Não pretendemos neste artigo falar daqueles que ao chamarem-se individualistas crêem justificar toda a ação mais repugnante, e que têm tanto a haver com o anarquismo quanto os esbirros com a ordem pública de que se gabam de ser defensores, ou os burgueses com os princípios de moral e de justiça com que às vezes procuram defender os seus privilégios homicidas.
Nem pretendemos falar daqueles companheiros que se chamam “individualistas nos meios”, os quais, na luta que hoje travamos, preferem, ou exclusivamente admitem, a ação individual, seja porque a crêem mais eficaz, seja por medidas de prudência, ou porque temem que uma qualquer organização, um qualquer entendimento coletivo, minoraria a sua liberdade. Desta, que em parte é questão de tática e em parte questão de princípios, nos ocuparemos quando falarmos da questão de organização.
Agora queremos falar do individualismo, como filosofia, isto é, como concepção geral da natureza das sociedades humanas e das relações entre indivíduos e coletividades, porquanto ele é professado (algumas vezes quase sem darem por isso) por uma parte dos nossos companheiros.
Há quem se diz individualista por entender que o indivíduo tem direito ao seu completo desenvolvimento físico, moral e intelectual e que deve encontrar na sociedade uma ajuda, e não um obstáculo, para alcançar o máximo de felicidade possível. Mas em tal sentido somos todos individualistas e seria só questão de uma palavra mais; e nós não a utilizamos simplesmente porque, tendo outras e variadas acepções, só serviria para gerar confusão. E não somente nós, anarquistas e socialistas de todas as escolas, somos individualistas no sentido supramencionado, como o são todos os homens de qualquer escola ou partido; pois o indivíduo é o único ser senciente e consciente, e sempre que se fala de prazeres ou de sofrimentos, de liberdade ou de escravidão, de direitos, de deveres, de justiça, etc., não se tem e não se pode ter em vista senão os indivíduos viventes.
Algumas vezes, portanto, trata-se de uma simples questão de palavras e não valeria a pena fazer-lhe grande caso. Mas amiúde uma importante diferença de ideias entre aqueles que professam e aqueles que repudiam o individualismo existe realmente; e importa determiná-la, porque graves são as consequências práticas que dela derivam, apesar de que os objetivos finais duns e doutros sejam os mesmos. Não é que haja razão de se olharem de esguelha e se tratarem por adversários, tanto mais que, desde que os anarquistas quiseram pôr-se a fazer “filosofia”, sucedeu uma tal confusão de ideias e de palavras que muitas vezes não há modo de perceber se se está de acordo ou não; mas é urgente que nos expliquemos bem, se não por outro motivo, pelo menos para nos desembaraçarmos duma vez para sempre destas questões abstratas que absorvem a inteira atividade de certos companheiros, com grave dano do trabalho de verdadeira propaganda.
Examinando tudo o que tem sido dito e escrito pelos anarquistas individualistas apercebemo-nos da coexistência de duas ideias fundamentais, contraditórias entre si, que muitos não afirmam explicitamente, mas que duma forma ou doutra se encontram sempre, e muitas vezes até nas ideias de muitos anarquistas que não costumam chamar-se individualistas.
A primeira destas ideias consiste em considerar a sociedade como um agregado de indivíduos autônomos, completos em si mesmos e capazes de bastar a si mesmos, que não têm razão de estar juntos se não encontram o proveito próprio, e que poderiam separar-se quando achassem que as vantagens que a sociedade lhes oferece não compensam os sacrifícios de liberdade individual que ela exige. Em suma, consideram a sociedade humana como uma espécie de companhia comercial que deixa ou deveria deixar cada sócio livre de entrar ou sair segundo a sua conveniência. Hoje, dizem eles, como uns poucos indivíduos açambarcaram todas as riquezas naturais ou produzidas, os outros vêem-se obrigados a sofrer à força as regras impostas pela sociedade ou pelos indivíduos que na sociedade imperam; mas se a terra, se os meios de trabalho fossem livres para todos, e se a força organizada de uma classe não escravizasse o povo, ninguém teria razão de permanecer em sociedade quando o seu interesses lhe aconselhasse doutro modo. E como, uma vez satisfeitas as necessidades materiais, a suprema necessidade do homem é a liberdade, toda a forma de convivência que exigisse um qualquer, ainda que mínimo, sacrifício da vontade individual é de se repudiar. Faz o que queres, tomado no sentido mais estreito e absoluto da frase, é o princípio supremo, a regra única da conduta.
Mas por outro lado, admitidos o indivíduo autônomo e a sua absoluta, ilimitada liberdade, deriva-se que a partir do momento em que os interesses se acham em antagonismo e as vontades variam, a luta surge, e na luta uns ficam vencedores e outros vencidos, e então volta-se à opressão e à exploração se quer remediar.
Por isso era necessário aos anarquistas individualistas, que não ficam atrás de ninguém no ardente desejo do bem de todos, um modo de poder, mais ou menos logicamente, conciliar com o bem permanente de todos o princípio da absoluta liberdade individual. E encontram-no adotando um outro princípio: o da harmonia por lei natural.
Faz o que queres; mas é certo, dizem eles, que espontaneamente, naturalmente, tu só quererás aquilo que não puder prejudicar o igual direito dos outros a fazerem o que querem.
“A nossa liberdade — escreve-nos um amigo, explicando-se em toda a amplitude das faculdades humanas — nunca lesará a liberdade alheia. Como os astros gravitando em torno do próprio centro percorrem trajetórias especiais, assim os homens poderão percorrer a sua própria linha de liberdade sem nunca se confundirem e sem degenerarem no caos.” E outros, substituindo a astronomia pela fisiologia, falam de uma “simpática aglomeração de células nos vegetais e nos animais”; e outros falam da formação dos cristais, e assim sucessivamente passando em revista todas as ciências naturais. Dos cristais tortos ou mancos, da luta pela existência, das catástrofes cósmicas, das doenças, dos abortos, de toda a infinita soma de chacinas e de dores que também existem na natureza, nenhum se recorda.
A desarmonia, o antagonismo de interesses, são a consequência das instituições presentes. Destruí o Estado; respeitai a completa liberdade de comércio, de banca, de cunhagem de moeda; seja o direito de posse da terra limitado pela obrigação de a cultivar ou utilizar doutro modo pessoalmente; seja livre, completamente livre a concorrência, dizem os anarquistas individualistas da escola de Tucker — e a paz reinará no mundo: a renda económica, vale dizer, as diferenças de valor, por produtividade e por posição, das várias partes do solo desaparecerão naturalmente, e a concorrência conduzirá naturalmente à mais profícua utilização das forças naturais em benefício de todos.
Destruí o Estado e a propriedade individual, dizem os anarquistas individualistas da escola comunista (a coisa existe apesar da aparente contradição dos termos), e tudo caminhará bem; todos ficarão naturalmente de acordo; todos trabalharão porque o trabalho é uma necessidade fisiológica; a produção corresponderá sempre e naturalmente às demandas do consumo, e não haverá necessidade nem de regras nem de pactos porque… fazendo cada um aquilo que quer, dará consigo a ter feito, sem saber nem querer, justamente, precisamente aquilo que queriam os outros.
De modo que, indo ao fundo da coisa, encontra-se que o anarquismo individualista não é mais que uma espécie de harmonismo, de providencialismo.
Segundo nós os princípios do individualismo são completamente errôneos.
O indivíduo humano não é um ser independente da sociedade, mas é o seu produto. Sem sociedade ele não teria podido sair da esfera da animalidade brutal e tornar-se verdadeiramente um homem, e fora da sociedade não poderia senão retornar mais ou menos rapidamente à animalidade primitiva.
O dr. Stokmann do Inimigo do Povo de Ibsen, que irritado por não ser compreendido e seguido pelo público exclamava “o homem mais forte é o que está mais só”, e que foi tomado por anarquista quando não era mais que um aristocrático, dizia um solene disparate. Se ele sabia mais do que os outros e podia mais do que os outros, era porque mais do que os outros tinha vivido em comunicação intelectual com os homens presentes e passados, porque mais do que os outros tinha beneficiado da sociedade — e portanto mais do que os outros devia à sociedade.
O homem pode ser na sociedade livre ou escravo, feliz ou infeliz, mas na sociedade deve permanecer, porque ela é a condição do seu ser homem. Portanto, em vez de aspirar a uma autonomia nominal e impossível, deve procurar as condições da sua liberdade e da sua felicidade no acordo com os outros homens, modificando de acordo com os outros as instituições sociais que não lhes convêm.
Igualmente vã, e completamente desmentida pelos fatos, é a crença numa lei natural pela qual a harmonia entre os homens se estabelece automaticamente, sem necessidade da sua ação consciente e desejada.
Mesmo destruídos o Estado e a propriedade individual, a harmonia não nasce espontaneamente, como se a natureza se ocupasse do bem e do mal dos homens, mas é preciso que os próprios homens a criem.
Mas sobre isto, para nos fazermos compreender, deveremos falar amplamente… e os leitores já reclamaram que fazemos artigos demasiado longos.
Para uma outra vez então.
(de «L’Agitazione» de Ancona, n.º 6 — 19 de abril de 1897)
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agência de notícias anarquistas-ana
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