outro, é preciso intervir para evitar dinâmicas de grupo negativas, para empoderar as crianças que ficam mais quietas de forma a não repetir os esquemas de uma sociedade hierárquica. Também é importante olhar para um pequeno detalhe como a definição de “intervenção”: não significa que um adulto guie pela mão ou faça uma explicação em palavras, muitas vezes significa introduzir novos materiais, mudanças na distribuição do espaço, propostas de atividades ou levantando um tema na assembleia. Questionar conceitos, mesmo os simples, é uma forma de desmontar normas e assim saber exatamente o que queremos dizer com essa palavra.
Justamente por isso o coletivo tem se questionado muito em se definir como anarquista, ainda que a maioria das pessoas que o integram venha do movimento libertário talvez a definição de anarquista fosse estreita para uma experimentação pedagógico-social em contínua evolução e por isso tenham se nomeado como Coletivo de Educação Autogestionária. No entanto, para entender o quanto Pinya está inserido nos movimentos sociais, cada capítulo começa com uma seção na qual é feito um retrato do contexto de lutas daqueles anos, explicitando inquietações e tensões. O que pode ser definido sem dúvida como anarquista são alguns dos princípios utilizados, como está bem especificado no texto: não delegar, horizontalidade, possibilidade de questionar tudo e não seguir nenhuma corrente, repensar o ato educacional e não ter medo de ensaiar e cometer erros para encontrar a melhor solução. Além disso, um ponto forte do projeto é a conexão entre responsabilidade individual e coletiva: é aí que reside sua definição política. E é aqui que se diferencia de outros projetos que visam mais o desenvolvimento individual, o bem-estar interior e o cuidado da alma, com um foco que parte da yoga e das disciplinas orientais. A dimensão de grupo e de aprender a crescer consciente de fazer parte dele se desenvolve na Pinya ao mesmo tempo que a liberdade individual.
Participar do coletivo significa que as famílias se envolvem em todas as questões pedagógicas graças às assembleias e comissões e também cuidam da preparação da alimentação, limpeza, organização e acompanhamento de excursões e acampamentos… Não delegar é um trabalho enorme e o texto transpira a dificuldade e o cansaço de cuidar de tudo… então por que fazem isso? E como é possível que o projeto já dure quase 20 anos? O fato é que a maioria das pessoas que passaram pela Pinya escolheram investir seu tempo, energia e desejos em um projeto com vontade de transformação social, todxs concordam que ali viveram uma experiência chave na sua vida, um processo de crescimento pessoal e coletivo que deixou uma marca. O trabalho contínuo de desconstrução realizado pelos membros do coletivo é o pilar que proporciona esse tipo de acompanhamento às crianças. Por exemplo, para mudar a dinâmica de um momento-chave como o almoço, a assembleia propõe duas opções que são testadas por um mês cada uma e um terceiro mês é oferecido para colocar em prática uma proposta que venha das crianças. Após esse ensaio as crianças não consideram necessária uma terceira opção porque acham que uma das duas funciona bem. Parece tão fácil falar assim, mas vamos pensar na dificuldade em realizar qualquer mudança consensual e na flexibilidade necessária de todxs xs participantes. Outra ferramenta muito útil foi criar um espaço para cuidar das relações grupais entre as pessoas acompanhantes, um espaço para refletir sobre o que funciona e o que não funciona e tentar resolver os conflitos quando estes surgem. Estudar soluções em grupo enriquece, e se uma assembleia muitas vezes começa com pontos de vista diferentes às vezes termina com uma visão única que foi enriquecida por todxs participantes.
Isso de tentar e se não der certo mudar de estratégia é uma posição muito humilde: tenta-se algo porque se considera a melhor opção, para ver como corre e se não for viável, estuda-se outra solução. Deveríamos sempre abordar os problemas da vida dessa maneira. Ao invés de aceitar uma realidade que não gostamos e depois reclamar, o caminho é construir alternativas. Esse saber combinar a capacidade de sonhar com a praticidade de propostas concretas para o dia-a-dia constitui a essência da Pinya. Cuidar da educação dos pequenos coletivamente permite que os adultos também cresçam e aprendam por meio de diferentes modalidades e ferramentas. Compartilhando esse processo com o leitor, um pouco desse trabalho também alcança pessoas fora da Pinya. Voltamos a matrioska…
Valeria Giacomoni
La Pinya.
Història i reflexions d’un col.lectiu d’autogestió educativa
Ano de publicação: 2021
Autor/es: Trabalho coletivo coordenado por Marc Franch Farré e Albert Torrent Font
Editora: Descontrol Editorial
ISBN: 978-84-18283-23-9
Páginas: 420
Tamanho do livro: 21x14cm
Preço: 18,00€
descontrol.cat
Tradução > Mauricio Knup
agência de notícias anarquistas-ana
sol na varanda –
sombras ao entardecer
brincam de ciranda
Carlos Seabra
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!